Festival de Cannes ©

74º Festival de Cannes (dia 2): Passando Bem…

Apesar das muitas dificuldades na reserva informática de bilhetes, não impediram que visse ontem na competição dois bons filmes: ‘Tout s’est bien passé’, de François Ozon um filme nada sombrio sobre a eutanásia e ‘Le genou de d’Ahed’, uma catarse cinematográfica do israelita Nadav Lapid. 

Já lá vai longe o tempo que o francês François Ozon se estreou aqui no Festival de Cannes, pela primeira vez com a sua primeira longa-metragem ‘Sitcom’, na Semana da Crítica de 1998. Dai para a frente a maioria dos seus filmes, estrearam também aqui nas diversas secções. É quase um filho da casa, e até mesmo Verão de 85’, entretanto estreado em Portugal, esteva na Competição Oficial do Festival de Cannes 2020, que não chegou a realizar-se por causa da pandemia. Este ano, nesta 74 edição ainda limitados, mas presentes François Ozon estreia ‘Tout s’est bien passé, um filme notável, feito a partir de um premiado romance, lançado em França em 2013, da escritora Emmanuèle Bernheim (no filme como Sophie Marceau, linda como sempre), dedicado ao fim de vida do seu pai, o coleccionador de arte André Bernheim, muito bem interpretado pelo veterano André Dussollier. É uma história dolorosa e tocante, contada com uma enorme sensibilidade, mas ao mesmo tempo, quase tom de comédia de costumes.

VÊ TRAILER DE ‘TOUS S’EST BIEN PASSÉ’

Era inicialmente para ser realizado por Alain Cavalier — amigo da família Bernheim — que evoca mesmo esta história verídica passada no seio de uma família da elite cultural francesa no seu documentário ‘Être vivant et le savoir’, que foi apresentado numa sessão especial do Festival de Cannes 2019. A escritora Emmanuèle Bernheim — filha também da escultora Claude de Soria (1926-2015) — foi colaboradora regular de François Ozon na escrita de argumentos como ‘Sob a Areia’ (2000), ‘Swimming Pool’ e ‘5×2’ ambos de (2014), faleceu a 10 de maio de 2017, aos 61 anos. Emannuèle chegou mesmo a trabalhar com Cavalier nessa história na qual ela contava como ajudou o seu pai a morrer. O seu cancro declarou-se durante o projecto e o filme foi apanhado pelo seu falecimento. François Ozon volta a pegar nesta história e passa-a para o domínio da ficção. num tom mais suave, até algo divertido, devido em boa parte à graça e ao positivismo da extravagante figura que foi o patriarca Bernheim e da fabulosa interpretação de Dussollier. François Ozon pretende obviamente fazer também uma homenagem à escritora e à sua amiga: Senti uma enorme necessidade de me apropriar desta história. Conheci a Emmanuèle bastante bem, para saber que ela não sairia ofuscada e que não me iria censurar por ter adaptado o seu romance. Além dos já referidos protagonistas ‘Tout s’est bien passé’ é interpretado ainda por Charlotte Rampling, Hanna Schygulla — que maravilha este regresso daquele rosto e daquela voz doce sotaque a falar francês — , Géraldine Paillas, Grégory Gabedois e Éric Caravaca (no papel do jornalista e crítico de cinema Serge Toubiana, o companheiro de Emmanuèle). O filme trata obviamente do tema da eutanásia, dos por vezes contraditórios papéis e desejos da família nestes casos e sobretudo procurar retratar uma temática, que continua a ser uma enorme tabu na sociedade francesa. Portanto, há enorme sentido de oportunidade neste tema polémico, que tem sido discutido em vários parlamentos por essa Europa fora relevante também para a opinião pública, inclusive em Portugal. Este tema foi igualmente abordado em ‘Quelques heures du Printemps’ (2012), um filme de Stéphane Brizé.

VÊ TRALER DE ‘LE GENOU D’AHED’

Urso de Ouro na Berlinale 2019 com Sinónimos, o realizador israelita Nadav Lapid trouxe à competição o seu novo filme ‘Le genou d’Ahed’. E continua a seguir um percurso marcado por um cinema autobiográfico, fisico, político e formalmente bastante inovador do ponto de vista da narrativa. Curiosamente um percurso, que parece ter chegado aos extremos, com este que mistura de filme intimo com o político, que é uma verdadeira catarse cinematográfica, carregada de energia e fulgor, mas também de muita raiva. A história gira à volta do estado de alma destrutivo, de um cineasta, marcado pela morte recente da mãe, a quem parecia bastante ligado, até pelo cinema e, que é convidado a apresentar um dos seus filmes numa das cidades perdidas nos deserto, de Israel. Lá vai cruzar-se com a uma bela e inteligente bibliotecária, funcionária do Ministério da Cultura, com quem aos poucos nas poucas horas que passam juntos, parece ganhar alguma química e afecto. Porém ao mesmo tempo, que revolve as suas memórias para construir um argumento para o seu novo filme, recrudesce-lhe um sentimento de revolta contra todos os atentados à liberdade cívica e de expressão, a que estão sujeitos os cidadãos de Israel (e a população não israelita, que foi submetida), num país que na verdade é uma democracia disfarçada. O filme que mistura efectivamente  um discurso intimo com um ideal político, é bem mais interessante do ponto de vista narrativo do que cinematográfico. Foi rodado em 18 dias, — parece em boa parte filmado com as amplas possibilidades de manejo de um smart phone — num momento e num contexto de urgência, em que em Israel, existe uma enorme desvalorização (ou melhor hostilidade) em relação à cultura, como fundamento de liberdade das pessoas. ‘Le genou de d’Ahed’ é um retrato íntimo, mas ao mesmo tempo representa um estado de alma colectivo, que mostra as diferentes facetas e a radicalização vivida — aguardamos com esperança o novo governo de coligação — na sociedade israelita. Curiosamente Nadav Lapid apresenta amanhã (9 de julho) fora da competição, uma curta-metragem intitulada ‘The Star’, em complemento com o filme ‘H6’, realizado pelo cineasta Yé Yé, sobre os hospitais na China. Muita agitação, portanto!

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *