Samuel Úria | “Sou um saltimbanco de cenas”

Dias antes de subir ao palco no Vodafone MexefestSamuel Úria contou-nos, numa entrevista, como se esconde nas trovas que o revelam.

No dia 17, por ocasião do IV Encontro Nacional dos Leigos, o nosso trovador deu o ar da sua graça em Viseu, num concerto que o viu voltar às raízes. O trovador de Tondela tirou lá o curso e não faltaram amigos com quem entabular conversa durante o evento, que decorreu na Aula Magna do Instituto Politécnico. Graça gloriosa a da música que lhe ouvimos, graçolas trocadas com o produtor e parceiro de banda, Miguel Ferreira, graças recebidas nos aplausos entusiásticos do público, mas sempre comum, como o pude perceber durante a viagem, enquanto me era dada a graça de uma entrevista. Numa paisagem lacerada pelos incêndios do mês passado, ao cair da tarde, era difícil distinguir entre o acastanhado do poente, do outono e do queimado. Difícil também não nos perguntarmos (para dentro, que o silêncio é de ouro) sobre qual o valor de tocar e ouvir música quando tantos perderam a casa ou a vida. Fácil era perceber a seriedade, cheia de graça ligeira, com que Samuel Úria olha para o que tão singularmente faz e vive o que tão carismaticamente canta. Eis o que descobri sobre o cantautor português do momento (e do futuro, porque é eterno o que já hoje faz). O que se me revelou, indo eu, indo eu, a caminho de Viseu.

MHDRelativamente às tuas referências musicais, já tens mencionado, muitas vezes, as que pertencem ao rock clássico, como os Beatles, e cantautores como Bob Dylan e Leonard Cohen. Mas, à exceção do rótulo muito lato de “punk”, não me lembro de nomes ligados à tradição mais experimental que se seguiu ao punk. Estou curiosa para saber se existem e, se sim, quais são.

Samuel Úria – Se falares em tradição experimental que se seguiu ao punk, uma das minhas bandas de eleição – na adolescência era fanático e ainda hoje gosto bastante – são os Sonic Youth. Mas quase toda a cena do pós-punk me afectou um bocado, até por uma questão geográfica. Na cidade onde eu vivia, em Tondela, que é uma cidade pequeníssima, havia uma espécie de cultura nos anos 90, em que o pós-punk era uma música mais urbana e que se ouvia em Tondela e as bandas de metal eram uma coisa um bocadinho mais de aldeia. Como vivia na cidade, nunca segui muito as bandas de metal. A cena pós-punk, isso sim, chegou-me e Sonic Youth seria a referência maior. Mas bandas punk também, claro. O punk bateu-me muito forte mais para o fim da adolescência, incluindo aquelas bandas que reformularam um bocado o punk e deixaram de ser punk por causa dessa reformulação, como os Clash. Embora também goste das que se mantiveram fiéis à cena um bocado niilista como os Sex Pistols, eu sou mais Clash e Ramones.

MHD O teu disco anterior, O Grande Medo do Pequeno Mundo, é visivelmente conceptual. Quais são para ti as vantagens, os benefícios do formato do álbum, que parece estar tão em desuso?

SU – Para mim, uma das grandes vantagens do formato do álbum, acaba por não ser vantagem nenhuma, mas uma espécie de comprometimento nostálgico com o meu próprio crescimento enquanto ouvinte de música, que se fez muito através dos álbuns. Tento reproduzir muito aquilo que é a minha parte de consumo de música. A cultura do single era forte, mas depois, ao mesmo tempo, eram peças que entravam em álbuns. Continuo sempre a pensar nas minhas canções como fazendo parte de um núcleo de outras canções e, nesse sentido, os meus discos acabam todos por ser conceptuais porque são pensados exactamente para o conjunto. As canções, embora possam ter vida própria e as trabalhe de forma pormenorizada e singular, estarão sempre ligadas a esse espaço curto de tempo onde as desenvolvo e acabam por estar ligadas ao conjunto de temas que me estão a afligir naquele espaço curto. Então, por muito que depois esse conjunto não soe tão agregado como está na minha cabeça, para mim só faria sentido fazer as canções se saíssem agregadas, pelo menos naquilo em que intimamente as concebo.

