©70ª Berlinale

70º Festival de Berlim | ‘First Cow’: Vacas e Bolinhos

A competição da Berlinale 70 acordou este sábado quase silenciosamente, mas muito bem com ‘First Cow’, o novo filme de Kelly Reichardt (‘Meek’s Cutoff’), a realizadora norte-americana dos ‘filmes de fronteira’, desta vez com a história de dois amigos ‘empreendedores’, no oeste selvagem.

A realizadora Kelly Reichardt (‘Night Moves’, 2013 e Certain Women, 2016) realizou e co-escreveu o argumento deste ‘First Cow’, um filme magnifico — que nos fez sentir só ao terceiro dia, de que vale a pena estar nesta renovada Berlinale 2020 — feito a partir do romance ‘Half Life’, (2005) de Jonathan Raymond. Silenciosamente, obliquamente e sem grande estardalhaço, Kelly Reichardt volta a confirmar o seu enorme talento para contar boas e pequenas histórias, mas de grande significado sobre uma América das promessas, longe das cidades, dos grandes cenários e dos aparatos técnicos dos estúdios. Reichardt tornou-se quase uma espécie de cronista histórica, da América profunda, da natureza, revelando lutas solitárias de pessoas das classes mais desfavorecidas que batalharam e, inevitavelmente, fracassaram, para conseguirem o seu pedaço do sonho americano: Nunca quis contar uma história desde o início da vida de alguém até o fim. (…). Sou a favor dos pequenos momentos, por oposição aos maiores da vida. Talvez tenha sido isso que me atraiu na escrita de Jon Raymond, que também está focada nesses pequenos momentos, comentou a realizadora para justificar porque adaptou este romance, que tem tudo a ver com os seus filmes anteriores.

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TRAILER DE ‘FIRST COW’

O filme começa com as águas de um rio correndo placidamente entre uma floresta fria e verdejante. Nas margens, uma mulher passeia um cão e de repente o tempo retrocede, trazendo à tona uma velha história enterrada num passado, por volta de 1820, nos territórios de fronteira das primeiras colonizações do oeste dos EUA. No início do século XIX, os caçadores de peles não são apenas os únicos a aventurarem-se pela natureza e pelas florestas do Oregon. Andavam por lá também dois jovens outsiders: Cokie (John Magaro), um taciturno e solitário cozinheiro, sem família vindo do Maryland, que encontra em King Lu (Orion Lee), um sonhador imigrante chinês, um amigo para a vida e morte. Esta amizade improvável, apoia-se num engenhoso esquema comercial: um negócio de panificação, de uns ‘bolos oleosos’, que acabam por tornar-se um grande sucesso no oeste selvagem. O único problema é que uma das principais matérias-primas, para fazer os bolos é conseguida de uma forma ilegal: o leite roubado da primeira vaca no território, pertencente ao very british rico local (Toby Jones). Ao contrário da maioria dos western clássicos, os filmes de Reichardt, prestam sempre homenagem a pequenas  personagens, que vivem à margem da sociedade, que precisam de pegar o destino com suas próprias mãos: ‘First Cow’ é, de certa forma, uma história clássica do sonho americano, com Cookie e o King Lu acreditando que, se trabalharem o suficiente, poderão ter uma história de sucesso americana, diz a realizadora.

First Cow
First Cow – ©70ª Berlinale

Em ‘First Cow’, em vez dos colts à cintura, há uma colher de mel e um balde de leite roubado. Estes pequenos bandidos, representam um outro cinema do Oeste, no qual os EUA também projectaram os seus sonhos do nascimento de uma nação: não uma terra de conquista económica ou material, mas antes de um encontro de várias culturas e pessoas, no fundo um país de imigrantes, que se esforçaram muito — nem sempre de uma forma legal — para terem sucesso na vida e construírem um país. No entanto,  como filme ‘First Cow’ tem outros encantos: o diretor de fotografia Christopher Blauvelt, que trabalhou com Reichardt nos seus três filmes anteriores, consegue fazer distinções dramáticas entre os verdes das florestas verdejantes, os rios correndo, os castanhos da lama ou as cinzas das ruas sujas e, barracos em ruínas, construídos pelos primeiros colonos, no fundo da sua vida miserável e quase selvagem. O elenco está repleto de pequenas e adoráveis surpresas. Primeiro a notável interpretação dos dois actores protagonistas: John Magaro e Orion Lee, que dão uma excelente ideia do ambiente e do perfil dos desajustados sociais que viviam e se aventuravam na última fronteira do Oeste; Toby Jones  (‘Out of Blue’) procura representar um certo tipo da alta sociedade inglesa — não sabemos muito bem qual o seu  grau de desajustamento social, pois até vive com uma nativa — que tenta manter ainda vivo o estilo regency, do chá das 5. Ewen Bremner (‘Trainspotting’) com um escocês áspero e incompreensível, que sem legendas quase não se percebe uma palavra do que ele diz; aliás como num solene momento de um diálogo-negociação entre King Lee e um ‘índio civilizado’, por uma canoa para encetar a fuga pelo rio.

Reichardt sempre contou pequenas histórias para pequenas audiências, pese embora as restrições auto-impostas e, ‘First Cow’ não tem obviamente a dimensão de ‘Certain Women’ (2016), um dos seus filmes maiores, protagonizado por Michelle Williams, Kristen Stewart e Laura Dern. Pelo contrário estes dois actores-protagonistas não são estrelas da dimensão das actrizes referidas. Realizado novamente no formato 4:3, ‘First Cow’ não tem um clímax muito forte e emocionante que nos dê tensão, mas é um filme suave e perfeito, com uma ação desenvolta e, finalmente, com uma história comovente e até hilariante em alguns momentos, sobre dois anti-heróis que procuram uma vida melhor e realizar os seus sonhos, para quem o destino acaba por tornar-se mais forte. É no fundo uma pequena e melancólica memória de um tempo distante que pode ser bem mais parecido com o de agora, mais do que à partida poderíamos  pensar. Este extraordinário cenário alternativo, de ‘First Cow’, mostrado pela cineasta Kelly Reichardt — que não quer nada com Hollywood — pode mesmo adquirir ainda um significado político muito importante, para a actual visão contra retorcida sobre os imigrantes, defendido pela Administração Trump.

JVM (em Berlim)

One thought on “70º Festival de Berlim | ‘First Cow’: Vacas e Bolinhos

  • Grande Vieira Mendes continue assim por muitos anos ,e eu que o leia obrigada

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