Doclisboa ’22 | Quem Tem Medo + Não é Fado, é Fado Bicha
“Quem Tem Medo”, narrativa brasileira assinada por Dellani Lima, Henrique Zanoni, Ricardo Alves Jr., e “Não é Fado, é Fado Bicha”, de Eric Macpherson, foram conjuntamente apresentados na 20ª edição do Doclisboa. A sessão viu-se ainda enriquecida através de uma sessão de perguntas e respostas partilhada entre obras.
Numa sessão dupla e projeção única apresentada na Sala Manoel de Oliveira do Cinema São Jorge a 11 de outubro, a curta “Não é Fado, é Fado Bicha” e a longa “Quem Tem Medo” estabeleceram um discurso ininterrupto acerca de criação artística, os seus limites, potencialidades e também acerca das condições necessárias para que esta mesma criação possa ser levada avante.
Não é Fado, é Fado Bicha de Erin Macpherson (Portugal, 2022, 13′)
“A Lila Fadista, bicha ativista, diz a tradição
É nesta Lisboa, figura de proa da nossa canção Figura bizarra que ao som da guitarra, o fado viveu Trocava de amores mas os seus valores, jamais os vendeu”Da música “Lila Fadista”, álbum OCUPAÇÃO
Ao longo de vários meses, Erin Macpherson, artista sul-africano, acompanhou as Fado Bicha na estrada. Esta pequena curta universitária, extremamente bem concebida e terna, filma parte de uma atuação magnética das Fado Bicha, bem como o processo de preparação no backstage e, acima de tudo, dá voz à vocalista Lila Fadista, que discursa acerca da luta pela auto-afirmação e auto-aceitação que tanto a marcou ao longo da vida.
Louva-se o sentimento de pertença que Erin Macpherson consegue atingir, não sendo uma pessoa portuguesa ou que se veja envolvida no processo de reapropriação positiva do fado que é conseguida pelas Fado Bicha. Se o Fado não é inerente à sua cultura, as lutas da comunidade LGBTIQA+ sem dúvida correm-lhe pelas veias e, por isso, “Não é Fado, é Fado Bicha” é uma curta-metragem que transparece cumplicidade.
A heteronormatividade é aqui colocada de parte, projetando-se o que é que o Fado poderia (e pode) ser, fosse (ou venha a ser) a sociedade portuguesa mais aberta, inclusiva e queer friendly. A energia transmitida por esta obra remete-nos para um território onde a homofobia e a transfobia não têm mais palco.
Se tivéssemos algo a apontar a “Não é Fado, é Fado Bicha”, seria sem dúvida o facto desta curta acabar mal nos começamos a sentir a mergulhar no universo do sujeito fílmico. Demasiado breve para o seu próprio bem, o filme faz-se de facto sentir como o projeto universitário que é, por mais bem conseguido que esteja. Queríamos mais desta imersão e positividade.
78/100
Quem tem Medo? de Dellani Lima, Henrique Zanoni e Ricardo Alves Jr. (Brasil, 2022, 72′)
Se “Não é Fado, é Fado Bicha” nos transporta para um lugar seguro para a comunidade LGBTIQA+, para a quietude da reflexão pessoal acerca de aceitação e se, em geral, nos transmite uma sensação notória de bem-estar e contemplação, o filme que se lhe seguiu na mesma sessão, “Quem tem Medo?“, embora se enquadre perfeitamente no seguimento temático, transmite exatamente o oposto.
Com”Quem tem Medo?”, a própria pessoa que vê é esmagada, logo nos primeiros minutos, por uma sequência de discussões no Senado do Brasil, imagens estas intercaladas com casos arrepiantes de maus tratos e abusos para com artistas. Se pensarmos em obras que vimos no passado mês no Queer Lisboa, como “BR Trans” e particularmente “Corpolítica”, voltamos a encontrar alguns dos mesmos protagonistas e protagonistas, numa obra que tem como primeiro e assustador ângulo a censura e deturpação das intenções e práticas artísticas num Brasil dominado por divisões profundas e extremismos políticos e religiosos.
Perante a ascensão da extrema direita no Brasil, “Quem tem Medo?” consegue, ao longo de apenas 72 minutos de um documentário poderosíssimo, muito completo e elucidativo, transmitir como a criação artística tem vindo a ser censurada no Brasil. Vamos oscilando entre artistas e peças, entre casos documentados, entre testemunhos na primeira pessoa de vários e várias artistas que viram o Bolsonarismo a tomar conta das escolhas de institutos de programação das artes.
A liberdade na prática artística é hoje uma mera ilusão no Brasil (o artista cria livremente, sim, já a receção é condicionada) e, através de uma montagem com cortes abruptos e música rock pujante, “Quem tem Medo?” mergulha-nos, quase sem misericórdia, num contexto lamentável e desolador.
O filme não tenta oferecer soluções, fazendo algo bem mais importante – dá voz aqueles que têm sido silenciados no Brasil ao longo dos últimos anos, deixando nos créditos finais uma lista vasta de peças de teatro, performances e outras representações artísticas que se viram censuradas recentemente. Quem sofreu perseguição ou foi alvo de artimanhas políticas baixas no Senado tem também aqui direito a expressar e a mostrar um pouco mais da sua obra.
Wagner Schwartz, um dos artistas entrevistados no âmbito do documentário, sofreu censura e perseguição social e política depois de uma criança tocar no seu pé durante uma performance num museu, na qual se encontrava completamente nu. Todavia, a sua peça, como o filme deixa bem claro, não tinha qualquer carácter erótico e a deturpação em nome dos bons valores acabou por manchar, de forma permanente, a carreira deste artista multidisciplinar cuja tela é o seu próprio corpo.
Wagner este presente após a projeção para discutir a participação no documentário e o quanto esta perseguição afetou a sua relação com instituições artísticas e com o próprio Brasil. Lamentavelmente, este episódio pré-acensão de Bolsonaro ao poder é um reflexo de uma multiplicidade de desvirtuações interesseiras e ouvir, nas suas próprias palavras, esperanças, desalentos e reflexões, em muito permitiu enriquecer a nossa própria receção da obra. E não é esta troca de ideias, após uma projeção, que torna o ato do festival de cinema tão rico, múltiplo e político?
Wagner Schwartz refugia-se, hoje em dia, noutras formas de expressão artística para continuar a criar. O cenário que relata não é animador mas, ainda assim, esperamos que obras valorosas como este “Quem tem Medo?” sejam pequenas sementes contra o ódio irracional que paira no ar.
88/100