 

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MHD Achas que, para ajudar as pessoas a ouvir o álbum integralmente, são necessários compromissos ou concessões, como por exemplo tornar as canções menos experimentais, mais melódicas?

SU – Confesso que não penso assim tanto nisso. Normalmente, o meu lado experimental prende-se mais com a parte da escrita das letras do que propriamente com a parte musical. Com a parte musical, faço muitas concessões a coisas que até não tenho o hábito de ouvir mas acho que fazem sentido aparecer nas minhas músicas. Sempre, contudo, a reboque daquilo que me surgiu no meio de uma letra. Ou até processos inversos. Se acho que fiz uma letra muito pesada, muito carregada, tendo a aligeirar um bocado o arranjo que faço da canção, por achar que a coisa só poderá chegar às pessoas e elas só terão tolerância para o que estão a ouvir, em termos da parte poética, se tiverem tolerância para o que estão a ouvir em termos da parte melódica, harmónica, musical. E, vice-versa, tendo a carregar quando as coisas me estão a fluir com alguma ligeireza em termos de escrita. Mas o meu processo criativo é um bocado egoísta, faço isso por uma questão de como se manifesta. Obviamente que quero que as pessoas me ouçam, mas não tenho uma preocupação tão grande em que me percebam. Sei que isto pode parecer um contra-senso, mas acho que a dificuldade em as pessoas perceberem as opções que tomei, vai ajudá-las a não descartar o produto como uma coisa que “já percebi, está feito, vou partir para outra”. Acho que há ali uma espécie de identidade ou proximidade com uma ideia de quebra-cabeças que às vezes, de forma inconsciente, ponho nas minhas canções por achar que não posso andar de bandeira, não posso entregar, logo à primeira, coisas que são absurdamente pessoais ou íntimas, não posso escrevê-las da forma mais óbvia possível. Ou quando as escrevo de forma óbvia, ela é tão óbvia que vai confundir as pessoas, porque vão pensar que não é óbvia. Há também um jogo de escondidas, aquilo que é absurdamente íntimo e me revela demasiado tem que ser escondido, labiríntico, as pessoas não podem lá chegar numa primeira instância. É um egoísmo, preocupar-me também com a minha nudez, não pode ser explícito. Acho que “nudez” é uma palavra que traduz bem a minha maneira de escrever. Mas depois não há tanto essa preocupação, um pensar demasiado em agradar ou não agradar quem me vai ouvir. O que agrada ou desagrada é uma consequência do trabalho egoísta que ponho nas canções.

MHD É engraçado, porque a pergunta que te ia fazer a seguir era mesmo sobre isso. Existe, na música pop, um colapso da distinção entre autor e intérprete, entre o artista e obra de arte que ele cria como autor e à qual dá o próprio corpo enquanto intérprete, no disco e em palco. Em que medida a obra de arte que crias e interpretas revela, mas também esconde o teu eu?

SU – Eu revelo-me por completo, tanto que na minha cabeça uma canção só está terminada quando, olhando para o que escrevi, sinto uma espécie de embaraço por me rever demasiado nela e digo “se já cheguei ao ponto de estar a duvidar se devo avançar com isto ou não, está feito.” Esses avanços têm sempre um lado, como te estava a dizer, um bocado encriptado. Antes de mais, por existir um prazer na procura que eu próprio tenho enquanto ouvinte e pode funcionar na relação com os meus ouvintes. Mas também porque, já que me estou a revelar, não posso estar ali (vou usar uma imagem muito gráfica) a “esfregar-me” nas pessoas. Estou a escrever uma coisa muito próxima de mim, não posso andar a esfregar-me nas pessoas com essa proximidade. Então tenho de criar uma distância. Essa surge naturalmente de eu perceber que a maior parte das pessoas que me vão ouvir estão, às vezes, a marimbar-se um bocado para aquilo que estou a escrever. Logo aí, há um confessionalismo já em si distante, por estar num formato em que as pessoas não estão habituadas a ouvir com a atenção de quem está a querer conhecer uma pessoa. Estão a ouvir porque gostam de música e querem divertir-se, querem abstrair-se. Então tenho perfeitamente a consciência de que tudo aquilo de que carrego as minhas canções vai-se dissipar nessa relação entre autor e ouvinte. Isso também me protege e sossega um bocado e posso fazer essa espécie de psicanálise, sabendo que estou no divã mas não está ninguém ali a tomar notas. Com isso ultrapasso as barreiras de alguma timidez ou vergonha que teria em dizer coisas tão íntimas. Por achar que ninguém terá paciência para estar a ouvir com a atenção que normalmente uma confissão merece.

