“Bound in Heaven”, esta história de amor comoveu San Sebastián
“Bound in Heaven”, a estreia na realização da argumentista chinesa Huo Xin (“Shower”) conta a história de uma mulher casada que se apaixona por um jovem de classe social baixa, com uma doença terminal. Uma mistura de melodrama e filme policial chinês, que não fica a dever nada aos filmes do género da indústria de Hollywood.
“Bound in Heaven”, estreia a estreia na realização da experiente argumentista chinesa Huo Xin (“Shower”) é uma bela surpresa nesta Competição de San Sebastian 2024, que já se aproxima do seu final. Trata-se de uma deslumbrante, que oscila entre o filme noir e o melodrama romântico combinando com uma história de amor e morte. “Bound in Heaven”, abre aliás, como se fosse um policial — algo que decerto modo é retomado a meio do filme — mas no fundo aproxima-se mais de uma trágica história de amor entre dois jovens amantes, com uma condição de vida muito diferente, na China moderna e capitalista, que tanto vemos nos filme de Jia Zhangke. Baseado num romance homónimo de Li Xiuwen, protagonizado por três estrelas do cinema chinês: Ni Ni (“Lost in the Stars”), Zhou You (“Caught by the Tides”) e Liao Fan (“Carvão Negro, Gelo Fino”) é um filme que retrata também de alguma forma a realidade social e quotidiana daquele país, à beira do excesso de pompa e consumo e ao mesmo tempo prepara-nos para esse lado trágico-romântico de uma complexa relação entre um casal improvável.
Logo no início Xia You (a consagrada Ni Ni) aparece sendo interrogada pela polícia, por causa da morte de seu marido (Liao Fan), pelas mãos de seu suposto amante, Xu Zitai (Zhou You). A mulher diz que foi em legítima defesa e assume a responsabilidade, exonerando o terceiro da responsabilidade dessa morte acidental. A partir daí, a realizadora regressa às origens do drama à enorme metrópole de Xangai, em 2010, para contar o que realmente aconteceu. Tudo começa de forma bastante tensa e violenta, quando o companheiro da mulher (Liao Fan) a agride fisicamente em casa, de forma muito agressiva e a obriga, a dar a uns amigos os bilhetes, que ela tinha comprado, para um concerto da famosa cantora e ocasional atriz Faye Wong, (a cantora de “Dreams”, de “Chungking Express” de Wong Kar-wai). “Bound in Heaven”, aliás, não consegue fugir às fortes influências deste filme que já se tornou um clássico do cinema de Hong Kong. Porém, são estes bilhetes e este concerto, que vão marcar Xu Zitai, para o resto da vida.
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Acontece que Xia é uma mulher elegante e sofisticada que vive no mundo da alta finança em Xangai, levando a querer que chegou tão alto graças ao poder do marido bastante mais velho. Depois da agressão, Xia vai para a rua para tentar novamente comprar os bilhetes para o concerto de Faye Wong, agora no ‘mercado negro’, porque está completamente esgotado e conhece Xu, um jovem de aparência rebelde que se dedica a esse tipo de ‘trabalhos’, mas que também já não tem mais bilhetes à venda, mesmo por qualquer preço. Triste com o sofrimento da mulher ou em busca de uma aventura casual, Xu oferece-lhe uma consolação: ir aos bastidores do estádio, a um local onde ela pode assistir, na verdade bastante mal e desconfortável e através de uma pequena janela de vidro. Contudo, a química entre eles é imediata, passam a noite juntos, fazem sexo na esquina de uma rua escura, mas o rapaz desaparece de repente e nunca mais se vêem. Corta para um ano depois, agora em Wuhan, e embora pareça impossível — especialmente num país de 1,5 mil milhões de habitantes —, Xia vê Xu, enquanto este circula de moto por uma rua, a fazer uma entrega de comida. Xia abandona uma suposta convenção de trabalho em que participa e vai desesperadamente procurá-lo e voltam a passar uma noite juntos.
Enquanto Xu parece não dar muita importância ao relacionamento, Xia larga tudo para ficar com ele. Uns dias depois, ambos viajam de moto para uma pequena cidade na província de Wuhan, para visitar a família muito pobre de Xu, que este deixou ainda adolescente, para ir para grande cidade. E aí, Xia descobre algo inesperado: apesar de bastante jovem Xu, tem um cancro terminal no estômago e não sabe quanto tempo lhe resta de vida. Além disso, não quer se tratar, nem se deixar cuidar; quer, digamos, ‘viver a vida ao máximo’, até chegar o seu momento de partir. Tudo parece bem entre o casal, e com o seu pequeno negócio em Wuhan, com um restaurante de noodles que faz entregas ao domicílio, até que, previsivelmente, o parceiro de Xia consegue descobrir onde está a mulher. As coisas vão complicar-se, com o casal em fuga da polícia e o filme vai transformar-se numa história desesperadamente romântica, já que o corpo de Xu, começa a ceder à brutal doença. Apesar de tudo, nada parece detê-los numa fuga para a frente e por isso “Bound in Heaven” assume ou retorna então as características de um melodrama romântico clássico, com o par profundamente apaixonado e solidário um com o outro.
UMA TRAMA POLICIAL E MELODRAMÁTICA
A trama policial inicial que é retomada a meio, é quase circunstancial no contexto da história, funcionando como uma tensão extra ao drama do casal, que está cada vez mais a passar por momentos muito difíceis, já que um deles tem uma uma doença muito grave. Porém, são os elementos secundários que dão uma enorme riqueza à história, quando esta se torna mais convencional na sua forma entre o épico e o comovente: as mudanças económicas nas grandes cidades chinesas e no movimento migratório das pessoas, numa altura em que o desenvolvimento imobiliário, transformou também rapidamente, o skyline dessas cidades e sobretudo os hábitos dos seus habitantes. Xangai não tem muito a ver com a cidade de há duas décadas atrás. E o mesmo acontece com as demais cidades, como Wuhan ou outras pelas quais o casal passa na sua fuga romântica para o abismo.
Além das características relacionadas com a China actual — como as condições de vida e as profundas diferenças de classe social, entre os dois amantes — este drama romântico com a doença envolvida, é previsível que pudesse acontecer, em qualquer tipo de época e local e semelhante a muitos filmes da indústria de Hollywood. Contudo os elementos do policial ou film noir conferem-lhe, uma estática, um ritmo, uma tensão e uma urgência extra, que ficam muito bem definidas, quando sabemos do delicado estado de saúde de Xu. O que precisamos saber, no resto do filme, são apenas alguns detalhes, questões formais e de tom, que são realçados pela direção de fotografia e a banda sonora. Neste sentido,”Bound in Heaven” não quebra as regras, é um filme redondo. O filme visualmente deslumbrante, também não evita de facto a referida influência de Wong Kar-wai, no tratamento de alguns espaços de rua: o realizador de Hong-Kong, chega mesmo a ser citado quase literalmente, num diálogo, quando se fala de como é difícil encontrar a pessoa certa no momento certo; e a cineasta faz um grande esforço em procurar a maior autenticidade possível nessa fuga emocional, bem apoiada nas excelentes prestações dos seus dois protagonistas. Porém, ”Bound in Heaven” é uma verdadeira celebração do amor e de todos os excessos românticos, para além de ser um dos filmes mais bonitos emocionalmente e visualmente desta competição. Simplesmente deslumbrante! Vai sair daqui com prémio!