Limonov: A Balada de Eddie – análise
Kirill Serebrennikov conta a história de um poeta dissidente em “Limonov: A Balada de Eddie,” com Ben Whishaw no papel principal. Esta cinebiografia ousada competiu no Festival de Cannes do ano passado.
Dizer que Eduard ‘Eddie’ Limonov foi uma pessoa complexa seria o maior dos eufemismos. Nascido nos últimos anos da Segunda Guerra Mundial, em plena União Soviética, o futuro poeta cresceu no que agora é a Ucrânia e depressa se envolveu em crimes menores. Como jovem adulto cheio de aspirações literárias, ele mudou-se para Moscovo, onde casou com uma colega escritora e viu-se numa encruzilhada com a polícia secreta.
Com o KGB a pô-lo entre a espada e a parede, Limonov fingiu ser judeu para garantir uma viagem a Israel e usou essa saída da União Soviética para fugir rumo à América, a Nova Iorque.
O exílio durou décadas, muitas relações desfeitas, espirais de degredo e muito desespero, inúmeras obras de valor debatível e audácia indiscutível. Pelo caminho, Limonov trabalhou como mordomo e foi sem abrigo, rendeu-se às drogas e à vagabundagem, talvez tenha vendido o corpo, talvez tenha experimentado os radicalismos de um dissidente soviético. Nos anos 80 refugiou-se em Paris e, em 1991, regressou à Rússia, onde veio a fundar um partido nacionalista inebriado em nostalgias soviéticas. A contradição inerente a este fascismo de vestimenta comunista estava-lhe na alma, não fosse ele um fã ferrenho de Yukio Mishima.
De renegado do sistema a defensor extremista da sua memória, Limonov é aquele tipo de figura que dá vontade de estudar e dissecar, quiçá em busca de resposta ou de mais mistérios sob a superfície. Não admira que tanto a bibliografia como a biografia do autor tenham vindo a inspirar outros artistas. Entre eles está Emmanuel Carrère que, em 2011, publicou “Limonov,” uma contemplação ficcionada sobre o estranho Russo.
No ano passado, em Cannes, Kirill Serebrennikov, também ele no limiar da dissidência à Federação Russa, apresentou uma adaptação ao cinema desse livro, com o ator britânico Ben Whishaw no papel principal. Aliás, o filme é falado em Inglês.
O caos feito poeta, político, rebelde.
“Limonov: A Balada de Eddie” chegou à Croisette envolto em grandes expetativas, o que só levou à sua desgraça. Perante a crítica internacional, o novo trabalho do aclamado cineasta provou ser deceção e, apesar de até ter um ator célebre, tem vindo a ter problemas em assegurar distribuição internacional. De facto, o filme chega a Portugal mesmo antes de estrear nos EUA, quiçá na esperança que uma audiência europeia veja mais valor no que Serebrennikov concebeu. E apesar de não nos podermos dizer satisfeitos com a fita, temos que admitir tratar-se de uma experiência fascinante, um daqueles fracassos que puxam pela reflexão.
Em primeiro lugar, esta cinebiografia evita a convenção e o lugar comum, seguindo as mesmas linhas líricas que têm marcado os trabalhos do seu realizador. Veja-se a experimentação com diferentes registos estéticos, até incluindo o preto-e-branco para a juventude enquanto trabalhador na indústria soviética, retratos de pele suada e marcada pelo fumo e fuligem que parecem fotografias da época reproduzidas em cinema moderno. E depois temos o surgimento do sonho, quebras com a realidade material de Limonov que, nesse efeito, tentam construir um ponto de acesso à sua interioridade. Temos fantasias homicidas e até um momento de martírio imaginado.
Nesse aspeto, o trabalho de Serebrennikov vai buscar inspiração a Carrère e Limonov em igual medida, concebendo uma peculiar vertigem solipsista pela qual testemunhamos um artista que só parece conseguir criar arte que o centre a si mesmo. A mentira que torna a vida em lenda literária admite-se logo, e até há passagens que nos são apresentadas de forma nua e crua – o sexo entre Limonov e um toxicodependente sem-abrigo nas ruas da Grande Maçã, por exemplo – antes de serem depois questionadas como possíveis invenções que o autor usou para chocar as audiências. E tudo isto concretiza-se com um formalismo impecável.
A Nova Iorque dos anos 70 é o principal foco da narrativa, sendo que a sua invocação visual é dos aspetos fulcrais do projeto. Se errassem, tudo caía por água abaixo, mas a cenografia e os figurinos são tudo menos falhas, invocando um passado próximo em jeito visceral. Os elementos fazem de “Limonov” um objeto de cinema háptico, por onde quase conseguimos sentir os cheiros e o sabor do ar, as texturas de um passado perdido. A fotografia de Roman Vasyanov é igualmente superlativa, evidenciando o seu máximo potencial nas sequências que Serebrennikov filma em takes compridos, sem a respiração do corte ou sua mercê.
