Duas Vezes João Liberada, a Crítica | Cinema queer consagrado no IndieLisboa
Paula Tomás Marques ganhou o Prémio para Melhor Realização de uma Longa-Metragem na competição nacional do 22º IndieLisboa. “Duas Vezes João Liberada” valeu-lhe essa e outras honras, sendo um dos projetos mais fascinantes do festival.
Lisboa acorda devagar, a luz da matina pintando as ruas tons de ciano e cinza. Sobre as imagens, uma narração considera a misteriosa interrupção de umas filmagens, algum sobressalto do realizador, Diogo, que jamais foi explicado. Os planos são serenos, quase paródicos na paz que transmitem, até quando a câmara considera uma ambulância a flamejar vermelha na alvorada. Assim é até encontrar o realizador sobre o qual a narradora reflete. Sobre a cama, vemo-lo fragmentado, encurralado num falso repouso, tenso, mas imóvel, como que possuído por alguma força do além. E não é que algo sobrenatural se abate sobre a fita?
Ou, pelo menos, a sugestão audiovisual de uma assombração. Faz-se a disrupção do 16mm, como se o ecrã tivesse convulsões, e a sonoplastia segue o exemplo com umas atonias elétricas. Só mais tarde saberemos o contexto deste pequeno pesadelo. Por agora, deixa-se esta introdução in media res em prol de uma reflexão sobre um passado em reflexão sobre outro passado, não fosse este um daqueles exemplos de cinema meta-textual em que se faz um filme dentro do filme. Neste caso, tratar-se-á de uma biografia de Liberada, hipotética figura transfeminina da História de Portugal que, em tempos antigos, sofreu os horrores da Inquisição.
Reencontramos o realizador em plenas rodagens, num cenário de época onde Liberada é ressurreta por uma equipa composta, dos pés à cabeça, por membros da comunidade queer. A plasticidade das imagens rima com a plasticidade do eu, da identidade e do género, com os filtros amarelados marcando os níveis de ficção e a alternarem como que em brincadeira saltitante. Há um gozo neste registo, uma leveza que não corresponde nem à história da Liberada ou ao conto de João, sua intérprete na contemporaneidade auto-ficcionada. Afinal, a figura histórica encontrou paz na vida, mas ela foi só temporária.
À procura de uma mártir trans no passado histórico.
Através de gravuras e mais alguma de narração voz-off, descrevem-se as transgressões de Liberada e suas ditas sodomias com Franco. Esse terá sido o pretexto para a sua persecução, mas foi também a génese da fuga quando, revoltado, o amante se revoltou contra essa mulher. Uma mulher a quem as ideias de género cis-binárias não correspondiam, perdida numa época em que ainda nem havia linguagem para descrever a sua identidade. Dito isso, havia aceitação e salvaguarda, uma comunidade de freiras que a acolheu e batizou Liberada antes de os patriarcas voltarem com reivindicações de justiça sangrenta na ponta da língua.
Ou seja, uma daquelas tragédias que o cinema de prestígio e bons costumes tão gosta de contar sobre comunidades marginalizadas. Parece que só vale a pena considerar pessoas que fogem à norma quando se podem contextualizar as suas vidas para dar pena e sensibilizar o público geral em simpatia pela sua dor. Esta problemática está patente em “Duas Vezes João Liberada” e Paula Tomás Marques não se fica pela mera sugestão. Muito pelo contrário, articula e verbaliza tudo, com a personagem principal de June João a servir de porta-voz. De facto, a atriz foi coargumentista, marcando-a como autora da peça em patamar igual ao da realizadora.
Por conseguinte, esperaríamos que a figura de João fosse um pouco mais concretizada. Além das suas dúvidas sobre o projeto cinebiográfico, pouco sabemos sobre esta figura, tão vaga e pouco específica ao ponto em que chamar-lhe personagem parece erróneo. A maioria das presenças em cena são assim, definidas pela sua qualidade mecânica nos debates propostos pelo filme, mais argumentos que pessoas, não obstante os atores cheios de presença e magnetismo. De facto, quase desejamos uma abordagem que os deixasse definir mais a fita, ou então uma estratégia mais abstrata que estas bonecas narrativas Matrioskas permitem. Se é para ser ensaísta, que sejamos ensaístas e borda-fora toda a norma narrativa.
