Elia Suleiman

72º Festival de Cannes | ‘It Must Be Heaven’ : O céu de Suleiman

’It Must Be Heaven’, o novo filme do cineasta palestiniano Elia Suleiman, é uma espantosa comédia burlesca que, a fechar quase esta Cannes 72, faz uma brilhante síntese dos temas, problemáticas e géneros de todos os outros filmes que por aqui passaram. Pode ser que me engane, mas pode estar aqui o grande candidato à Palma de Ouro 2019.

‘It Must Be Heaven’ é a quarta longa-metragem de Elia Suleiman, um cineasta quase ‘nómada’ mas bastante habituado aos festivais internacionais, sobretudo a Cannes. Suleiman revelou-se no panorama internacional cinematográfico com sua trilogia de filmes que têm como pano de fundo o conflito israelo-palestiniano: ‘Chronique d’une disparition (Prémio de Melhor Filme no Festival de Cinema de Veneza 1996), ‘Intervenção Divina’ (Prémio do Júri no Festival de Cinema de Cannes 2002) e ‘O Tempo Que Resta’ (seleção oficial do Festival de Cannes 2009). O  título ‘It Must Be Heaven’ (deve ser o paraíso…à letra) diz logo alguma coisa sobre este filme e sobre este cineasta que combina burlesco, fantasia e drama e se impôs com um estilo cinematográfico único.

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O filme interpretado pelo próprio Suleiman, que se coloca mais uma vez como observador passivo e quase não fala — o chapéu tropical e as camisas-túnicas dá-lhe um ar de um Jacques Tati, do Médio Oriente, aliás ao qual é muitas vezes comparado — começa de uma forma simbólica na Palestina, na sua velha casa de família. Vê-se que procura desfazer-se das roupas e das memórias de um dos seus progenitores recém-falecido. Aliás é aos pais e ao crítico e filósofo John Berger que dedica ‘It Must Be Heaven’. Se nos seus filmes anteriores a Palestina era uma espécie de microcosmos das questões mundiais, desta vez o cineasta inverte a questão e transforma o mundo num reflexo da questão israelo-palestiniana. Em ‘It Must Be Heaven’, Sueleiman deixa o seu país para encontrar a paz. Mas ao procurá-la, o seu objectivo é esquecer a sua identidade — com o o protagonista judeu de ‘Sinónimos’, de Nadav Lapid, Urso de Ouro da Berlinale 2019 — e integrar-se em outra sociedade ou país, ao mesmo tempo que procura, aparentemente sem sucesso, um produtor para o seu novo filme. Não importa para onde viaje seja para a Europa ou para os EUA, sente que a tensão é global  e generalizada. Seja numa Paris primeiro deserta, depois marcada pelo aparato militar do 14 de Julho passado ou dos policias ridículos que procuram justificar sua inutilidade; ora numa Noite de Halloween ou no relvado do Central Park de Nova Iorque, onde tensões sociais, bizarras e improváveis acontecem sobre o seu olhar; terminando num controlo aeroportuário kafkiano, onde ele (e todos nós quando viajamos e mesmo quando estamos no Festival de Cannes, a isso estamos sujeitos) é confrontado com a caricatura de um check point como os que existem entre Israel e a Palestina. Através das suas viagens, voos, introspecções, conversas com produtores ou alunos de cinema, comunidades de palestinianos ou amigos (como o actor e cineasta mexicano Gael Garcia Bernal, que faz uma ‘perninha’) Elia Suleiman coloca no seu silêncio — há uma única vez que surpreendente o quebra para afirmar a sua identidade — e com um tom de humor muito peculiar, questões muitos sérias que afectam o nosso mundo de hoje; e que curiosamente cruzaram muitos filmes que passaram nesta competição de Cannes 72: a violência, o medo, a tensão global, o capitalismo e as desigualdades sociais e, principalmente essa questão fundamental que é onde está esse lugar seguro que podemos chamar a nossa casa? Para que o céu deva realmente ser o céu na Terra.

José Vieira Mendes

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