"Tardes de Solidão" | © Nitrato Filmes

Tardes de Solidão, a Crítica | Albert Serra torna a tourada em puro cinema

Vencedor da Concha de Ouro em San Sebastián, “Tardes de Solidão,” também conhecido como “Tardes de Soledad” e “Afternoons of Solitude,” é a mais recente obra-prima do realizador espanhol Albert Serra. Mirando o fenómeno da tourada, o documentário não tem histórias para contar nem respostas fáceis com que reconfortar ou validar o espectador. Cabe a cada um tirar as suas conclusões.

Não se vê vermelho tão vermelho no grande ecrã desde que Bergman assinou “Lágrimas e Suspiros” e Kieslowski terminou a trilogia das “Três Cores.” Não que o vermelho tenha a mesma carga metafórica no cinema de Albert Serra que tem no pesadelo escandinavo ou a paixão desse devaneio pan-Europeu do mestre polaco. O vermelho de “Tardes de Solidão” é tanto um fenómeno estético levado às antípodas da abstração como o mais primordial líquido da vida, esse rubro que corre as veias e se vê jorrado sobre o solo nas arenas da tourada. Em “Tardes de Solidão,” vermelho é sangue e é a letra rasgada com que se escrevem os créditos iniciais.

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O impacto gráfico é imediato, agoirando a carnificina bárbara que este documentário promete pela sua própria premissa. Mas, terminada a introdução institucional, o realizador catalão não confronta logo o espectador com violência. Pelo contrário, ele contradiz essa presunção, quiçá até esse desejo, e a cor da carne viva também. Porque “Tardes de Solidão” começa longe da arena e da violência. Começa em paz, num silêncio que só a respiração do touro interrompe, um compasso regular e sereno. A câmara captura a criatura, sua majestade e seu olhar. Nele, parece procurar algo, talvez um sentimento, um reconhecimento, uma tragédia porventura.

Só que, sem cair na antropomorfia a que tantos artistas se sujeitam, Serra só lá encontra vazio. Esta conclusão não será julgamento ou moralismo, somente uma observação em milieu solitário, um prólogo sem palavras e sem gente. Será essa a solidão do título? A solidão do animal que aqui vemos, pelo preto pintado em tons de ametista pela luz da lua? Mas é noite, não tarde. Por essa hora, haverá circo ao invés desta calma noturna. Por essa hora, cortamos do olhar vazio do touro para o olhar vazio do toureiro. É ele o peruano Andrés Roca Rey, que encontramos no fim de mais uma matança em nome do espetáculo.

Num duelo de deuses e monstros, quem é quem?

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© Nitrato Filmes

Com face suada e corpo exausto, mas cheio de orgulho, o homem é primeiro vislumbrado neste estado de rescaldo, despindo o seu Traje de Luzes para revelar a camisa que outrora foi branca e agora se encontra manchada rubi. A montagem, essa transição brusca do touro para o toureiro, faz surgir uma comparação ou até uma equivalência entre as figuras. Só que não há maneira de fazer os dois iguais no teatro da morte a que um consente e outro nunca o faz. E, digam o que disserem, Serra não sofre a hubris que inspiraria tal tolice. Se há uma equivalência, essa existe em termos puramente cinematográficos, o que faz sentido para um exercício como este.

“Tardes de Solidão” é cinema na sua forma mais pura e, sob o olhar deliberadamente distante de Serra, Rojas e suas vítimas são igualmente fascinantes. São igualmente impenetráveis, também. De facto, a concretização audiovisual da obra parte dessa condição, dessa impossibilidade de conhecer os seus sujeitos, nunca tentando aprofundar a nossa ideia deles além da sua qualidade enquanto imagens. O significado que neles surge depende principalmente da nossa projeção enquanto público. Por isso não há entrevistas e quase nenhuma palavra humana. Por isso não há contexto ou uma mediação prescritiva que nos indique simples censura ou defesa.