O momento em que João teima em não interpretar o suicídio de Liberada – segundo Diogo, será algo indicado pela documentação histórica do seu julgamento – merece especial destaque. Nele fazem-se bons argumentos e descrevem-se dilemas artísticos cuja discussão tem amplo mérito. Disso não há dúvida. Só se questiona a forma como tudo é articulado, tão diretamente que se sugere uma confrontação, mas sempre em jeito tímido. Uma timidez que impede o manifesto desse confronto e, por conseguinte, deixa “Duas Vezes João Liberada” num meio termo frustrante. Mais do que um trabalho finalizado, feito com intenção, bem aprumado e defendido, deparamo-nos com um esboço.
Queremos mais que este esboço.
João reivindica ver o prazer e a descoberta dos primeiros dias de Liberada com Franco, quiçá a irmandade no convento. Mas não se poderia dizer o mesmo da equipa do filme dentro do filme? Porque ouvimos falar das amizades travadas entre este elenco trans, mas essas maravilhas são um apontamento narrado mais do que algo percetível, ora no texto ou na mise-en-scène. Enfim, tantas queixas e pouca celebração. E há muito que celebrar em “Duas Vezes João Liberada.” Visualmente, a fotografia de Mafalda Fresco é um milagre singelo, cheio de textura e cores intensas, vitalidades vibrantes e uma noite americana em azul garrido que recorda o cinema mudo, as vanguardas, o experimental mais puro.
E aquela qualidade brincalhona? Ela é muito bem-vinda quando os cineastas propõem resposta para o fado de Diogo como o fantasma de Liberada a impedir que se faça um filme sobre ela. Dúvidas sobre o que a gente passada pensa sobre as nossas interpretações presentes das suas pessoas explode em fantasia tão merecedora de aplausos quanto gargalhados – Schubert nunca foi tão bem invocado para comédia. Oxalá isso compensasse todo o gesto didático. Oxalá o jogo de casting fosse melhor utilizado. Amamos, em particular, a presença de Caio Amado Soares, que apresentou a curta “Mishaps in Spacetime” nesta mesma edição do IndieLisboa.
De facto, é interessante considerar “Duas Vezes João Liberada” em conversa com essa obra mais modesta, também ela de temática queer, ares de autoficção e discurso didático. No seu registo 16mm e relativa qualidade háptica, o filme de Paula Tomás Marques contraria uma desmaterializado digital que tem posicionado muita expressão queer no grande ecrã – “The People’s Joker,” “Valencia,” “El auge del humano,” etc. – como a procura de um cinema que rompa com a tradição. Aqui, não se quebra o meio, nem se tenta sequer fazê-lo. Trabalha-se numa relativa convencionalidade e, apesar de arrojado, o engenho arrisca o lugar-comum. Lendo os créditos, onde nomes como Rinland, Piñeiro e o Cão Solteiro aparecem, é difícil não fazer comparações diretas e achar que “Duas Vezes João Liberada” ficou aquém das expetativas.
Duas Vezes João Liberada, a Crítica
Movie title: Duas Vezes João Liberada
Date published: 14 de May de 2025
Country: Portugal
Duration: 70 min.
Director(s): Paula Tomás Marques
Actor(s): June João, André Tecedeiro, Jenny Larrue, Caio Amado Soares, Eloísa d'Ancensão, Tiago Aires Lêdo
Genre: Drama, Biografia, 2025
-
Cláudio Alves - 60
CONCLUSÃO:
“Duas Vezes João Liberada” debate-se sobre como representar aqueles que morreram, os nossos antepassados e as problemáticas da representação queer na arte. Não oferece respostas, mas também não escolhe um caminho abstrato. Celebramos a arte queer, mas queremos mais. Um ensaio mais abrasivo, talvez. Dito isso, é fácil perceber como uma obra assim ressoa por entre um público de artistas que se possam rever em si. Não admira que esteja a ter uma passagem pelo circuito dos festivais tão bem-sucedida. Além do mais, as imagens têm a sua beleza, a montagem de Jorge Jácome é ágil e o elenco sui generis dificilmente podia ser melhorado.
O MELHOR: As ilustrações e colagens de Daniela Lino e as películas manchadas de Claudia Gracia e Marieke Elzerman são os pontos altos da fita. Essas primeiras são especialmente marcantes pela sua sugestão de fogueiras, labaredas de cor e celuloide esmifrado que explodem durante transições de cena e de tempo.
O PIOR: O argumento que mantém o projeto agrilhoado a um esboço que se queria ser maior do que é, e não é tão cinematograficamente arrojado quanto se propõe. Entendemos que as realidades da sua feitura implicam muitos limites ao que os cineastas podiam fazer, mas avaliamos a obra final e não o processo.
CA