70ª Berlinale ©

70º Festival de Berlim | ‘Never Rarely Sometimes Always’: A Caminho de Um Urso

A realizadora e escritora Eliza Hittman (‘Beach Rats’ 2017), depois da estreia de ‘Never Rarely Sometimes Always’ no Festival de Sundance há duas semanas, apresentou-o aqui como um dos melhores filmes da competição da Berlinale 70.

‘Never Rarely Sometimes Always’ , de Eliza Hittman é um extraordinário e envolvente relato sobre uma adolescente, de uma pequena cidade do interior dos EUA, que tem de lidar com uma gravidez não-planeada. Para já, é o grande filme a concurso, que só pode rivalizar em qualidade e entusiasmo com First Cow, da outra norte-americana Kelly Reichardt. ‘Never Rarely Sometimes Always’ é um filme de uma espantosa economia de meios ao nível do argumento e diálogos (os silêncios e os ‘okay’ são vitais), e que conta a história de Autumm (Sidney Flanigan) uma miúda de 17 anos que frequenta o ensino médio e, cresceu num ambiente da classe média baixa, da zona rural da Pensilvânia, onde a vida é monótona e aparentemente tranquila.

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‘Never Rarely Sometimes Always’-70ª Berlinale |©BBC Films

Perante uma gravidez não-desejada, vê que não vai poder contar com o apoio da família, nem de muita gente, para qualquer decisão que possa vir a tomar no futuro. A sua prima Skylar (Talia Ryder), com que partilha um tedioso trabalho em part-time como caixas-de-supermercado e, tem de aturar um desprezível supervisor, é a única amiga disposta a ajudá-la a resolver o problema, sem qualquer questionamento. E assim as duas partem juntas com pouco dinheiro e de autocarro, através das fronteiras estaduais dos EUA, em direcção à cidade de Nova Iorque, para tentar a ‘consertar’ a complexa situação.

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Sem adornos ou juízos de valor, Never Rarely Sometimes Always’ vai aos pouco tornando-se num filme admirável que mistura realismo e melancolia. Os rostos e as paisagens cinzentas e invernosas da viagem ou da cidade de Nova Iorque, são muito bem fotografadas com o granulado do 16 mm, pela directora de fotografia Hélène Louvart (‘A Vida Invisível de Eunice Gusmão‘) e são uma marca desse nostálgico registo feminino. Ao mesmo tempo dá-nos um impressionante retrato dos problemas da adolescência e das mulheres, através de duas talentosas descobertas como actrizes: as jovens Sidney Flanigan e Talia Ryder, que conseguem uma química interpretativa extraordinária (nos silêncios e olhares) encarnando os seus papéis com enorme naturalidade e conseguindo transformar um filme simples, numa (sem exagero) obra-prima de uma enorme precisão emocional. Num momento em que os direitos individuais de homens e mulheres, parecem estar ameaçados em muitos estados e países do mundo, por razões político-ideológicas e religiosas, este filme merece uma maior atenção pela forma clara e directa com que faz uma contemplação sobre a questão do aborto e da violência sobre as mulheres. Isto é, tratando o aborto como uma escolha responsável e individual, feita com um pragmatismo moderado. Tratando-o ainda como uma questão de segurança para as mulheres e como deve ser prestado em certos casos, pelos serviços de saúde pública.

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’Never Rarely Sometimes Always’-70ª Berlinale ©BBC Films

A cena crucial com a conselheira da clínica, que dá ao título ao filme ’Never Rarely Sometimes Always’ — as multi-respostas a um inquérito à situação da gravidez —, vai naturalmente tornar-se num marco histórico do cinema feminista, da defesa dos direitos e abusos contras as mulheres. Tal como ‘4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias’, o filme romeno, escrito e dirigido por Cristian Mungiu, e Palma de Ouro do Festival de Cannes 2007, também este ‘Never Rarely Sometimes Always’ é um filme doloroso, mas espetacular para ser visto por todos os públicos, inclusive os adolescentes, até pelo seu lado pedagógico. Não vai sair da Berlinale sem um Urso e quanto a prémios não vai ficar por aqui!

JVM (em Berlim)

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