Por outras palavras, não obstante o que Serra tem tido sobre touradas e sua cultura em entrevistas e conferências de imprensa, o seu trabalho não apoia nem ataca a tradição. Dito isso, ele reconhece a beleza da barbárie e explora-a até aos limites, até às antípodas do seu espetáculo e inerentes contradições. Como pode algo tão violento, tão destrutivo, ser tão belo? Essa questão ecoa pela obra sem se tornar no cerne do seu ser, confrontando o observador nos momentos mais intensos na arena, quando o ecrã se enche de crueldade e chacina, quando até as sombras escuras ganham a textura aveludada de carne picada.

Estes milagres são prova do génio que é Serra, mas também comprovam a mestria de Artur Tort, aqui creditado como diretor de fotografia e técnico de montagem. Através das suas façanhas óticas, todo o circo da morte brilha como joias e toda a superfície parece sangrar. É lindo e opressor em igual medida, pois estamos sempre a mirar o palco de terra pisada em contraponto, como se estivéssemos sentados nas bancadas em seu redor. Raramente vemos a audiência e muito menos o céu, sempre presos, tão encurralados como o animal e seu assassino cerimonial. Um matador que nos aparece grotesco, animalesco, um monstro meio absurdo e quase risível.

Albert Serra é um verdadeiro mestre do cinema!

Isso é particularmente notório quando “Tardes de Solidão” se deixa levar pelos epítetos de uma entourage babada, seus pronunciamentos sobre masculinidade e heroísmo. Nesta conjetura cultural ser-se homem parece estar sempre dependente da capacidade de brutalizar o outro, algo ou alguém. Mas, ao mesmo tempo, todo esse aparato másculo é uma performance altamente codificada, todo o gesto de Rocas mais uma teatralidade nua. Até a sua forma é um elemento cenografado, com todo um rito prestado no vestir do figurino, no arranjo do sexo em calças justas e na pose de costas arcadas. Neste poema funéreo, a masculinidade é um culto da Morte – tema amado do cineasta.

Haverá quem conseguir evitar essas leituras. Haverá quem veja em tudo isto nada mais que um elogio unilateral, positivamente simplista. Mas é difícil fazê-lo quando Serra usa os seus planos sequência para nos esfregar a cara na carcaça do animal enquanto, na banda-sonora, se ouvem os adeptos falar de como a vida nada importa, de como Rojas marca a diferença, como ele nos mostra o que é ser homem. Sentenças e críticas podem estar ausentes, é certo. Mesmo assim, “Tardes de Solidão” levanta questões pela simples tensão entre suas imagens e sons, até antes de pontuar a saída do touro morto com a “Valse Triste” de Jean Sibelius.

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O documentário de Albert Serra assim se torna num assombro fenomenológico e num sobressalto dos sentidos, um incrível feito da sétima arte que demonstra o píncaro dos talentos do seu realizador. Trata-se de um dos melhores filmes do ano, ou até da década, fazendo-nos questionar a própria natureza deste meio que tanto amamos. Caberá a cada espectador decidir se este é um filme em prol de crueldade animal ou da tauromaquia, uma dissecação dos seus preceitos e hipocrisias, um teste de Rorschach pintado com sangue bovino ao invés de tinta-da-china. Uma coisa é certa. No fim da repetição moribunda, ficamos de mãos a abanar, sem respostas fáceis, sozinhos na arena manchada, ouvindo o rugir de um aplauso que nunca soou mais espectral ou perverso.

Tardes de Solidão

Conclusão

  • “Tardes de Solidão” é quiçá o filme mais arrojado na carreira de um cineasta que só tem feito filmes arrojados desde que primeiro pegou na câmara. Albert Serra assim consolida o seu estatuto enquanto mestre do cinema contemporâneo, fazendo da tourada o sujeito perfeito para uma abstração em tons de terra, ouro e vísceras. Quem estiver à espera de um documentário moralista sobre a tauromaquia ou alguma crítica feroz sairá desiludido. Quem for em busca do mais extraordinário objeto de cinema, encontrará um exemplo suprassumo do mesmo.
  • O MELHOR: Tudo, desde o primeiro segundo de escrita vermelha sobre um fundo negro até à última nota da “Valse Triste.”
  • O PIOR: Espectadores mais sensíveis são desaconselhados a ver o filme, sendo que as suas imagens conseguem chegar a extremos da violência.
Overall
10/10
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