Mas então de onde vêm os problemas desta fita? Principalmente de duas vertentes, a começar pelo guião que Serebrennikov assinou em colaboração com Ben Hopkins e Pawel Pawlikowski, cineasta polaco conhecido por “Ida” e “Guerra Fria.” Ao adaptar Carrère, os coargumentistas perderam o sentido de curiosidade literária que lhe guia a caracterização de Limonov. Muito menos conseguem capturar a complexidade do homem real, sendo especialmente oblíquos no modo como abordam a componente política inerente a qualquer texto que se debruce sobre o poeta russo. Para quê estudar a figura se fogem às suas facetas mais curiosas?
A obsessão com os seus anos americanos mostra bem os limites do retrato, mas é a evasão dos seus anos de regresso à Rússia que mais enfraquecem o docudrama. O filme parece confuso consigo mesmo, incapaz de expressar opinião ilegível sobre Eduard Limonov e ainda menos claro nas suas asserções sobre os tempos da Guerra Fria. Todo o texto se manifesta como um esboço esbatido, meio rasurado, deliberadamente incompleto sem saber o que fazer com essa qualidade. A ausência da língua materna do poeta só complica as coisas, insistindo numa distância ainda maior entre o espectador e este anti-herói em perpétua divagação.
Ben Whishaw num raro deslize.
Partindo de tal texto, ninguém conseguiria concretizar Limonov em cena. Contudo, os níveis de malogro a que Whishaw chega conseguem surpreender. Grande ator de talentos e técnica inegáveis, ele demonstra ser péssima escolha para interpretar o poeta desde as primeiras cenas. Sua presença é demasiado controlada para dar vida a um homem que, ocasionalmente, parecia ser o caos em pessoa. Whishaw tenta comunicar a volatilidade das cenas, acabando quase sempre por cair num registo forçado, especialmente quando lhe é pedido um surto de violência. A situação só piora à medida que a narrativa se desenrola, insana e simultaneamente entediante.
Porque, ao invés de transmitir a ideia de uma tempestade instavelmente contida quando Limonov ganha trabalho como mordomo ou nas breves cenas de regresso à pátria, Whishaw parece sereno. Na fricção entre intérprete e personagem, os dois contradizem-se e invalidam as verdades expostas um pelo outro. No fim, tudo sabe a nada. Não nos levam a mal, pois Whishaw muito tenta, esforço visível e sublinhado, só que o resultado nunca satisfaz e jamais ilumina o mistério do poeta. Mais do que um enigma genuíno, o dissidente emerge como uma colagem de afetações rematadas com um sotaque russo risível.
Se muita da escrita e retórica de Eduard Limonov se predicava no modo quase hostil como ele se expunha, na autenticidade feroz das palavras, “A Balada de Eddie” fica sempre aquém, presa a insinceridades e outras fragilidades que tais. Aplaudimos quanto os artistas envolvidos arriscaram, o modo como tentaram render-se à loucura do seu objeto de estudo sem traírem seus estilos pessoais. Até concluímos que há mérito aqui presente e que vale a pena ver, quiçá até estudar, as insuficiências do “Limonov” do grande ecrã. Dito isso, ficamos a fazer figas para que Serbrennikov, Pawilkowski e Whishaw se superem na próxima vez que os virmos. Considerando o seu repertório, não será difícil fazer melhor que isto.
Limonov: A Ballada de Eddie
Conclusão:
- Fazer um filme sobre Eduard Limonov é uma proposta arrojada e prezamos Kirill Serebrennikov pela tentativa. Partindo da biografia ficcionada que Emmanuel Carrère assinou sobre o poeta russo em 2011, o realizador dá o seu melhor, esbatendo a barreira entre irrealidades subjetivas e a verdade material do mundo como tem vindo a fazer nos seus filmes recentes. A evocação do passado histórico é estupenda, assim como todo o formalismo envolvido nas cenas mais oníricas, incluindo assassinatos imaginados e as fantasias sanguinárias do escritor descontente.
- Infelizmente, o argumento perde-se desde início, com pouca vontade de explorar as contradições sociopolíticas patentes no trabalho e na retórica da sua personagem principal. Por muito ultrajante que a biografia seja, cai em ciclos de repetição e daí mergulha na redundância, no aborrecimento de um espectador encurralado algures entre admiração técnica e frustração narrativa.
- Ben Whishaw também fraqueja, entregando-se a um papel para o qual foi uma péssima escolha. Mais do que volátil, o protagonista de “Limonov: A Balada de Eddie” emerge como um exercício dramático sem substância além da superfície vistosa. Confessamos estar desapontados, especialmente sabendo as maravilhas de que este ator é capaz. Enfim, até os melhores artistas vacilam de vez em quando.