Emmanuelle Devos num retrato contido e devastador. Emmanuelle Devos: Um retrato contido e devastador

Um Silêncio – Análise

Estreou esta semana nos ecrãs nacionais “Um Silêncio”, de realizador belga de Joachim Lafosse, uma reflexão dura sobre as consequências de uma omissão deliberada. Inspirado livremente por um caso real, Lafosse ambienta a narrativa numa elite francesa que descobre, tarde demais, que muitos anos de silêncio são incapazes de conter a verdade.

Os segredos que se enterram em família nunca ficam em paz

A família perfeita, a casa de revista, os filhos educados e o marido de prestígio. Tudo parece em ordem na casa dos Schaar, até ao dia em que o silêncio se torna impossível de manter. “Um Silêncio” (Un Silence), novo filme do belga Joachim Lafosse, estreado no Festival de San Sebastián 2023, parte desta fachada burguesa para explodir num drama psicológico de contornos devastadores, onde os pecados do passado regressam com força e exigem ser ouvidos.

Un Silêncio
Um filme assumidamente inspirado em factos reais bastante mediatizados. ©Filmes4You

Um filme inspirado num caso real

Inspirado em factos reais, nomeadamente no caso de Victor Hissel, advogado belga envolvido em escândalos após ter representado as vítimas do infame caso Dutroux, o filme opta por ‘ficcionalizar’, mas não para suavizar, o que se passou na realidade. Pelo contrário, Lafosse investe na construção de um ambiente denso, carregado de tensões silenciosas, onde o que não é dito pesa tanto como o que é revelado.

O silêncio cúmplice de uma matriarca

O grande mérito narrativo de “Um Silêncio” está na escolha do ponto de vista. A história não é contada nem pelo criminoso nem pelas vítimas diretas, mas por Astrid (Emmanuele Devos), a mulher que viveu com um monstro sem nunca o denunciar. Devos entrega-se uma interpretação arrebatadora, feita de contenção e de olhares que dizem mais do que várias páginas de diálogos. O seu percurso é o mais trágico: não o de quem cometeu o crime, mas o de quem o permitiu, escudando-se numa paz familiar construída sobre a omissão.

Um Silêncio
Devos encontra aqui talvez o seu papel mais exigente. ©Filmes4You

Uma grande interpretação de Emmanuele Devos

Devos encontra aqui talvez o seu papel mais exigente e conseguido desde “Reis e Rainha” ou “Je veux parler sur Duras”. A sua Astrid começa o filme num gesto de desespero e termina num abismo de reconhecimento. O filme é dela, mas partilha sem dúvida também o fardo com Daniel Auteuil, impressionante como François, o marido cuja reputação e autoridade desmoronam a cada revelação. E com Matthieu Galoux, jovem actor que nos surpreende na forma como transforma um adolescente aparentemente ingénuo numa figura que carrega também o peso do segredo familiar.

Um Silêncio
Matthieu Galoux, um jovem actor que nos surpreende. ©Filmes4You

Um drama de câmara sombrio e preciso

Lafosse é um mestre da implosão emocional. Já o tinha demonstrado em “Os Nossos Filhos” (2012), ao adaptar outro caso chocante com uma sensibilidade quase clínica. Aqui, volta a trabalhar o drama familiar como se fosse um estudo de laboratório: as relações são analisadas ao microscópio, cada gesto ou silêncio pode ser uma bomba relógio. A realização é contida, mas nunca fria. A câmara de Jean-François Hensgens desliza pelos corredores vazios da casa como se também ela procurasse respostas. A banda sonora — com músicas do entretanto falecido Jóhann Jóhannsson e Ólafur Arnalds — reforça a tensão e a melancolia, sem nunca se sobrepor ao essencial: o desconforto moral das personagens e do espectador.

Daniel Auteil
Daniel Auteuil é impressionante como François. ©Filmes4You

A verdade como desmoronamento

Ao longo do filme, vamos percebendo que os danos mais profundos não são os da justiça criminal, mas os da devastação íntima de cada um dos membros da família. A filha mais velha sabe mais do que quer admitir, o filho mais novo cresce num ambiente onde o amor se mistura com medo, e Astrid… Astrid representa todos os que, por vergonha, medo ou conformismo, optaram pelo silêncio. Um silêncio que não protege: apenas adia o inevitável.

Un Silêncio
O filme assenta no desconforto moral das personagens e do espectador. ©Filmes4You

Um final absolutamente devastador

O final de “Um Silêncio” é devastador, precisamente por não oferecer nenhuma resolução confortante. Não há catarse, não há perdão, não há heroísmo. Apenas o vazio que fica quando se percebe que tudo aquilo que se calou se tornou, afinal, a origem de todos os danos. Um filme incrível, tremendo e oportuno, que esperemos não passe despercebido como muitos, à maioria dos espectadores.

“Um Silêncio”, a Crítica | Quando o passado bate à porta da família perfeita
  • José Vieira Mendes - 80

Conclusão:

“Um Silêncio” do belga Joachim Lafosse é um filme difícil, por vezes cruel, mas necessário. Lafosse recusa dramatismos fáceis e constrói uma narrativa onde cada emoção é trabalhada com precisão cirúrgica. O que poderia ser um melodrama escandaloso transforma-se num retrato inquietante da culpa passiva e do peso dos segredos familiares. Pode não ser um filme consensual, e a ausência de personagens redimíveis vai deixar alguns espectadores desconfortáveis. Mas essa é a força desta obra: confrontar-nos com o lado mais obscuro do afecto, com a ideia de que, por vezes, amar é também errar e, pior, ‘comer e calar’.

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Pros

O Melhor: Interpretação magistral de Emmanuelle Devos, num retrato contido e devastador de uma mulher em implosão emocional. Realização precisa e atmosférica de Joachim Lafosse, consegue fazer muito com silêncios e olhares. Abordagem madura de um tema delicado, num filme que recusa o sensacionalismo e opta por uma dissecação emocional sóbria. Ambiente visual e sonoro envolvente, com uma direção de fotografia e a banda sonora reforçam a tensão moral do enredo.

Cons

O Pior: Narrativa lenta e sem catarse, pode deixar parte do público frustrado com a ausência de resolução. Distância emocional inicial, com os primeiros 30 minutos a exigirem paciência e atenção redobrada. Ausência de personagens redimíveis pois a dureza moral do filme pode ser desconcertante ou até alienante para alguns espectadores.



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