"O Segredo de Brokeback Mountain" | © Focus Features

O Segredo de Brokeback Mountain | Cinema com Orgulho

Ang Lee ganhou o Óscar de Melhor Realizador por “O Segredo de Brokeback Mountain,” clássico moderno do cinema queer. Neste Mês do Orgulho, recordamos este romance trágico, com Heath Ledger e Jake Gyllenhaal nos papéis principais.

A cinco de março de 2006, a 78ª cerimónia dos Prémios da Academia teve lugar em Los Angeles. Foi uma noite que ficou para a História como uma das mais chocantes de sempre, mas não se saberia isso até se abrir o último envelope. Porque, tirando Melhor Filme, a maioria dos Óscares caíram nas mãos previstas, com “O Segredo de Brokeback Mountain” de Ang Lee a conquistar galardões para a sua Banda-Sonora, Argumento Adaptado e Realização. Tendo já ganho inúmeras honras dos críticos, assim como o BAFTA e o Globo de Ouro, afigurava-se a sua vitória também nos Óscares. Jack Nicholson certamente esperava isso, julgando pelo choque na sua cara quando abriu o envelope final das festividades.

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Crash: No Limite” foi quem ganhou, surpreendendo cinéfilos e peritos, críticos e indústria em igual medida. Hoje em dia, costuma ser considerado uma das piores produções já consagradas pela Academia de Hollywood. No entanto, nada se compara à controvérsia causada no rescaldo imediato da sua vitória, quando muitos faziam a autópsia do sucedido e tentavam encontrar a sua causa. Muitos concluíram que, não obstante a aclamação, “O Segredo de Brokeback Mountain” ainda seria radical demais na sua representação mainstream de um romance queer. Especialmente um que ia contra noções de masculinidade tradicional associadas à figura do cowboy Americano.

Estava-se então a meio do segundo mandato de George W. Bush e cada passo para a frente na luta pelos direitos queer vinha acompanhado de dois para trás. Até havia membros da Academia como Ernest Borgnine que se recusaram a ver a obra por princípio moral. Não que o filme de Ang Lee se impusesse como um gesto ativista. Toda a arte é política, mas nem todo o objeto artístico existe enquanto parte de um discurso, enquanto instrumento argumentativo ou sermão. “Crash” está muito mais nessa onda didática, abordando o tema do racismo através de uma perspetiva liberal, ingénua ao ponto de tentar redimir um polícia desavergonhadamente racista.

Um filme injustiçado nos Óscares.

o segredo de brokeback mountain critica
© Focus Features

Chamamos a atenção a esta polémica para sublinhar a importância do filme e quão arriscada toda a produção foi na altura, integrando-se num contexto de estúdio, com estrelas de Hollywood, bem longe dos círculos avant-garde onde o cinema queer nasceu. Aliás, muitos dos artistas por detrás deste “Segredo de Brokeback Mountain” nem se incluem na comunidade mais tocada pela narrativa. Mais notório até que os dois atores principais – Heath Ledger e Jake Gyllenhaal – será o realizador, cuja nacionalidade Taiwanesa ainda o distancia mais do material. Mas quem conhece o trabalho de Ang Lee saberá que o milieu lhe assenta como uma luva.

Não porque ele está próximo das sexualidades, cultura ou paisagem retratadas. Mas sim porque toda a filmografia do autor até então se focava em histórias de repressão, com grande ênfase nas tensões entre tradicionalismos constritivos e os desejos mais profundos do ser humano. O seu primeiro grande sucesso foi o “Banquete de Casamento,” sobre um imigrante nos EUA que tenta agradar à família com uma noiva chinesa, escondendo a sua relação com outro homem. “Comer Beber Viver” considera temas semelhantes, enquanto “Sensibilidade e Bom Senso” demonstrou como o realizador conseguia transpor os seus talentos para línguas e cenários longínquos.

Depois de assinar uma das melhores adaptações de Jane Austen já feitas, trazer o trabalho de Annie Proulx ao grande ecrã foi canja. O projeto começou com o argumento de Diana Ossana e Larry McMurtry, tendo passado por muitos outros cineastas antes de chegar a Lee. Mas ainda bem que chegou, pois “Brokeback Mountain” necessitava da sua astúcia para exteriorizar a interioridade de personagens reprimidas, homens e mulheres em negação própria, que se apagam a si mesmos e engolem a seco os segredos numa sociedade hostil. Também precisava do equilíbrio certo entro o lirismo de um poema paisagístico e o retrato histórico de uma América não tão distante quanto isso.


