Cão Preto, a Crítica | A história do homem que amava o cão
Afinal, a crítica de cinema e o boca-a-boca também funcionam como chave do sucesso de um filme em sala de cinema, ainda por cima chinês. É o caso de “Cão Preto”, de Guan Hu é uma extraordinária ‘metáfora canina’, sobre as grandes mudanças estruturais e o estado da nação chinesa no período de pré-Jogos Olímpicos de Pequim em 2008. Aqui vai mais uma achega para irem ver à sala de cinema, este filme absolutamente indispensável…
“Cão Preto”, de Guan Hu, Prémio Un Certain Regard do Festival de Cannes 2024, já não é o primeiro filme, que tem por base uma história de redenção, concebida através de um animal e neste caso de um elegante galgo negro e um homem. E não será certamente o último, já que os animais-treinados além de quase sempre grandes actores, proporcionam histórias carregadas de emoção e sentimentalismo. O filme Hu, que é uma combinação de drama, western, thriller policial e crónica social sobre o estado da nação chinesa, obrigada a mudar pelas circunstâncias, não foge à regra pois torna-se num drama emocionante e humano. Efectivamente, porque assenta no realismo dos protagonistas, na convivência entre um homem e um cão, abandonados a si próprios; e depois num absurdo às vezes até violento, que lembra o estilo dos filmes do realizador japonês Takeshi Kitano. E não sei porquê, também um certo toque dos filmes de Federico Fellini. Digam-me se estou enganado…
UMA HISTÓRIA DE REDENÇÃO
Emergindo de um longo período na prisão por causa da sua participação num assassinato, Lang (Eddie Peng), uma antiga estrela da música pop, consegue não mais do que um emprego numa patrulha de captura de cães abandonados, que vagueiam em matilha. O objetivo é limpar uma cidade quase fantasma, pelo fim da extração de minério, no deserto de Gobi, no Norte da China, antes das Olimpíadas de 2008. Quando finalmente Lang consegue aproximar-se da bela criatura negra, fina e esguia (salvo erro um galgo chinês sem pelo), possivelmente raivosa, que o atormenta desde o seu regresso à sua cidade, acaba por adotá-lo. E o facto é que o animal proporciona ao taciturno ex-rockstar uma pausa em relação aos seus vários problemas de reintegração: o seu pai alcoólatra e doente continua assombrando os restos de um zoológico, que em breve será demolido; enquanto o mafioso local Butcher Hu procura vingar-se pelo seu sobrinho assassinado, crime ao qual Lang foi associado e penalizado.
O realizador Guan Hu supervisionou, um prestigiado arquivo histórico fotográfico patrocinado pelo estado chinês que está na base do seu filme “Cão Preto”, uma obra fascinante mas financiada pelo regime, que dá uma no cravo outra na ferradura, em relação a essa época de abrupto desenvolvimento económico, mas também de grandes anomalias sociais. É preciso naturalmente, haver uma suave crítica à rápida evolução económica da China, para aliviar a pressão. Portanto não surpreende — para quem conhece a obra de outro realizador chinês ‘pró-governamental’ — assistirmos a “Cão Negro” associando-o a uma observação social, muito semelhante à do realizador Jia Zhangke (“Caught by Tides”, vai ser o filme de abertura e encerramento do IndieLisboa 2025 e mais um filme, absolutamente a não perder). Zhangke, aliás, faz um pequeno papel no filme de Hu, interpretando o chefe dos apanhadores de cães.
O REALIZADOR JIA ZHANGKE NUM PEQUENO PAPEL
Inicialmente, o filme vai mesmo por um caminho semelhante ao realismo sufocante de Jia Zhangke, já que Lang vai-se movimentando em torno dos edifícios abandonados e decadentes da cidade quase fantasma, onde só restam, velhos, deserdados e solitários, as franjas carbonizadas do deserto e um circo itinerante. Mas há algo incrivelmente engraçado e até ridículo, sobre o ‘esquadrão de lacaios’, improvisados caçadores, que com as redes, correm desenfreadamente atrás do enorme bando de cães, sem os conseguirem apanhar; além disso, o realizador também nunca perde uma oportunidade de num enquadramento perfeito, nos ir revelando a personalidade taciturna de Lang, da possibilidade dos mafiosos o apanharem e das suas constantes fugas.
O MELHOR AMIGO DO CÃO
Em “Cão Preto”, o novo e irascível amigo de Lang representa de facto um traço selvagem interior que ele tem de conter e controlar, porque acabou de sair da prisão, enquanto os cães em geral representam a ‘despossuída’ marcha económica da China para o progresso e capitalismo imparável e em ascensão. O último aspecto é nítido nas épicas e escuras tomadas das matilhas de cães varrendo as praças e dos habitantes desolados que ainda permanecem nas ruínas, evitando grandes planos ou utilizando-os, só quando são absolutamente necessários. Passamos a maior parte do tempo sem encarar de perto a fisionomia de Lang e creio que mesmo o único grande plano de dele é no final conduzindo a sua moto, com o seu novo companheiro às costas, em direcção a algures, não sem antes realizar a prova na arruinada ponte de madeira.
OS PRIMÓRDIOS DO CAPITALISMO CHINÊS
Esse rigor não dissipa também a importância em “Cão Preto”, de uma história quase paralela no enredo sobre o tal circo itinerante, bem como um romance especulativo entre Lang e uma desconsolada artista que vive com um companheiro, numa das roulotes circenses. Porém, a esplêndida desolação da China nos primórdios do seu capitalismo e o humanismo da sua história faz com esta se torne numa bela mensagem universal e um filme absolutamente surpreendente para todos, mas sobretudo para os que adoram animais.
JVM
Cão Preto, a Crítica
Movie title: Black Dog, Ghou Zhen
Movie description: Nos arredores do deserto de Gobi, no norte da China, nos dias que antecedem o início dos Jogos Olímpicos de Pequim em 2008, Lang, um ex-presidiário, regressa à sua cidade agora semi-arruinada e quase fantasmagórica, onde já quase não está ninguém. Aí, apega-se a um cão preto indefeso que o acompanha na sua viagem até este lugar árido que outrora foi a sua casa.
Date published: 16 de April de 2025
Country: China, 2024
Duration: 116 minutos
Director(s): Guan Hu
Actor(s): Eddie Peng, Chu Bu Hua Jie, Youwei Da, Jia Zhang-ke
Genre: Drama
Conclusão:
Com “Cão Preto”, o realizador chinês Guan Hu pode ter criado uma pequena e duradoura obra-prima sobre filmes protagonizados por homens e cães (ou animais). Trata-se de uma história de um solitário problemático que regressa à sua cidade natal e cria laços com um cão potencialmente agressivo, feita de uma forma bastante comovente e maravilhosamente filmada. No fundo, trata-se de uma fábula existencial sobre isolamento, redenção e a possibilidade de ligação, de um homem com um animal, contra todas as probabilidades. Tem também um toque de thriller policial e é sobretudo um filme deslumbrante de cinema de paisagem, com uma extraordinária direcção de fotografia. O que mais impressiona é sem dúvida a sua pureza e secura, atravessadas por um sopro cómico e poético oculto e subtil, para contar uma história passada numa cidade remota chinesa. Vale a pena mencionar a sensação de catarse que emerge das cenas finais do filme. Uma pérola!
User Review
( votes)Pros
O melhor: A forte direção visual e sobretudo o equilíbrio entre a comédia calorosa e seca e o drama melancólico de redenção;
Cons
O pior: É apesar das suas nuances, um fresco bem ao estilo de Jia Zhangke, sobre as fenomenais mudanças sócio-económicas na China.