“On Falling”, a estreia nas longas-metragens da realizadora portuense Laura Carreira. @Festival de San Sebastián

“On Falling” e a faena de Albert Serra em San Sebastián

“On Falling”, a estreia nas longas-metragens da realizadora portuense Laura Carreira, é um excelente filme de realismo social sobre a migração e as rotinas de trabalho na atualidade. O catalão Albert Serra apresentou “Tardes de Soledad”, um poderoso documentário sobre um toureiro, com imagens não aconselháveis aos mais sensíveis. Dois dos filmes mais fortes da Competição com co-produção nacional. É bem provável que ambos saiam daqui com um prémio.

“On Falling”, a estreia nas longas-metragens da realizadora portuguesa Laura Carreira — autora das curtas “Red Hill” (2018) e “The Shift” (2020), que passaram ambas, salvo erro por Vila do Conde — é um olhar bastante deprimente sobre o trabalho moderno e a produtividade, que se vem agravando com as novas tecnologias e a sombra da IA, ao serviço da humanidade. Trata-se quase de um ensaio documental, sobre as novas formas de ‘escravidão remunerada’, que acompanha as repetitivas tarefas e as jornadas de trabalho de Aurora, uma jovem migrante portuguesa, interpretada por Joana Santos (“Vadio”). Os dias de Aurora custam muito a passar, como ‘repositora’ de um grande armazém na Escócia, semelhante aos da Amazon: coloca os produtos que serão depois enviados, num carrinho com um scanner digital, que ao mesmo tempo, vai monitorando a sua produtividade. Parcialmente inspirado nas experiências da realizadora como estudante de cinema em Edimburgo, a protagonista de “On Falling” sujeita-se para sobreviver, a uma profissão desqualificada, passando os seus turnos da manhã e da tarde, divididos por um curto intervalo para o almoço, onde ela com os seus colegas procuram ter qualquer conversa decente ou animada. O automatismo e a repetição constantes são o seu ritmo, impulsionado apenas pelas notificações automáticas que recebe do chefe de armazém, elogiando (ou não) as suas boas estatísticas diárias: pelo seu bom desempenho oferece-lhe um chocolate. 

VÊ TRAILER DE “ON FALLING” 

Usando o realismo social, para contar a sua história — aliás muito semelhante a “Listen”, de Ana Rocha de Sousa e “Great Yarmouth: Provisional Figures”, de Marco Martins, que também passou aqui por San Sebastián — “On Falling” bastante mais forte, que outras obras do género, talvez pela sua subtileza, contenção e minimalismo. “On Falling” vê-se quase como um documentário filmado em tempo real,  que evita oscilações violentas — a câmera funciona como um olhar passivo — ou diálogos artificiais, tudo sai naturalmente, assente apenas na devastadora interpretação de Joana Santos: um jovem mulher que se vai esvaziando por dentro, por causa das condições de trabalho desumanas a que está sujeita.

On Falling
O filme assenta na devastadora interpretação de Joana Santos. ©Festival de San Sebastián

Por isso, a história de Carreira é bastante derrotista. A personagem de Aurora poderia à primeira vista desenvolver mais resiliência e desenvoltura — ela bem tenta é um facto — contra este ‘emprego de merda’. Contudo, quando abordamos ou pensamos sobre o papel do trabalho economia de hoje, seja como ‘repositora’, seja como operador de call center ou à frente de um computador, as rotinas diárias de trabalho, estão-se tornando cada vez mais vazias e em algo sem sentido; ao mesmo tempo que vai desencadeando um impacto muito negativo na auto-estima e na personalidade dos jovens, ao ponto de os alienar e fazer perder a esperança no futuro. Carreira tem um olhar bastante documental, sobretudo ao nível do ritmo e da profunda captação do clima e dos ambientes onde se desenvolve história: o barulho dos passos dos trabalhadores, o rangido de um portão de metal, o irritante bipe do scanner de Aurora — a sua ferramenta de ofício — criam uma envolvente perfeita, que mostram como a realizadora que  viveu parte desta experiência que é contada, não caiu na armadilha de pensar que realismo social significa apenas contar histórias de ‘pobrezinhos e coitadinhos’ e defender a ausência de elevados valores de produção, semelhantes aos filmes americanos. O filme é também meticulosamente moldado à medida do seu argumento, a partir de localizações bastante plausíveis, que vão do armazém, ao apartamento partilhado por pessoas de várias nacionalidade, às cenas no bar e, os actores parecem ter mesmo espaço e liberdade para respirarem e até improvisarem, sendo eles próprios. 

