74º Festival de Cannes (Dia 6): O ‘Compartment nº 6’
‘Compartment Nº 6’, do finlandês Juho Kuosmanen é uma das melhores surpresas desta competição: uma ‘comédia romântica gelada’, passada quase toda, a bordo de um comboio em direcção ao Ártico, que conecta duas pessoas, que nada têm a ver uma com a outra.
O finlandês Juho Kuosmanen, que apresentou aqui ‘Compartment Nº 6’ é, talvez, um dos nomes menos conhecidos entre os realizadores desta competição de Cannes em 2021. No entanto, ganhou o Grande Prémio de Un Certain Regard em 2016, com ‘O Dia Mais Feliz da Vida de Olli Mäki’, um filme que conta a história de um famoso pugilista finlandês, um obra feita com um estilo particularmente polido e trabalhado e filmado com um sumptuoso preto e branco, que estreou em Portugal. Desta vez, em ‘Compartment Nº 6’, colocou uma jovem académica finlandesa, com um desgosto de amor no peito, num apertado compartimento de um vagão-cama, num comboio de Moscovo até ao porto Murmansk, no Ártico, para observar umas gravuras paleolíticas. E ainda por cima quando é forçada a dividir seu compartimento com um estranho, um jovem mineiro russo grunho e alcoólatra. Essa convivência e esse encontro improvável, vai gradualmente aproximando esses dois seres humanos que se opõem e são completamente diferentes. Filmado entre São Petersburgo e Murmansk, o filme é muito bem interpretado praticamente só por dois actores: Seidi Haarla — recentemente nomeada EFP Shooting Star na Berlinale de 2021 — e pelo russo Yuri Borisov (‘Kalashnikov’). É difícil dizer em que altura a ação do filme, se passa exactamente. Provavelmente na década de 1990, sem telemóveis e provavelmente no início da desintegração do sonho soviético e da Rússia novamente como país for da união.
VÊ TRAILER DE ‘COMPARTIMENT Nº 6
‘Compartment Nº 6’, começa num apartamento em Moscovo, e foca-se em Laura, (Seidi Haarla) a rapariga finlandesa, arqueóloga de formação, que veio estudar e aprender a língua russa e onde a jovem tem um quarto alugado; e depois num comboio de longa distância que cruza o país. Laura tinha programado essa viagem com a namorada Irina, uma mulher mais velha, que também era a sua senhoria. Mas, afinal das contas, é sozinha que embarca nessa viagem. Desde as primeiras cenas, que sentimos um certo desconforto entre as duas mulheres, e tudo parece indicar que Irina quer-se livrar de Laura e ficar sozinha no seu apartamento. Mais do que um relacionamento saudável, o olhar de Irina parece um motor de toxidade e dependência para Laura, pois do seu rosto permanece fechado e sem sorrisos antes e depois da partida. Conhecer o russo (Yuri Borisov) no compartimento-cama, do comboio parece também não ajudar. Ele vai ser o seu único companheiro de viagem, durante vários dias e até ao término da viagem. A sua angústia vai aumentando e a história até poderia ter levado outro rumo, diferente do que vimos. O realizador, joga com essa ambivalência logo na primeira paragem do comboio por algumas horas, em São Petersburgo. A tentação de Laura, de aí terminar a viagem, só foi contida por um telefonema — de uma cabina telefónica — para Irina, que mostrou indiferença e a impediu de voltar a Moscovo. O sentimento de já não ser desejada é mais forte do que o medo da solidão. A beleza do filme está exactamente nesse decisão de Laura continuar a viagem, deixar para trás a sua infelicidade e abraçar o momento.
A polaridade inverte-se e o jovem russo, grosseiro e bêbado, aparece envolto numa nova humanidade e com um humor, que incendeia os sentidos da rapariga. Olhos buscam-se e então começam os momentos mais interessantes do filme, contrariando, tudo o que pensávamos já ter entendido tudo, sobre aquelas duas pessoas. A incompreensão entre os dois personagens é intensa e construtiva e Juho Kuosmanen consegue levar os seus dois atores a conseguirem criar algo de surpreendente, numa história aparentemente muito simples. O auge da fusão do seu relacionamento improvável, surge numa cativante cena de uma tempestade de neve no Ártico, os dois sentados em cima da sucata de um navio abandonado e falam do filme ‘Titanic’. Depois, brincam e lutam como crianças no meio de um recreio gelado, sem fazerem contas à vida, sem se preocuparem com o amanhã. É momento um belíssimo momento cinematográfico, consagrando a beleza dos romances ambientados, em comboios, matriz de muitos filmes do género. Só que desta vez Juho Kuosmanen aquece-nos a alma gelada, pelos ambientes do filme, com uma história de grande humanidade e simplicidade, que se expressa sobretudo a partir do corpo dos actores e muito pouco através das suas palavras. O filme de Juho é também uma verdadeira viagem pela sociedade russa dos anos 90, com dois personagens inesquecíveis e únicos. Apesar de acontecer nessa viagem através das estepes geladas da Rússia, ‘Compartiment nº 6’ é um exemplo puro de um cinema feliz e positivo, feito quase num tom de comédia romântica. Além de ser e uma generosa homenagem aos seres humanos, às suas diferenças e contradições. Absolutamente notável!
JVM