MHD A tua produção musical é, acima de tudo, a de um cantautor. Dada a tua experiência congregacional, seria talvez mais expectável uma preferência pelo formato comunitário, polifónico da banda. Porque acabaste por enveredar pela linha da cantautoria?

SU – A linha da cantautoria acaba por nascer numa altura em que começo a fazer música um bocado mais a sério e já não era propriamente consentânea com a linha daquilo que os meus parceiros das bandas punk, rock ou ska que tinha na altura, no final dos anos 90, ouviam. Então tive de começar a produzir e a interpretar músicas sozinho e comecei a experimentar por esse lado. Muito por influência dos cantautores que, de repente, começavam a varrer aquilo que eram as minhas preferências musicais. Acho que ainda hoje não rejeito nenhuma das bandas ou músicos que ouvia na adolescência. Assumo tudo como coisas que são válidas e de que gosto de ouvir, mas no topo das preferências começou a despontar malta que também se dedicava a interpretar as suas próprias composições. O primeiro que me abalroou terá sido o Bob Dylan e muito a fase dele de cantor de protesto, em que fazia muita coisa sozinho, com a guitarra e a harmónica, e era um one man show. Isso de alguma maneira legitimou aquilo que me estava também a apetecer fazer, que era “já que não tenho parceiros, vou fazer dos instrumentos e das palavras os meus próprios parceiros de banda”. Durante muitos anos – até mais tarde voltar a ter bandas com alguma regularidade, até ter a facilidade de estar com os meus amigos da música, que na altura viviam longe – desenvolvi muito esse lado de cançonetista solitário. Então há um lado identitário que me leva a isso, mas há também um lado quase de funcionalidade.

MHD E qual é, para ti, o papel dos outros instrumentos relativamente às tuas letras e melodias vocais?

SU – Sempre dei um bocado de liberdade a quem está a tocar comigo para dar o seu input. A malta que toca comigo sempre foram amigos, gente que sempre me conheceu muito bem e à minha linguagem musical. À partida, as contribuições que trariam às minhas coisas já, de alguma maneira, reflectiam o conhecimento que tinham de mim. Então, eu confiava-lhes sempre muito a parte de arranjos – obviamente com o meu poder de veto para dizer “isto não pode ser assim” ou “isto pode ser assim” – porque já nascia de uma concepção de arranjos muito ligada àquilo que as pessoas conheciam da minha música. Mas também sempre trabalhei no sentido, lá está, de fazer esses jogos de tentar casar as letras com uma ideia musical. Ou seja, se aqui estou a falar no plural vou meter umas harmonias vocais, ou qualquer coisa em crescendo na altura em que a canção também crescer. Se aqui estou a falar de um tema soturno vou mudar para acordes menores e os solos que estão atrás vão ter que ser um bocado dissonantes. Eu recreio-me bastante a fazer esse tipo de brincadeiras. Mais uma vez, tenho a perfeita consciência que são coisas que não são filtradas por quem me está a ouvir, que acabam por consumir de maneira inconsciente aquilo que foi feito propositadamente. Mas não me preocupa que todo esse esforço passe incólume, passe ao lado, não fico frustrado por muitas vezes aquilo que me dá mais trabalho não ser aquilo que fica retido. Normalmente, quando me fazem perguntas, conto com toda a sinceridade, mas também não faço alarde desses processos. Até porque muitas vezes as soluções mais picuinhas que tenho, onde me foco, se as revelasse todas ia parecer um cromo ou até mesmo uma pessoa quase doente por alguns jogos mentais que utilizo. Por isso até me abstenho de andar a propaga-los.

MHD Em algumas das tuas canções falas de refrães. Estou a pensar em “Triunvirato” ou “Repressão”, por exemplo. No entanto, grande parte das tuas canções não tem refrão, apresentando formas que fogem à fórmula pop. Porquê?

SU – É verdade [risos]. Há esse lado de contra-senso pop, de muitas vezes fazer canções assumidamente pop mas furtar-me ao refrão e a outras fórmulas. Há canções que são muito repetitivas, que, por si só, poderiam ser bubblegum, se depois não me tornasse tão chato, conscientemente a minar algumas das propriedades mais pop das canções e a torna-las mais difíceis. Não sei se é masoquismo ou simplesmente uma maneira de ter um pé fora duma espécie de mainstream que conhece as fórmulas todas das canções, que já está à espera que as faça de uma determinada maneira e eu não o faço, se calhar, por pirraça. Às vezes as canções também crescem dessa maneira, numa forma em que existem muitas repetições mas não aquela repetição melódica que depois tradicionalmente se consolida num refrão. Não sei se estou a fugir com o rabo à seringa ou se é mau feitio ou se, às vezes, é o que é, é a solução mais óbvia. Também acontece a solução mais óbvia ser furtar-me aos refrães.

MHD Apresentas, com muita facilidade e até mesmo gosto, versões diferentes de uma mesma canção. Em que reside para ti a identidade de uma canção?

SU – A identidade da canção tem muito que ver com a mensagem que lá está contida e essa, de alguma maneira, é sempre estanque, não muda. Estou a falar das palavras, daquilo que está a ser dito, revelado, confessado. Isso é mais ou menos estanque, mesmo que, muitas vezes, repare e encontre coisas de que eu próprio não me lembrava ou não assumia, encontre coisas diferentes daquilo que é a intenção com que às vezes ando a cantar uma canção. Mas há uma espécie de ditadura da mensagem que é sempre estanque. A maneira como ela é apresentada, aí a identidade é muito mutável. Para já, desconsola-me um bocado se as coisas ficarem sempre a soar às versões de estúdio. As versões de estúdio são um momento e um momento que é transmitido. A partir daí, a canção quase deixa de ser minha, passa a ser de quem a compra, de quem a ouve. Fico depois muito contente que haja pessoas a fazer covers de coisas minhas porque vão alterar a forma como as coisas são ditas e, de alguma maneira, até alterar a intenção com que estão a dizer as palavras. Como eu é que sei o segredo do que lá está, não me choca que estejam a ser reformuladas. Mas custa-me muito que as canções fiquem presas e reféns da maneira como foram gravadas. É a maneira que mais me satura por ser um tipo de gravação em que tive de ouvir muitas vezes, nas várias misturas. Por isso estou saturado dessa versão e eu não quero estar saturado da canção. Então há uma frescura quando elas vão para o palco, quando são cantadas de maneira diferente, quando até, às vezes, me engano num acorde e essa passa a ser uma solução válida para as próximas vezes que vou tocar a canção. E é fixe quando há um input de quem está de fora ou de músicos nossos que vêm tocar comigo e fazem uma linha diferente de baixo ou mudam o solo. Deixa-me um bocado mais sossegado porque a mensagem, essa parte que é estanque, pode não perder frescura por a bandeja em que está a ser servida ser diferente, ser mais colorida, ter outro tipo de acompanhamentos à volta.

MHD – Disseste que as coisas mais rock’n’roll que tens a dizer, as metes em baladas porque senão ninguém vai ter paciência de as ouvir. Como consegues traduzir para as baladas os sentidos e atitudes associados ao ruído das guitarras ou à propulsão da secção rítmica?

SU – Acho que é perfeitamente possível. Normalmente as baladas são consagradas a histórias de amor. Então são coisas que se tornam muito melífluas (ninguém me entende se eu disser esta palavra), são coisas muito maviosasinhas e o risco de se tornar uma coisa muito xaroposa é muito grande, porque há açúcar de um lado e há açúcar do outro. Então gosto de brincar um bocado com essa descontextualização da mensagem. Por exemplo, as minhas canções de amor em balada são normalmente muito duras e não estou a falar de “ah, ela rejeitou-me”. Não, sou uma pessoa casada há muito tempo e, quando falo de amor duro, é mesmo das dificuldades de um amor concreto, que penso ter ali um lado de eternidade. Quando estás a lidar com uma coisa que aceitaste como sendo infinita e eterna, a parte dura é mesmo dura. Então, se é mesmo dura e se vou usar palavras duras e falar até do desamor dentro do amor – a coisa mais quase grotesca, monstruosa no amor entre um homem e uma mulher –, vou ter de escrever uma balada em torno disso. Mas são cenas violentíssimas que deveriam estar a fazer-me puxar pelas guitarras. E às vezes o inverso. Quando há palavras de ordem muito simples de serem entendidas, acho-as tão óbvias que vou ter de as complicar com distorções. Quando há uma mensagem que sei que não pode ser distorcida, vou distorcer as guitarras. É um bocado essa a ideia de que gosto, esse jogo. Sou um saltimbanco de cenas.

