'Annette', de Leos Carax © NOS Audiovisuais

74º Festival de Cannes: ‘Annette’, um musical inconformista

‘Annette’, de Leos Carax (‘Holly Motors’), o filme de abertura da edição 74 do Festival de Cannes é um filme maravilhoso, um musical subversivo, protagonizado por Adam Driver e Marion Cotillard, carregado de romantismo, mas ao mesmo tempo de tragédia e do mau-estar do mundo contemporâneo.

‘Annette’, a sexta longa-metragem de Leos Carax, começa logo de uma maneira surpreendente: com um prodigioso prólogo nos compassos de uma abertura musical, com os seus parceiros a banda Sparks, num estúdio de som. Carax ele próprio está aos comandos da mesa de mistura — como Jean-Luc Godard na mesa de montagem — e depois com os atores-personagens a apresentarem-se ao espectador, num conjunto de cenas ligadas das ruas de Los Angeles, que ilustram logo a dança e a história de amor entre Henry McHenry (Adam Driver) e Ann Defrasnoux (Marion Cotillard); e depois o fim da rodagem do filme em Hollywood. Efectivamente enredo passa-se em Los Angeles, da actualidade. Henry é um famoso actor de stand-up comedy com um humor (às vezes até demasiado) incisivo e inoportuno, que tem um espectáculo intitulado ‘O Macaco de Deus’: um verdadeiro desperdício de cinismo e uma sucessão de provocações banais e agressivas, com as quais o protagonista alimenta seu enorme ego, perante um público interactivo, mas básico. Ann, por sua vez é uma soprano da ópera de renome internacional, que actua no Orpheus Theatre, em Los Angeles. O casal é o centro de todas as atenção e juntos formam, apesar das suas diferenças, um par feliz que vive rodeado de todo o glamour e conforto. Primeiro vêm as acusações de violência e abusos sexuais de mulheres, contra Henry e depois o nascimento da filha de ambos, Annette, uma estranha e misteriosa criança — com um destino excepcional —  que irá mudar completamente as suas vidas e percursos artísticos.

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Assim, a história de ‘Annette’, evolui entre uma ácida dissecação das misérias do mundo do entretenimento e um envolvente retrato de um amor excessivo (que se sente logo que não vai acabar bem), em tempos da banalidade e falsos moralismos. E Carax compõe um musical total — não há praticamente diálogos falados — que reivindica, através de uma estrutura de tragédia (com coro e tudo), um despertar coletivo, contra a quebra de valores, na nossa sociedade da actualidade. Se em ‘Holy Motors’, Carax começou o filme com um público de espectadores adormecidos, que parecem não querer olhar para mais longe, em ‘Annette’, o público do comediante Henry McHenry é uma turba, que ajuda a exaltar a mediocridade e a condenar o politicamente correcto, com ‘bocas’ e risadas grotescas. Por isso, sempre atento às tendências da sociedade e aos ares da época, Carax voltou a ir buscar essas referências: em ‘Má Raça’ era o vírus que evocava a epidemia da SIDA; em ‘Annette’, o drama da violência de género, mas também ao linchamento público de celebridades do entretenimento, caídos em desgraça de um momento para o outro. Em seguida, há também uma cena em que é recriada, o espectáculo do intervalo de um Yankee Superbowl, com todos os jogadores ajoelhados referindo-se obviamente ao gesto anti-descriminação racial de Colin Kaepernick — como uma denúncia da violência policial contra os afro-americanos — que tem sido repetido agora nos jogos do Europeu de Futebol. Carax atira-se a tudo e a todos e ousa, mesmo sem qualquer elitismo exaltar a integridade da alta cultura — representada nos vários e lindíssimos espetáculos de ópera protagonizados por Ann — e denunciar a decadência e boçalidade da cultura popular da actualidade.

Annette
Annette/©Festival de Cannes.

