Atlantique | © Festival de Cannes

72º Festival de Cannes | ’Atlantique’ e ‘Les Misérables’

’Atlantique’, a primeira  longa da atriz-realizadora franco-senegalesa Mati Diop, está na disputa pela Palma de Ouro do 72º Festival de Cannes, aliás como ‘Les Miserábles’ do compatriota Ladj Ly. Dois filmes jovens que saíram de curtas e ambos sobre o tema da exclusão.

A jovem realizadora Mati Diop de 36 anos, nascida em Paris, — filha do músico Wasis Diop e sobrinha do cineasta Djibril Diop Mambéty, — fez na sua primeira incursão na longa-metragem uma espécie de regresso às suas raízes senegaleses. ‘Atlantique’ é em primeiro lugar uma crónica de adolescência africana, ampliando o seu documentário de curta-metragem intitulado ‘Atlantiques’. Só que neste há como que uma mistura de realidade e ficção, já que o filme começa como um romance, passado nos subúrbios de Dakar, em Thiaroye com um jovem e lindo casal: Sulaiman (Ibrahima Traore) e Ada (Mama Sané, uma actriz muito luminosa e poderosa). No entanto, parece que vamos assistir a um ‘Romeu e Julieta africano’, pois Ada foi prometida a Omar, que obviamente ela não gosta. Contudo, tal como no seu primeiro filme, Mati Diop insistiu em evocar neste, tanto aqueles que ficam como aqueles que partem. Com o seu grupo de amigos e companheiros de infortúnio, operários da construção civil, de uma torre futurista em Dakar, que não são pagos há meses, Suleiman embarca numa frágil piroga em direcção ao mar e à procura de uma vida melhor. Só que o oceano e os seus perigos, suspeitamos, dá-lhes o destino de muitos migrantes e vai acabar por vencê-los.

‘Contudo, tal como no seu primeiro filme, Mati Diop insistiu em evocar neste, tanto aqueles que ficam como aqueles que partem’.

‘Atlantique’, é um filme dedicado ao tema das migrações, mas feito de uma forma bastante original através de uma odisseia antecipadamente perdida, em que Diop vai evocando sem nunca revelar essa perda, exceto mostrando as ondas revoltas do mar e em fundo o horizonte desfocado. Segue no entanto vários caminhos revelando outras questões como os casamentos combinados, o destino das mulheres, o trabalho clandestino e um estilo de miséria em África. Diop fá-lo brilhantemente através de um redemoinho de géneros cinematográficos indefiníveis, que não são muito comuns na simplicidade dos filmes africanos: investigação policial, melodrama, crónica social, fábula política, ou até mesmo história de fantasia que mistura uma misteriosa epidemia com fantasmas ou zombies como no filme de Jarmusch. ‘Atlantique’ é um filme muito bonito que não se esgota no tema das migrações que prende o nosso interesse e revela uma outra visão de África.

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OS SUBÚRBIOS PALMO A PALMO

Já começaram a chamar ao jovem realizador Ladj Ly, (37 anos), o ‘Spike Lee francês’, pois, tem tratado ao longo da sua ainda curta carreira, os temas da descriminação e da violência urbana nos bairros problemáticos e periféricos de Paris. Cresceu na zona de Clichy-sous-Bois e Montfermeil, onde coabitam várias comunidades e religiões, propensas a muitos conflitos entre ganas locais. Ladj Ly começou como autodidacta, mas entretanto formou-se na prestigiada escola de cinema FEMI. Em seguida criou o colectivo de ensino e produção Kourtrajmé, exactamente com o objectivo de integração social dos jovens da periferia através do cinema. Doze anos depois de ‘365 dias Clichy-Montfermeil’, o seu primeiro filme sobre os tumultos de 2005 nos subúrbios de Paris, realizou em 2016 a curta-metragem ‘Les Misérables’, selecionado para a competição do Festival Clermont-Ferrand 2017.

‘Ladj Ly, e a primeira seleção para o Festival de Cannes. À partida é para já um dos grandes candidatos à Câmera de Ouro’.

Curiosamente, essa obra estreou em Portugal na competição do Arroios Film Festival 2017. A curta inclusive surpreendeu com a nomeação aos César 2018, ao ponto do Canal+ se entusiasmar para Ladj Ly avançar com uma extensão da história. Este ‘Les Misérables’ 2019, é a primeira longa-metragem de ficção de Ladj Ly, e a primeira seleção para o Festival de Cannes.

Festival de Cannes
Com uma França cheia de conflitos só futebol funciona como elemento agregador.

À partida é para já um dos grandes candidatos à Câmara de Ouro. A apresentação, o tema, o ritmo inquieto da câmara e a narrativa do filme nesta competição é para já uma boa surpresa. Tornou-se ainda com poucos filmes vistos até agora, um dos mais interessantes e uma lufada de ar fresco. O herói de ‘Les Misérables’, (em versão-longa) é o mesmo, Pento (Damien Bonnard), um polícia calmo e sensato, apesar da pressão, que se junta à brigada especial anti-crime da localidade de Seine-Saint-Denis e acaba testemunhando e intervindo ainda sem estar enquadrado nas situações, num pequeno conflito que acaba por ‘incendiar’ o bairro, logo no seu primeiro dia de giro. Com interpretações musculadas, filmado ora com câmara à mão, ora com um drone, ‘Les Misérables’, aproxima-se bastante do universo de Vitor Hugo escrito no século XIX, transposto para os dias de hoje e da França da actualidade. Aliás como já o tinha feito Jacques Audiard com ‘Dheepan’, a Palma de Ouro de 2015 , onde estão as mesmas questões de integração, desigualdade social, miséria conflitos entre gangs rivais e a ação por vezes arbitrária da polícia, que Ladj Ly sentiu igualmente na pele e onde viveu. Sem bons nem maus, nesta ficção, Ladj Ly criou mais um eco perturbador da Europa em que vivemos, em que o futebol parece ser apenas o elemento agregador.

José Vieira Mendes

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