Cinema com Orgulho | Dez filmes LGBT+ que nunca chegaram às salas portuguesas
A nossa celebração do Pride Month continua, desta vez com uma seleção de grandes filmes com temáticas queer que nunca tiveram estreia nas salas de cinema em Portugal. Por vezes, aclamação popular e crítica não é suficiente para garantir distribuição – uma tragédia para o cinéfilo lusitano.
Ao longo deste Mês do Orgulho, temos vindo a celebrar vários títulos do cinema queer disponíveis nos vários serviços de streaming a que o público português tem acesso. Contudo, nem sempre o grande cinema chega a tais plataformas. De facto, por vezes nem tem direito à passagem nas salas nacionais, projetado no grande ecrã como toda a sétima arte merece. Por isso mesmo, propomos uma lista de recomendações alternativas, mais obscuras ou quiçá desafortunadas. São grandes filmes que, tristemente, nunca conseguiram distribuição portuguesa. Mesmo nos dias de hoje, com a berra do streaming e PVOD, continuam difíceis de ver.
Na sua maioria, são títulos que só passaram em festival ou então projetos só editados em DVD e Blu-ray estrangeiro, sendo necessária a importação para saciar a fome cinéfila. Quando nos referimos aos títulos mais antigos, remontando até aos anos 70, existe sempre um fator de preconceito aliado ao fado triste. Afinal, nem sempre o público foi tão aberto a ver histórias de pessoas queer, sensibilidades extremadas e experiências radicais. Talvez com projeção de artigos como este e a procura das audiências, alguns destes filmes possam reverter o seu destino. A esperança é a última a morrer e, como sempre acontece com a comunidade LGBT+, a resistência é palavra de ordem.
De 1974 a 2021, a nossa viagem começa numa Baltimore imaginada, deliberadamente nojenta e sem pudor, um ataque contra o bom gosto e os bons costumes. Subversão reina suprema no cinema deste autor e até os trabalhos menores são choques para o sistema. Referimo-nos a…
FEMALE TROUBLE (1974) John Waters
O estilo rebelde de John Waters não tem comparação, sempre pronto a estilhaçar tabus e retorcer os preceitos da sociedade com gozo diabrete. “Pink Flamingos” é talvez o seu filme mais famoso, mas “Female Trouble” é a sua maior obra-prima, repetindo muito do elenco já presente nesse título anterior. Trata-se de um melodrama em jeito drag, seguindo a vida de Dawn Davenport interpretada pela irreverente Divine. Tudo começa com a fúria da miúda mimada que não recebe o presente que queria no Natal e termina com o massacre do espetador – uma cuspidela na cara de quem se ofende e um beijo terno para aqueles capazes de ver glória no lixo, no degredo, na fantasia pestilenta de um mundo virado de pernas para o ar.
DESERT HEARTS (1985) Donna Deitch
Muito antes de Todd Haynes filmar o romance de “Carol,” já Donna Deitch tinha explorado histórias de amor entre mulheres nas décadas do pós-guerra. “Desert Hearts” renega a tradição melodramática de Sirk e companhia para explorar tonalidades que a Hollywood dos anos 50 jamais criaria, optando por um realismo modulado pela magia do desejo. As prestações de Helen Shaver e Patricia Charbonneau são brilhantes, mas é o poder da imagem que persiste na mente do espetador. Quer seja um beijo à chuva ou a escuridão reconfortante de um carro sob a alçada de um céu estrelado, Deitch encontra poesia e esplendor.
Aliás, este foi um dos primeiros trabalhos de Robert Elswit, diretor de fotografia que viria a ganhar o Óscar com “There Will Be Blood” de Paul Thomas Anderson.
PARIS IS BURNING (1990) Jennie Livingston
Um marco histórico sem igual, este documentário tem uma influência imensa na cultura drag atual e sua proliferação no mainstream. Contudo, não há aqui nenhuma da polidez de RuPaul e companhia, mas uma visão dos marginalizados nova-iorquinos na procura de casa na cultura ballroom. A história queer cristaliza-se em festas de fantasia, entrevistas cândidas sobre ‘shade’ e o figurino que fala verdade a mentir. Filmado com a crise do HIV/SIDA a ceifar muitas vidas, todo o projeto tem o tenor de uma final homenagem, preservando a glória de muitos artistas que viriam a perder-se antes do virar do milénio. “Paris Is Burning” é euforia plena em celuloide.
CALL ME KUCHU (2012) Katherine Fairfax Wright & Malika Zouhali-Worrall
As legislações anti-LGBT continuam a vingar por toda a África, fazendo com que filmes como “Call Me Kuchu” perdurem enquanto necessários objetos de sensibilização, ativismo político e cinema panfletário contra a opressão. Neste caso, trata-se de um retrato da Uganda no que se refere aos direitos da comunidade gay, trucidados por legislação injusta e todo um aparato estatal focado no seu extermínio. Entre as várias figuras que lutam pela liberdade, David Kato destaca-se como voz singular em nome do coletivo. Por isso mesmo, seu fado triste é um choque cruel, uma tragédia que dá estrutura ao filme e o termina em jeito épico.