‘Annette’ foca-se então, nas desventuras de quatro personagens (além de Henry e Ann, incluem uma miúda-marioneta e um terceiro amante da discórdia, interpretado por Simon Helberg, o Howard Wolowitz da série  A Teoria do Big Bang). E encontra o seu caminho com o nascimento da filha dos protagonistas, cujo o nome dá título ao filme. O nascimento de Annette, é filmado de uma forma bastante divertida: um ecrã médico, capta os batimentos cardíacos do bebé, transformado-os, num sensor multi-colorido de ondas musicais, do tema que acompanha o filme. Depois o filme mergulha num registo muito negro que roça quase o sinistro universo do escritor Edgar Allan Poe — aliás o primeiro nome que aparece nos agradecimentos de Carax, nos créditos finais. A tragédia vai-se ampliando com base no guião feito a partir das canções compostas pelos Sparks, como se fosse uma fábula macabra como base numa aparatosa ópera ou cena de dança-teatro, como a da tempestade que faz lembrar ‘O Navio’, de Fellini ou os espectáculos de Pina Bausch. Às vezes ‘Annette’ fez-me lembrar também a ópera-rock Tommy, de Ken Russel (1975), mas as referências cinéfilas são mais que muitas e muito bem aproveitadas.  Carax, é efectivamente um eterno amigo dos excessos e há muito que pisca o olho para a possibilidade também de dirigir um ‘espectáculo total’ (Gesamtkunstwerk), até pela monumentalidade das suas encenações no cinema; e por esse seu quase recorrente conceito de fuga perpétua dos seus personagens para a auto-destruição, para a tragédia. ‘Annette’ além da história de amor prematura entre Henry e Ann, encontra o cerne de seu discurso, na inquietação em que o personagem de Henry mergulha, ao não saber muito bem, como lidar com o desafio da paternidade. Ann (numa maravilhosa interpretação de Marion Cotillard que canta lindamente como já tínhamos visto em ‘La Vie En Rose’) é suave e discreta e apesar do seu talento e reconhecimento, está longe de ter o comportamento de uma diva.

Festival de Cannes
‘Annette’/Festival de Cannes ©

Por outro lado, o personagem interpretado por Adam Driver (com sua autoridade e competência de sempre e até canta como nunca o vimos ou aliás acho que o vimos num tema de História de um Casamento’) parece rever-se em comediantes, grandes agitadores, como Lenny Bruce ou Andy Kaufman. Porém, a complexidade existencial e as contradições do seu personagem no palco, ‘O Macaco de Deus’, acabam por empurrá-lo para um abismo amoral sem retorno. Para fechar o círculo das relações pais-filhos, Carax dedica o filme à sua filha, Nastya Golubeva Carax, de quem na verdade nunca foi tão próximo como agora, que acompanha o pai no prólogo e no epílogo do filme. E afinal que se passou com a personagem de Annette? O filme acompanha a triste odisseia, dessa deliciosa menina-marioneta, com uma voz melodiosa como a mãe, que acaba por transformar o filme num apelo à responsabilidade das gerações adultas, que são as verdadeiras culpadas do desastre cultural e moral (e ambiental), que ameaça o presente e o futuro das novas gerações.

Annette
‘Annette’/Festival de Cannes ©

Carax faz uma dura crítica ao estado de coisas e culmina com uma extraordinária sequência em que o personagem de Henry McHenry não só é julgado em tribunal pelos seus pecados, como também já na prisão pela própria filha, numa das passagens mais belas e comoventes do filme. Enfim sempre com os seus excessos e monumentalidade Leos Carax, além de apontar e questionar todos estes aspectos, convida-nos a cantar e a dançar sem parar, (e não apenas na nossa cabeça, como se diz no inicio do filme) assumindo uma postura de subversão e o inconformismo, contra o mundo em que vivemos. Uma maravilha! Embora daí ‘abanar o capacete’! Estreia muito em breve nas salas de cinema em Portugal! A não perder!

JVM

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