On Falling
Aurora (Joana Santos) trabalha  como ‘repositora’ num grande armazém na Escócia. ©Festival de San Sebastián

Produzido pela BRO Cinema, a produtora portuguesa de Mário Patrocínio e pela Sixteen Films, empresa co-fundada por Ken Loach, “On Falling” é muito mais arriscado do que qualquer uma das últimas obras dessa lenda política viva do cinema britânico. O filme de Carreira teve a sua estreia mundial recentemente na secção Discovery do Festival de Toronto e chegou aqui à Competição já com uma grande expectativa em relação a prémios, até porque o festival canadiano não é um festival competitivo. Por isso, é muito provável que “On Falling” saia daqui com um prémio no palmarés de San Sebastián 2024. 

Tardes de Soledad
“Tardes de Soledad”, um filme notável de não-ficção sobre um toureiro. ©Festival de San Sebastián

O sempre provocador realizador catalão, Albert Serra (“Pacifiction”), é habitualmente um cineasta de voos mais altos, que vão de Cannes a Veneza, além de nos últimos anos ter sido um parceiro recorrente do cinema português, co-produzido pela Rosa Filmes de Joaquim Sapinho, nos seus últimos filmes. Desta vez em “Tardes de Soledad” também tem financiamento da RTP, num tema que para nós portugueses também nos é particularmente próximo e provocado grandes discussões, gostemos ou não: as touradas. Serra estreou-se na Secção Oficial de San Sebastian, com este fabuloso “Tardes de Soledad”, que não é um filme de realismo social como “On Falling”, mas antes uma obra notável de não-ficção ou melhor um documentário estilizado — faz lembrar Zidane: um retrato do século XXI”, de Douglas Gordon e Philippe Parreno, que aborda os estados mentais e espirituais, que o toureiro vive na praça de touros (ainda antes e depois), mas com imagens que fogem completamente a todos os clichés de filmar touradas. Neste filme, não temos nenhuma ‘festa rija’ há antes tensão, sangue, feridas e morte. O protagonista é o jovem toureiro peruano Andrés Roca Rey, nascido para ser uma estrela da tauromaquia,  desde muito pequeno. Tal como o toureiro em frente ao touro também Serra com esta proposta arriscada, coloca-se contra qualquer forma de correcção política e no lado oposto dos activistas anti-touradas. E por isso, independentemente do fascínio das imagens — mesmo para aqueles que não gostam de touradas, como é o nosso caso — “Tardes de Soledad” vai decerto alimentar muitas polémicas e opiniões muito diversas, ao contrario de “On Falling”. As imagens e os sons foram gravados durante cerca de dois anos, em algumas corridas de ‘touros de morte’, entre Espanha e França. Praticamente nunca se vêem os aficionados nas bancadas da praça, só a arena e as vozes de incentivo vindas do burladero da quadrilha (bandarilheiros, picadores e empresários ou agentes) de Roca.

VÊ TRAILER DE “TARDES DE SOLEDAD”

As câmeras (várias e distintas) estão quase sempre sobre o rosto de Roca Rey, deslizando ou bailando nas suas belas faenas na arena, com os seus trajes de lantejoulas, avançando para o animal como se ele fosse um espelho, persistindo na sua batalha contra a besta, mesmo depois de ser colhido, pelo menos uma vez; ou então mostram o touro ferido de morte em agonia sangrando depois da estocada final, explorando radicalmente estas imagens como nunca vimos. Mais do que os olés, ouvimos a respiração do toureiro e do touro. De facto em “Tardes de Soledad”, o trabalho de som e montagem são fundamentais. A proposta estética e a experiência visual é tão forte que mesmo sendo por vezes terrível de olhar, não deixa de nos fascinar e tornar-se profundamente imersiva. Depois temos uma sequência em que assistimos ao difícil — e bem  queer, o que não deixa de ser um paradoxo — de vestir o fato de lantejoulas, com a ajuda do seu ‘moço’. De uma forma narcisista o jovem toureiro não para de se ver ao espelho e benzer-se continuamente e mais do que uma vez, com a sua fé inabalável de que Nossa Senhora o protegerá das investidas assassinas do touro.  

Tardes de Soledad
O protagonista é o jovem toureiro peruano Andrés Roca Rey, nascido para ser uma estrela. @Festival de San Sebastián

Assistimos ainda à enorme tensão do toureiro antes e ao alívio depois das corridas de touros: Serra coloca uma câmara no banco em frente a ele, da carrinha de transporte — fica-se com a ideia, porque ele manda apagar as luzes e dizem-lhe que não é possível — e quase de certeza que Roca não sabe que está a ser filmado. Tudo parece ter sido combinado anteriormente, com o seu empresário e a sua quadrilha, que não param de o elogiar (ou manipular) e de lhe encher o ego, pela sua brilhante faena: ‘és um homem com tomates’, ‘és grande’ ‘és super-homem’, algo que até fez rir a sala num momento também de alívio face ao incrível poder das imagens.  “Tardes de Soledad”, além de um documentário extraordinário sobre as touradas e os seus valores machistas e extremistas, é também um grande ensaio sobre uma mitologia ibérica (uma tradição de Espanha e Portugal),  uma violência contida e inconsciente, um saudade, que Alberto Serra consegue desnudar completamente.



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