Samuel Úria | Retrato

 

MHD Sentes-te confortável em palco e dás tudo por tudo na interpretação das canções que compuseste. O que comunicas em palco de diverso ao que comunicas no disco?

SU – Para já o palco é um laboratório completamente diferente do estúdio porque tenho pessoas à minha frente e pessoas que se manifestam de maneira diferente. Não levo discursos preparados para o palco. É verdade que há histórias que vou contando, cujo sucesso também vou medindo e depois vou repetindo quase como um stand-up routine. Mas mesmo isso não é preparado. Estou em cima do palco e lembro-me: “pá, contei esta história, isto correu bem da outra vez, vou voltar a conta-la”. E isso acontece porque estou a perceber que as pessoas estão à espera que eu o faça e eu reajo muito às reacções. Então, esse laboratório sempre diferente, essa matéria-prima à minha frente sempre diferente acaba por tornar as coisas muito diferentes do ambiente higiénico, insonorizado de um estúdio. Acho que, até por isso, puxa mais por mim em coisas muito práticas. Há notas que custa muito dar em estúdio, notas agudas que não estou à vontade para cantar em estúdio e que consigo dar com alguma facilidade quando estou em palco, porque é outro tipo de libertação. Não estou a cantar para um microfone. É quase como o Alfredo Marceneiro, quando foi gravar para estúdio. Da primeira vez teve de gravar de olhos vendados porque lhe fazia confusão a parafernália de maquinaria e microfones. Não me sinto propriamente tímido em estúdio, mas não estou a dar tudo, sinto que estou a falar para um microfone, não estou a falar para pessoas, mesmo sabendo que aquilo vai chegar a pessoas. Há um lado de libertação que é literal. Não é uma libertação filosófica, é mesmo uma libertação das cordas vocais que acontece quando estou em cima de um palco. É mesmo diferente, tanto que te estou a dar esse exemplo concreto das notas agudas a que chego quando estou à frente de pessoas.

MHD Revelas um gosto por aliterações (“na valsa convulsa em volta do vulto”) e rimas internas (“o cortejo tornou-se motejo”); transformas termos técnicos em metáforas (“carga de ombro”); recorres a estrangeirismos (“windsor knot”) e referências tiradas de contextos muito específicos e situados (“Pitanguy”, “o Dylan renasceu”). São características estilísticas que me lembram o hip-hop. É justa a associação?

SU – Acho que é muito justa tendo em conta que havia um desprendimento linguístico da música portuguesa, que durante os anos 90 estava muito confinada ao hip-hop. É verdade que havia malta, sei lá… o Godinho é um exemplo clássico de alguém que estava muito à frente do seu tempo a escrever numa determinada maneira, sobretudo nessa recriação dos recursos estilísticos e num querer extrair som das frases que não tem nada a ver com a música, o ritmo ou a melodia, mas com as próprias frases já serem suficientemente rítmicas. Estou a pensar nos pares do Godinho em termos do cantautorismo nacional e não há ninguém a fazer isso dessa maneira. Há gente que é muito forte em termos poéticos e usa as figuras de estilo de forma mais clássica, a figura de estilo pela figura de estilo, não tanto para extrair esse lado sonoro das próprias figuras de estilo como, por exemplo, acontece na aliteração, ou até na rima interna, nesse repetir as rimas dentro dos próprios versos. E o hip-hop, sim, embora não todo. Acho que há um hip-hop muito ingénuo que cresceu em Portugal, mas há também, de repente, um hip-hop mais marginal que vai apostar muito nisso e que, de facto, me influencia ou, pelo menos, me legitima a fazer aquilo de que gosto: “Estes tipos já estão a fazer isto, porque é que eu não posso fazer?” E não só no hip-hop, mas também muito a música brasileira. A desconstrução do português que eles fazem, às vezes de uma maneira proscrita ou até de uma maneira desleixada, mas com alegria: “Vamos desconstruir o português ou vamos até destruir o português, mas vamos fazê-lo com um propósito e vamos fazê-lo com alegria”. Penso que isso me influenciou muito, ao ponto de ser, muitas vezes, a minha forma mais directa e rápida de escrever. Às vezes acabo algumas canções… por exemplo, essa “valsa convulsa em volta do vulto” é uma coisa que hoje em dia canto já sem sentimento de culpa, mas as primeiras vezes que cantei essa canção tinha um grande sentimento de culpa por achar que estava a abusar: “Isto é demasiado, vai parecer uma coisa artificiosa que não tem sentido, quando, de facto, o escrevi com um sentido”. Embaraçava-me o artifício tão visível. Hoje em dia estou mais pacificado com isso. Também é capaz de ser da idade, já não parece tanto a brincadeira de um miúdo a querer mostrar que consegue manusear as palavras.