A ação começa em 1963, nas zonas rurais do Wyoming. Aí, dois homens se conhecem quando ambos são contratados por um rancheiro para levarem as suas ovelhas a pastar na cordilheira mais próxima durante os meses mais quentes. Del Mar é homem de poucas palavras, taciturno até ao tutano e de modos bruscos. É difícil perceber o que ele sente, tanto o seu ser está escondido por projeções de resmunguice. Jack Twist é muito mais expressivo e falador, passando muitos dos primeiros dias a tentar puxar pela conversa com o colega. Nessas primeiras passagens, “O Segredo de Brokeback Mountain” é um estudo de personalidades antagónicas, aparentemente incompatíveis.

Seria fácil para Lee explorar as possibilidades farsolas a que o texto se predispõe, mas as tonalidades que ele traz ao filme são mais delicadas. Muito do drama se faz de silêncios pesados, a dinâmica entre a grandiosidade da montanha e os olhares desviados dos cowboys. Num momento memorável, Lee filma a nudez de Heath Ledger, colocando o seu Ennis no fundo da imagem, desfocado. No primeiro plano, temos a face de Jack, com Gyllenhaal a cantar toda uma rapsódia de desejo proibido sem fazer qualquer som. Está tudo no detalhe comportamental, na tensão dos ombros, na insistência dos olhos que querem espreitar o corpo nu, mas temem ser apanhados, rejeitados, quiçá atacados.

O trabalho de Rodrigo Prieto como diretor de fotografia é belíssimo, mas subtil, tanto no enquadramento como na paleta, nas sombras suaves e contraste baixo, procurando as dimensões humanas do conto ao invés de uma mera coleção de postais. Regista-se algo semelhante na banda-sonora de Gustavo Santaolalla, com seus apelos ao dedilhar da guitarra, insinuando uma melancolia profunda desde a primeira nota, jamais se rendendo por completo a tradições folclóricas ou convencionalismos românticos. Tudo no filme existe neste tenor de contenção, espelhando o estado mental dos homens que, até quando a paixão deflagra entre eles, se mostram reticentes e temerosos.

O amor transcende as leis dos homens, a vida, a morte.

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© Focus Features

Se falta carnalidade ao “Segredo de Brokeback Mountain,” a lacuna justifica-se pelo estudo de personagem, pela alienação que as figuras masculinas têm dos seus corpos que ardem sem se ver, amores renegados e verdades soterradas por mentiras que se contam e recontam em jeito de prece. O primeiro ato é esse verão idílico, interrompido pela recriminação do patrão que, certa tarde, vislumbra alguma daquela intimidade transgressiva entre os pastores. Daí para a frente, a história ganha a dimensão de um épico, retratando décadas na vida das personagens, acompanhando os seus casamentos fracassados e encontros ilícitos.

Aconteça o que acontecer, Ennis e Jack voltam sempre a encontrar-se no Éden de Brokeback Mountain. O seu elo é romântico e sexual, mas também depende de uma espécie de reconhecimento essencial, uma ligação imperfeita que Lee, seus argumentistas e atores retratam com uma franqueza absoluta. Eles nunca são idealizados, especialmente Ennis, cuja repressão lhe endurece o coração e corrói a relação com a mulher. A sua incapacidade de articular o que quer que seja, até a mais básica das mentiras, surge como um seguimento orgânico da inacessibilidade daquilo que o coração exige. Na mesma linha concetual, também não se vilificam as esposas e namoradas que estes homens usam como escudo.

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“O Segredo de Brokeback Mountain” é generoso para com o seu vasto elenco de personagens, simpatizando até com o horror que Alma Del Mar sente quando descobre o marido aos beijos com Jack. Michelle Williams teve aqui a sua primeira obra-prima interpretativa e Anne Hathaway mostrou como era muito mais que a Princesa de Garry Marshall. Até papéis menores são milagres de casting e performance, como David Harbour num momento de engate em soslaio, ou Kate Mara na última cena da fita. Uma última cena que resume a tragédia dos amantes proibidos na justaposição de duas camisas, um figurino totémico que une os dois homens além da morte depois do seu amor ter sido negado em vida.

Por outras palavras, “O Segredo de Brokeback Mountain” devia ter ganho o Óscar! Vê por ti mesmo. Em Portugal, o filme está disponível para aluguer na Amazon Prime e na Apple TV.



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