Apesar de já ter passado na Cinemateca Portuguesa, “Call Me Kuchu” continua muito inacessível no nosso país.
THE LURE (2015) Agnieszka Smoczynska
Nas últimas décadas, o cinema eslavo tem expandido os horizontes, com a criatividade outrora território solitário da animação chegando ao live-action mais experimental. Assim é o caso deste conto-de-fadas polaco e profanado, história de duas irmãs sereias trazidas para o mundo dos homens, onde se tornam sensações de cabaret. Quer seja interpretado como metáfora para a experiência trans ou um jogo simbólico sobre desejos proibidos a tombar no destrutivo, este é um pesadelo queer com laivos de musical monstruoso. Opulente na estranheza, destemido na perversão, “The Lure” é um daqueles filmes que há que ver para crer.
JOURS DE FRANCE (2016) Jérôme Reybaud
Os apps de encontros e engates têm vindo a revolucionar a experiência sexual da comunidade queer, especialmente no que se refere a homens atraídos por outros homens. Dito isso, é raro o filme que se digna explorar tais dinâmicas, o cruising mais tradicional tomando prioridade no grande ecrã. “Jours de France” é a exceção que prova a regra, relatando uma odisseia pela ruralidade gálica, um corpo entesado em busca da perdição, um match no Grindr de cada vez. Apesar da premissa lasciva, Jérôme Reybaud considera o desejo acima da carnalidade gráfica, usando jogos eróticos para espelhar tensões internas.
Uma das cenas de sexo mais impactantes da década passada está nesta fita, sem roupas despidas, o toque separado por uma parede, tudo feita de sensações autónomas e gemidos feitos sincronia.
CORPO ELÉTRICO (2017) Marcelo Caetano
Muitos filmes nesta lista têm marcado presença no circuito dos festivais, especialmente no Queer Lisboa e, mais recentemente, no Queer Porto. Quando se trata de cinema latino-americano, isso ainda é mais certo, estando os programadores desses eventos bem investidos na promoção da expressão LGBT dessa parte do mundo. Assim é o caso de “Corpo Elétrico,” um sonho hedonista de Marcelo Caetano cheio de desejo doce e o júbilo de toda uma comunidade. Seguindo a figura de Elias pelas ruas de São Paulo, conhecemos amigos e amantes, mulheres trans e homens gay, drag queens e bandidos inspiradores, imigrantes em busca de felicidade, o mundo em busca de amor.
UN RUBIO (2019) Marco Berger
Tal como aconteceu com “Corpo Elétrico,” também “Un Rubio” passou nos festivais portugueses sem, no entanto, garantir distribuição nacional. Esta é a sorte de Marco Berger, realizador argentino e mestre da tensão sexual, sempre pronto a encontrar os sensualismos ilícitos do dia-a-dia, os desejos sublimados entre homens que passam por hétero. Depois de alguma polémica e fantasia idealizada, “Un Rubio” surge como estudo mais bem tenebroso na sua oeuvre, pesquisando as vicissitudes de um romance tóxico. A clausura do armário é um veneno de ação prolongada, matando a esperança até que alguém finalmente diz ‘não, já chega.’ Além de tudo isso, este é talvez o drama mais bem atuado do cineasta, contando com uma prestação deveras divinal de Gaston Re como o loiro titular.
FUTURO TRÊS (2020) Faraz Shariat
Também conhecido como “Futur Drei” e “No Hard Feelings,” esta ousada proposta considera temas de imigração islâmica na Alemanha e as forças complicadas de paixão e tradição. Oscilando entre sensualismos expostos sem vergonha e cenas mais delicadas, onde a reticência do toque diz mais que qualquer orgasmo, o filme é simultaneamente erótico e comovente. No seu retrato de juventude em crise, também representa uma versão refrescantemente explícita, até adulta, de assuntos muitas vezes tratados com olhar púdico em literatura YA e filmes em estilo semelhante. No meio de todo o espetáculo, fica a sugestão de classicismo na imagem, a provocação de uma história sem respostas claras, um amor com espaço para o beijo, a gargalhada, a lágrima, e muito mais.
BENEDICTION (2021) Terence Davies
No universo fílmico de Terence Davies, culpa católica e desejo homossexual estão sempre de mãos dadas, quer seja num ato de punição própria ou explosões de raiva contra uma instituição que molda a mente para o ódio próprio. “Benediction” leva estas dinâmicas ao rubro, delineando uma biografia do poeta Siegfrid Sassoon desde os traumas da Primeira Grande Guerra até uma velhice definida pela mentira matrimonial. Uma odisseia de desejo transgressivo, o filme move-se através do tempo com fluidez teatral, rompendo barreiras cronológicas como se fosse memória materializada, ou até um poema repensado para o modelo da biopic.
Todos os paradoxos de Davies enquanto autor estão aqui presentes, dores ancestrais sublimadas numa interrogação contínua das personagens, do espetador, do homem atrás da câmara. O ardor inebria, uma vaga onírica para se abater sobre a audiência, pronta a esmagar e dilacerar. Trata-se de uma ferida aberta.
Concordas com estas escolhas? Que filmes mais amarias ver no grande ecrã? Ou, se melhor não haja, na tua plataforma de streaming favorita?