"Os Nossos Filhos" | © Leopardo Filmes

Cannes em Casa | Os Nossos Filhos (2012)

O realizador belga Joachim Lafosse é um dos últimos cineastas a apresentar novo filme na Competição Principal deste Festival de Cannes. Enquanto esperamos a chegada do seu mais recente trabalho, “Les intranquilles”, aos cinemas portugueses, vamos recordar um dos seus filmes anteriores. Baseado em hediondos factos verídicos, “Os Nossos Filhos” é um drama que sufoca e angústia. É também um filme poderoso que valeu prémios à atriz Émilie Dequeune. Além disso, “Os Nossos Filhos” foi também a obra selecionada para representar a Bélgica nos Óscares de 2012.

A 28 de Fevereiro de 2007, em Nivelles na Bélgica, Geneviève Lhermitte matou os cinco filhos. Não partilharemos os detalhes da carnificina, mas fica a promessa que é um relato infernal. Ela fez o crime enquanto o marido estava fora do país, de visita a Marrocos, e no cúmulo desespero, a mulher tentou suicidar-se também. Só que, no fim, Lhermitte sobreviveu. Seu caso subsequentemente explodiu num turbilhão de infâmia e atenção mediática, antes de os tribunais belgas a sentenciarem com pena perpétua. O filicídio por parte da mãe é desses crimes que fascina contadores de histórias desde a Antiguidade Clássica, pelo que não nos surpreendemos com a existência de “Os Nossos Filhos”.

Só que, apesar da premissa sensacionalista, o filme de Joachim Lafosse não tenta ser nenhuma “Medeia” do século XXI. Mais do que se focar na tragédia e seu rescaldo, o cineasta tenta uma proeza perigosa e muito audaz. Apesar de alterar nomes e uns quantos detalhes menores, “Os Nossos Filhos” é uma dramatização bastante fiel da vida de Lhermitte. É um exercício em empatia que tenta explorar o que pode levar uma pessoa a cometer essa atrocidade. Não que Lafosse peça perdão em nome da protagonista, mas pede-nos uma visão generosa, empatia, e um rasgo de entendimento. Ele jamais se assume como defensor da assassina, mas está cá para a compreender através do mecanismo humanista do cinema.

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© Leopardo Filmes

Não querendo já concluir se a tentativa sucede ou não, convém reconhecer quanto a estratégia do cineasta nos parece contraintuitiva. Quiçá na busca de um gesto anti sentimental e bem distante dos tabloides, Lafosse aborda a história da filicida, renomeada Murielle, como uma cumulação de pressões externas. Ao invés de se enveredar pelos caminhos traiçoeiros da psicologia dramatúrgica, o cineasta organiza as ideias em torno de um elenco de personagens mais opacas que transparentes. A questão de problemas da saúde mental é levantada, mas a câmara jamais perscruta a interioridade da figura central, preferindo a pseudo-objectividade da observação passiva, crua, quase clínica.

O registo é realista, esse estilo cheio de luz natural e câmara ao ombro, performances naturalistas e um generalizado sentido de displicência estética. Dentro desse paradigma, o filme começa num prólogo evocativo do horror iminente. Vemos Murielle na cama de hospital, falando que quer que alguém seja enterrado em Marrocos. A isso segue-se a imagem de quatro pequenos caixões, antes de toda a narrativa se desdobrar na cronologia, retorcendo-se até que estamos no início de tudo, no tempo de idílio romântico entre um casal jovem e cheio de esperança. Murielle e Mounir estão muito apaixonados, abençoando o filme com erotismo e muitos sorrisos. São esses os últimos rasgos de leveza emocional neste pesadelo.

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Gradualmente, o contexto da miséria doméstica começa a impor-se. A principal fonte dessa força maligna é André Pinget, um médico geral que, há muitos anos, patrocinou a imigração de Mounir, de Marrocos para a Bélgica. O jovem, pela sua parte, olha para o senhor doutor como um pai adotivo e deixa que ele controle todos os aspetos da sua vida. Pinget até acompanha os dois apaixonados na lua-de-mel, apelando à compaixão para com sua vida solitária. Antes de começarmos sequer a questionar a codependência do pai e filho, já os recém-casados estão a viver debaixo do telhado do ancião e ele assumiu-se como principal médico de Murielle. Parte do impacto do filme devém do modo como estas mudanças radicais na vida das personagens acontecem no espaço entre cortes reticentes.

Apesar do realismo com que a história é filmada, o ritmo da fita é vertiginosamente veloz, saltando de ano para ano com extrema casualidade. Ao não demonstrar qualquer consistência no modo como a cronologia avança, somos submersos numa angústia que asfixia, uma imprevisibilidade opressiva. Num abrir e fechar de olhos, um bebé multiplica-se em três e mais uma gravidez se afirma no horizonte. Licenças maternas encadeiam-se de tal modo que Murielle parece sacrificar sua profissão pedagoga para se tornar numa dona-de-casa a tempo inteiro. Só que conversas sobre dinheiro e um vislumbre de tensões na sala de aula lembram-nos do contrário. Esta mulher vai deixando de ser pessoa para ser mãe e quaisquer vacilares são imediatamente respondidos com ira masculina.

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No papel principal, a belga Émilie Dequenne tem aqui o seu melhor papel desde a icónica “Rosetta” dos irmãos Dardenne. Vê-la afundar-se na depressão é um espetáculo aterrador, tão mais intenso por quão pouco a atriz pode expressar. Sempre aos olhos dos outros, perante constante censura, Murielle aprende a esconder as montanhas de ansiedade que lhe pesam sobre as costas. Por isso mesmo, um fugaz instante sozinha no carro serve de ilustração perfeita do horror. Ouvindo uma balada inana, Murielle começa a cantarolar, rindo-se levemente, até que o sorriso se desmancha numa torrente de lágrimas, soluços rasgados, e voz quebrada. Todo capturado num plano contínuo, o interlúdio musical é e o ponto alto da fita.

Reunidos depois do sucesso de “Um Profeta”, Tahar Rahim e Niels Arestrup têm papéis ainda menos demonstrativos que o de Dequenne, andando na corda-bamba entre secura que repudia o melodrama e uma vontade para vilificar os homens da história real. Como Mounir, Rahim é uma bomba em câmara lenta, seu calor romântico estilhaçado na crueldade de um marido negligente. Por sua vez, Arestrup interpreta as manipulações do Dr. Pinget com tal simplicidade, que a ação patriarcal mete ainda mais medo. A dinâmica entre os dois confere um comentário proto colonial a “Os Nossos Filhos”, trazendo temas maiores a este evento. Juntamente com Dequenne, os atores sublimam uma experiência cinematográfica que definida pelo pânico, esse medo do animal encurralado que até arrancará os próprios membros para se libertar.

“Os Nossos Filhos” de Joachim Lafosse está disponível na MEO e FILMIN.



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