MHD A canção “Vem por mim”, que fecha o teu disco Carga de Ombro (Valentim de Carvalho, 2016) incorpora um coro de vozes femininas, meio fantasmagórico. Lembrou-me logo o final do disco Modern Vampires of the City, dos Vampire Weekend, com a penúltima música “Hudson”. Coincidência?

SU – Não será coincidência no sentido em que ouvi muito esse disco dos Vampire Weekend, de que gosto bastante. Mas essa versão das vozes femininas fantasmagóricas surgiu por acaso. Na maquete que gravei originalmente e mandei para o Miguel Ferreira – que produziu o disco e me ajudou a compor algumas das canções – eu fazia uns falsetes fantasmagóricos (então comigo ficam mesmo fantasmagóricos e mesmo assustadores) para simular um serrote musical. Ficámos tão viciados nessa versão de vozes a fazer aquilo que, depois, como tínhamos miúdas no estúdio, pensámos “eh, pá, porque não passamos isto às miúdas e não experimentamos fazer isto com elas?” Foi assim até uma ideia que surgiu em cima de uma coisa que não tinha tanto a ver com o que ficou no final. Mas, lá está, podia estar subliminarmente aqui a influência dos Vampire Weekend porque é, de facto, uma canção que conheço bem, num disco que ouvi muitas vezes. Não tendo sido uma influência directa disso, se calhar, a audição depois de aquilo estar gravado e o dizer “eh, pá, isto pode ficar, vai ficar giro”, a aceitação daquilo que tínhamos acabado de gravar pode muito ter partido de eu ter isso na cabeça.

MHD Em “É preciso que eu diminua” dizes que já não te sabes inventar. Que pensas do conceito de reinvenção, na música pop?

SU – Eu acredito na reinvenção porque, lá está, como escrevo os discos de atacado, consigo perceber quem eu era na altura em que escrevi aquelas canções e consigo perceber que existem diferenças de disco para disco que têm a ver com diferenças daquilo que sou de disco para disco. Mas há uma identidade que está lá estanque. A reinvenção por si só, no contexto da música pop, muitas vezes é uma coisa farsola e digo-o sem qualquer sentido pejorativo. Acho que é uma farsa que tem graça e a maior parte das reinvenções que projecto fazer são coisas absolutamente farsolas porque já estou a predeterminar que as vou fazer, não tem a ver com a identidade, com essa diferença do que vou ser daqui a uns anos. Posso, por exemplo, pensar “daqui a dois anos, vou fazer um disco hip-hop”. É uma reinvenção farsola porque estou a premeditar uma alteração de identidade quando sou agora o mesmo que era há dez minutos, quando estava a cantar uma canção que não era de hip-hop. Mas acho que faz todo o sentido, para quem tem a missão de fazer coisas completamente diferentes, reinventar-se e aparecer com roupagens muito diferentes. Não sou nada contra essa farsa, pelo contrário.

MHD Reparei que muitos não perceberam a referência ao Ecce Homo em “Ei-lo”. O facto de usares termos que precisam, para serem entendidos, de um contexto que muitos, hoje em dia, não partilham é um inconveniente ou uma vantagem?

