©Nanni Moretti/Festival de Cannes

76º Festival de Cannes | O Futuro de Moretti

Aos 69 anos, o realizador italiano Nanni Moretti regressou à competição de Cannes com ‘Il Sol Dell’Avenir’, oferecendo a si próprio (e a nós) um filme entre o musical e a auto-ficção: um cineasta veterano, que prepara um novo filme, ao mesmo tempo que dá a ideia que está a pensar na sua reforma.

Nanni Moretti, companheiro de uma geração de cinéfilos e um dos habituais cineastas-autores do Festival de Cannes, regressou à Croisette com este divertido e inteligente ‘Il Sol Dell’Avenir’. Contudo, à primeira vista parecia um pouco desiludido, com os ideais da actualidade, mas o resultado demonstra que está pronto para continuar, porque ‘os amanhãs cantam’, para o seu cinema. Após a sua amarga crónica familiar, de Três Andares’, (2021), o cineasta romano, regressou também aos códigos que definem a sua natureza de artista intervertido na sociedade, entre a raiva e a melancolia, o diário e o tormento coletivo, mas agora também, dando um pouco a ideia de querer representar um cineasta desanimado e à beira do desastre existencial. Como explicar o que é o comunismo aos jovens italianos completamente incultos, que nem sequer sabem que existiu um poderoso Partido Comunista Italiano? Como financiar um filme sobre a Insurreição de Budapeste em 1956 contra o regime comunista, ao mesmo tempo que um bairro operário romano, recebe uma companhia circense húngara? Como salvar um filme que o produtor francês faliu e foi parar à prisão? Ou como um realizador de intervenção, consegue fazer um filme segundo os formatados, modelos de produção da Netflix?

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VÊ TRAILER DE ‘IL SOL DELL’AVENIR’

Preocupado com a instabilidade do mundo global e sobretudo com o mundo do cinema que vê os seus alicerces a abanar, Moretti dá-se ao luxo de oferecer a si próprio e a nós espectadores, este opúsculo de pouco mais de 1h30 e uma nova dupla composição artística ao encarnar ele próprio um cineasta em ação, que desiludido parece ao mesmo tempo estar preparando a sua saída dos set. Curiosamente, é também um regresso à velha Cinecittà, onde rodou grande parte deste seu novo filme, desta vez sem a sua Vespa, mas de trotinete eléctrica que percorre à noite acompanhado de Mathieu Amalric. Moretti interpreta Giovanni, um cineasta que prepara, ou já começou a rodar, um filme de ficção, sobre a chegada de um circo húngaro a Roma, que é acolhido por Ennio (Silvio Orlando), o secretário da célula Antonio Gramsci do Partido Comunista Italiano, enquanto, a URSS esmagava sangrenta a revolta húngara de 1956. Esta é mais uma oportunidade para este cineasta, alter-ego de Moretti, evocar a virada histórica do Partido Comunista Italiano, que foi um dos mais poderosos da Europa e que, logo se distanciou de Moscovo, provocou praticamente o seu desaparecimento do panorama político do país, até a actualidade. O ‘futuro brilhante’ que esta corajosa decisão de fazer um filme anti-sistema, lhe reserva é logo uma certa desilusão, quando numa reunião preparatória da equipa do filme, um dos jovens técnicos, de 30 anos, não sabe o que é comunismo, pensa que este esteve apenas confinado à Rússia, e que jamais esteve representado na Península Italiana. Porém, outras questões mais importantes colocam-se ao cineasta, para produzir o filme, que parece estar parado. A primeira diz respeito a este em parte ter sido financiado por um produtor francês: Pierre (Mathieu Amalric), cujo amor pela arte, não condiz com uma eficácia na gestão de orçamentos, o que o levam direto para a prisão. Encurralado, Giovanni, para salvar seu filme, procura conhecer os executivos da Netflix, que gostam de repetir exaustivamente os seus modelos de produção, que querem iguais nos 190 países onde a plataforma está presente. A essa mudança de fase, entre o equivocado Giovanni e o seu tempo, acrescenta-se-lhe uma outra, que ainda lhe vem complicar mais a vida: a sua esposa Paola (Margherita Buy) e produtora de todos os seus filmes, trocou-o por um jovem cineasta, que faz filmes violentos imitando os coreanos. Não há qualquer confronto entre os dois cineastas de gerações e ideias de cinema muito diferentes. Mas um dos melhores momentos deste filme é quando vemos Giovanni apelar, para que se telefone ao arquitecto Renzo Piano e ao cineasta Martin Scorsese, para debaterem questões de ética e violência, no set de rodagem do jovem realizador.

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Festival de Cannes 2023
‘Il Sol Dell’Avenir’/©Nanni Moretti

Paola, assídua das consultas de um psicanalista que a ajudará a conformar-se com o seu desejo de liberdade, não demora também muito a anunciar a Giovanni que o vai deixar, após quarenta anos de convivência, por um motivo que é da responsabilidade dele. A filha de Giovanni, uma adorável jovem na casa dos trinta anos, resta apenas e para sair de casa dos pais, ver num octogenário embaixador polaco, boas possibilidade para um futuro relacionamento e um casamento estável financeiramente. O filme aponta assim para uma desastre existencial, que separa um homem idoso e um cineasta veterano, do mundo que o rodeia e que mudou sem ele quase dar por isso ou fazer algo em contrário. Porém, apesar de um projecto aparentemente falhado que mostra um certo cansaço, continua a ser esse o caminho do cineasta: continuar a fazer filmes! É aqui que Moretti introduz o seu discurso leve, divertido e circense, equilibrista às vezes como no melhor dos seus tempos de cineasta, apoiado-se numa série de canções de amor italianas e num certo sentido numa narrativa um tanto ou quanto felliniana, a lembrar ‘Fellini 8 1/2’. O maravilhoso e antológico final, com todos os actores que participaram nos filmes de Moretti, é a prova clara que a defesa dos seus ideais e o seu cinema, estão ai para continuar. 

JVM

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