74º Festival de Cannes (Dia 7): ‘Drive My Car’
O ano de 2021 tem sido particularmente prolífico para o cineasta japonês Ryusuke Hamaguchi, que apresentou aqui ‘Drive My Car’, um dos filmes mais belos desta competição e uma obra que funde exemplarmente o cinema com o teatro. Para mim seria uma reconhecida Palma de Ouro.
Depois de ‘Wheel of Fortune and Fantasy’ (‘A Roda da Fortuna e da Fantasia’, que deve estar prestes a estrear em Portugal) — este novo filme, ‘Drive My Car’, também já comprado pela Leopardo Filmes — que foi muito aplaudido na Berlinale 2021, realizada em streaming em março passado, onde o filme ganhou o Urso de Prata de Grande Prémio do Júri, Ryusuke Hamaguchi regressa à competição de Cannes, com um notável ‘Drive My Car’, depois de ‘Asako 1 e 2’. Se em ‘A Roda da Fortuna e da Fantasia’, o seu filme anterior estreado na Berlinale 2021, surpreendeu pela sua estrutura em segmentos, e com um elenco diferente para cada história, encontramos agora neste ‘Drive My Car’, uma narrativa completamente diferente, a partir de uma adaptação de um conto do famoso escritor Haruki Murakami.
Ainda com dificuldades em recuperar de um drama pessoal, Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima), um famoso actor e director teatral, aceita encenar a peça ‘Tio Vanya’ de Anton Chekov, num festival em Hiroshima. Lá, vai conhecer Misaki (Tôko Miura), uma jovem reservada, que foi designada para ser a sua motorista. Enquanto viajam, vai crescendo entre eles uma amizade e uma sinceridade, que os ajuda a enfrentarem o passado. Na verdade, os quatro actos a extraordinária peça de Chekov, parecem fundir-se com o ritmo e a narrativa do próprio filme. As partes do filme são mesmo separadas por um ‘fade to black’, que marca como que a passagem do tempo (em actos), cortando a narrativa: o início e o fim, e as partes mais importantes como os ensaios da peça, já em Hiroshima. Esse alinhamento de duas narrativas, numa sedutora meta-lógica é digamos fundamental, na arquitetura dramática do filme. Hamaguchi construiu o seu argumento criando muitos monólogos, geralmente dentro do lindíssimo e vintage Saab Turbo 900 (1993), vermelho de Yusuke, uma espécie de fetiche e adereço fundamental no filme. É nele que os personagens mais se envolvem, entre os vários silêncios, propícios à reflexão ou às revelações de um passado torturado.
No inicio, ‘Drive My Car’ parece até ser a história de um ‘casal modelo’, sem conflitos e com um uma impressionante estabilidade emocional. Esta primeira observação é obviamente uma ilusão que se dissipa rapidamente: o realizador vai aos poucos criando pontos de ruptura mais ou menos violentos, com as emoções contidas nos olhares e nos corpos trémulos e hesitantes das personagens. Yusuke rapidamente impressiona-nos pelo seu registo impassível, que não se manifesta de nenhuma forma (ou apenas pelo puxar sereno de um cigarro) e isso torna-se logo impactante e estranho. Yusuke é um homem que conheceu muito sofrimento, mas que não se permite, a exteriorizar as suas emoções. A beleza de seu rosto fechado e impassível torna-se quase assustador. Os seus segredos e os seus fantasmas só serão revelados no último terço do filme. O outro personagem misterioso desta história é o jovem ator Takatsuki (Masaki Okada), o suposto amante de Oto (Reika Kirishima), a bela esposa de Yusuke. Takatsuki, torna-se na alma mais atormentada de ‘Drive My Car’. As suas reações são aparentemente contidas como o dos outros personagens, mas quando acontecem, todas ressoam, mostrando a sua real violência interior; e depois provocando estranhamente, uma espécie de sereno abanão, serôdio ou disputa, à aparente indiferença de Yusuke, em relação ao que observou.
Hamaguchi transforma Takatsuki numa espécie de mensageiro amaldiçoado do drama, numa personagem de um romance sombrio, condenado à tragédia. O jovem personagem, evidentemente demasiado novo para se o escolhido, para fazer a personagem principal da peça de Chekov, mas torna-se numa das figuras centrais da história do filme, acabando por enriquecer a narrativa, com a sua presença, inquietante, beleza venenosa e intensa. Enquanto Takatsuki simboliza esses sucessivos pontos de ruptura, o equilíbrio é mantido e alimentado pela personagem de Misaki Watari, a jovem motorista de Yusuke, durante a sua residência artística, em Hiroshima. Também aqui é no corpo que surge o verdadeiro mistério dessa personagem: o seu olhar vazio, silêncio servil e depois a estranha explicação que dá para as suas origens e profissão. Por que uma jovem é motorista de um festival de teatro? A sua relação com Yusuke, que acaba por ecoar um no outro, é fundamental para a cura de Yusuke e para este poder finalmente enfrentar os seus traumas, bastante contidos e recalcados. Ryusuke Hamaguchi desdobra-se ainda num labirinto de sub-enredos, como as histórias de Oto, a mulher de Yusuke, que lhe vêm à cabeça só depois de uma orgasmo. As histórias de Oto, na verdade dramaturga e musa de Yusuke, que cria histórias cada uma mais estranha e excepcional do que a outra, que se vão estendendo pela vida dos personagens, levando-os ainda mais, a conhecer a sua intimidade e abstração.
‘Drive My Car’ é também uma obra atípica que brinca com o espectador, fazendo malabarismos de uma língua para outra, seja mandarim, japonês ou até mesmo a língua gestual coreana, uma novidade na personagem de Sónia (de Chekov), na encenação de Yusuke. Com três horas de duração, ‘Drive My Car’ exige também um esforço intelectual (e cultura teatral), de absorção que recompensa o espectador, pois o filme é um sublime e poético ensaio sobre os sentimentos, que está muitos pontos acima dos já notáveis ‘Asako 1 e 2’, ou do último ‘A Roda da Fortuna e da Fantasia’. Poucos cineastas podem dar-se ao luxo de estrear no mesmo ano, dois filmes com tanto sucesso formal, e ainda por cima, tendo o cuidado de manter-se nos seus temas favoritos: o amor e os relacionamentos, dissecando as suas personagens, mostrando a sua alma e emoções. Com apenas 42 anos, Ryusuke Hamaguchi está a revelar-se, como um dos realizadores mais importantes do cinema japonês e internacional, e com ‘Drive My Car’ é sem dúvida um claro e merecido candidato à Palma de Ouro do Festival de Cannes 2021.