SU – Para mim é uma vantagem porque, de repente, estou puxar coisas completamente clássicas, que sempre foram tidas como um lado mais ordeiro do pensamento social, e a usá-las de uma forma muito rebelde, porque não só é incompreendido como às vezes é ouvido com alguma preocupação: “pá, isto aqui já não é a minha praia”. Fico muito contente por poder usar de rebeldia nas coisas que eram as menos rebeldes há cinquenta anos. Para mim é particularmente grato perceber que aquilo que é a minha cultura, uma data de valores que professo são hoje em dia as cenas mais rock ‘n’ roll que existem porque são as menos hodiernas, as que menos reflexo têm naquilo que é um pensamento moral de hoje em dia. Então, conseguir ser subversivo naquilo que sempre foi menos subversivo é um prazer e uma tensão que me ajuda a escrever canções e a me manter inspirado.

MHD É evidente o quanto a experiência religiosa enforma a tua música. O que te impede de cair no proselitismo?

SU – Nada me impede, mas não tenho essa intenção. A minha música não é de todo proselitista. Mas, de alguma maneira, se as pessoas gostam de me ouvir e se identificam com aquilo que estou a escrever, pode haver proselitismo no sentido muito básico (e vou parecer um bocado pedante, se calhar, a dizer o que estou a dizer) de haver muita gente que tenha o ambiente religioso por um ambiente um bocado acéfalo, mas ouve as minhas músicas e, se calhar, não as considera tão acéfalas quanto isso, percebe que existe vida inteligente por detrás das canções que escrevo ou nas referências que dou. E isso pode, de alguma maneira, criar-lhes uma abertura com as pessoas que professam algum tipo de religião. Nesse sentido posso estar ao serviço de um proselitismo que eu próprio não estou a fazer de forma intencional. Por outro lado, para mim, grande parte da minha cultura, do gosto que tenho pela leitura e por raciocinar, grande parte da minha maneira de pensar provém da discussão religiosa, da cultura de leitura que recebi da minha costela religiosa, da minha própria maneira de pensar o mundo, que tem também obviamente muito que ver com a prática da religião. Nesse sentido, não sendo evangelístico na maneira como estou a escrever, há um lado de autoconvencimento, de escrever sobre as conclusões a que cheguei através de um olhar religioso sobre o mundo que está explícito e, sendo explícito, pode surgir a alguém como uma mensagem de “eh, pá, anda pensar como eu, anda ver as coisas como eu vejo”. Sendo egoísta acabo por ser proselitista.

MHD Qual a diferença entre ser bom e não ser vilão (“Repressão”)? E qual a diferença entre ser bom e ser sério (“Império”)?

SU – Eu acho que o ser bom tem mais a ver com o ser sério do que propriamente com o não ser vilão. Muitas vezes remetemos a bondade simplesmente para a ausência de fazermos maldades atrozes, ficamos muito contentes por não cairmos em pulsões maquiavélicas, ou mefistofélicas. Às vezes, pelo simples facto de não cairmos em pulsões escandalosamente subversivas ou vis ou maldosas, achamos que já estamos a praticar o bem e, então, damos uma palmadinha nas costas e dizemos que somos bons. Normalmente, a seriedade, por outro lado, empurra-nos para um comprometimento com um tipo de bondade que, muitas vezes, nos obriga a fazer aquilo que não nos apetece, sai do pêlo e custa. Eu acho que a bondade tem mais a ver com superar o fazermos aquilo que nos é confortável do que com nos abstermos de fazer coisas que sabemos que podíamos e não vamos fazer por uma espécie de magnanimidade. Ser bom não é ser magnânimo, porque isso está demasiado concentrado naquilo que nós podemos ou não fazer e eu acho que a bondade tem de ser uma cena que transcende a nossa vontade, creio eu.

MHD Dizes que “o sustento é forte quando o intento é puro”. Mas alguém poderia objetar-te que de boas intenções está o inferno cheio. Que responderias?

SU – É verdade [risos]. Pois, isso é um sarilho. Mas aí já há uma espécie de comprometimento com a intenção. Ter boa intenção já é melhor do que ter más intenções e já pode, já deve ser o ponto de partida para que as coisas que se vão fazer sejam feitas conforme a intenção com que nós nos comprometemos. Essa é uma canção que fala sobretudo de um compromisso que deve ser mantido mesmo quando não nos apetece e sentido mesmo quando não nos apetece. Aí é que é um grande contra-senso. Sentirmos uma coisa mesmo quando é mais fácil deixarmos e perdermos o sentimento e há uma espécie de autocontrole que pode resultar numa coisa que as pessoas não consideram como fruto de autocontrole. O amor, partindo do autocontrole, parece uma coisa muito artificial e acho que a intenção acaba por justificar e rectificar esse lado artificioso e artificial do amor. Tem de partir de uma boa intenção, manter-se na boa intenção e ser cultivado. Quando nós cultivamos, quando temos essa intenção de o cultivarmos de uma maneira positiva, o sustento acaba por ser forte.

 

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MHD Em “Essa voz”, pode-se interpretar romantica ou religiosamente a voz, como sendo da pessoa amada ou do próprio Deus. Faz sentido decidir entre uma ou outra interpretação ou há alguma relação entre elas que justifique a ambiguidade?

SU – Fico muito contente que seja essa a interpretação – e não és a primeira pessoa a quem ela acontece – porque escrevi essa canção exactamente com esse tipo de ambiguidade, embora ela até tenha uma homenageada que não é nem a pessoa amada, nem é Deus. Eu fiz essa canção quase como um mea culpa para uma amiga da rádio que tem uma voz sublime. Disse “vou escrever uma canção para ti e vou elevar-te elevando aquilo que é uma das tuas maiores características, que é a tua voz.” Mas fi-lo exactamente da maneira como gosto de fazer as canções, que é impregna-la de ambiguidade para que quem não conheça essa pessoa, não faça a mínima ideia de a quem é que me estou a dirigir, possa compreender a canção nesses patamares e achar que faz sentido. E, de facto, acho que pode ter essas outras leituras. Ainda bem que estás a comprovar o sucesso da minha intenção!

MHD Qual o papel na tua vida de pessoas como o teu avô Armelim?

SU – O meu avô foi uma figura muito presente na minha vida. Como a minha avó, mulher dele, morreu muitos anos antes dele, acabou por passar muito tempo com o meu agregado familiar, com os meus pais, a minha irmã, acabávamos sempre por ser cinco. Foi uma pessoa com quem convivi muito, cujos limites testava muito, porque era uma pessoa nascida em 1918, muito austera e severa. Mas era uma pessoa absolutamente querida por toda a gente porque era muito hospitaleiro. Não havia ninguém que passasse necessidades que ele não levasse para casa para dar uma refeição. Se alguém vinha de fora ficava sempre lá em casa a pernoitar. Uma pessoa sempre muito composta e austera no trato e na maneira como se apresentava, mas um coração mole. E faço a brincadeira de falar do coração dele, porque o meu avô foi operado ao coração, em 1984, e tinha uma cicatriz enorme, que eu invejava. Eu gosto muito de cicatrizes, e achava muita piada à do meu avô. Ia de alto a baixo no peito, parecia que tinha um fecho éclair e acho que era uma tatuagem muito gira. Então cresci quase a cobiçar aquele tipo de cicatriz porque, para todos os efeitos, mostrava só uma doença cardíaca, mas podia contar uma história diferente, porque ele tinha muito bom coração. Era o alvo das minhas brincadeiras, perfeito para pregar partidas, porque tinha pouca paciência para elas, embora depois, quando o conseguia fazer rir, era como se tivesse conquistado o mundo e arredores. Ele ria quase sempre, era impossível, mas perdia também a paciência com muita facilidade, então provocava-o para ele perder essa paciência, já era uma espécie de rábula entre nós. Mas depois decidi homenageá-lo em canção, porque acho que merece. Era uma pessoa que ia passar anónima até ao fim dos seus dias, quando, para muitas pessoas da nossa terra de Tondela, não é uma pessoa minimamente anónima, é quase um histórico da terra por aquilo que fez. Apesar da sua pegada (e falei da pegada porque ele era sapateiro) ser uma pegada que não fica nos livros, porque foi a pegada de ajudar as pessoas, ser simpático para elas, ser amável. Ele não construiu nada, não tem nenhum empreendimento com o nome dele, não tem nenhuma patente no nome dele, mas tem uma canção e tem a cicatriz dele tatuada em muita gente.

Tinha de terminar com esta canção. Se sempre me foi grato ouvi-la, tenho agora a agradecer-lhe uma menção, em pleno concerto, do meu nome e deste último momento da entrevista. Egoísta? Talvez… mas é da maneira que vo-la dou a conhecer.

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