via Mosfilm

Como o cinema russo (também) ‘invadiu’ a Ucrânia?

Existem três obras cinematográficas fundamentais (dois filmes e uma série de televisão), que mostram bem, como a percepção histórica da Ucrânia como território russo não é recente e, como isto foi igualmente construído através da ficção e não apenas para efeitos de propaganda política de um lado e de outro.

É realmente uma curiosa coincidência que o cinema soviético tenha como sua obra fundadora, um filme ambientado em Odessa: ‘O Couraçado Potemkine’. A Ucrânia é nada mais nada menos que o ‘berço criativo’ de vários grandes nomes do cinema soviético, nomeadamente um dos seus pioneiros; Dziga Vertov (1826-1954); mas também de Sergei Bondarchuk (1920-1994), o realizador do épico ‘Guerra e Paz’ (1965-67); embora natural da Bielorrúsia é também a pátria de um dos mais aclamados cineastas do momento, nos grandes festivais internacionais: Sergei Loznitsa (‘Donbass’, 2018). Primeiro a URSS e depois a Rússia sempre reclamaram insistentemente (também na ficção) a Ucrânia.

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VÊ TRAILER DE ‘O COURAÇADO DE POTEMKINE’

O Couraçado Potemkine (1925). Este é um dos filmes mais famosos da história mundial do cinema, e não só do soviético. Trata-se de uma indiscutível obra-prima, admirada por personalidades tão diversas quanto o grande cineasta espanhol Luis Buñuel (1900-1983) que fez entre outros ‘A Bela de Dia’, (1967), com Catherine Deneuve ou o produtor norte-americano David O. Selznick (1902-1965), responsável entre outros por ‘E Tudo o Vento Levou’ (1939). O espantoso filme de Sergei Eisenstein (1898-1948) passa-se precisamente em Odessa, na Ucrânia (falarei mais disso com detalhe, num artigo em breve). ‘O Couraçado Potemkine’ é filmado inteiramente em ambientes naturais e a bordo de um verdadeiro navio de guerra. O filme é resultado de uma encomenda das autoridades soviéticas para comemorar o 20º aniversário dos acontecimentos e narra por sua vez um famoso episódio da I Revolução Russa de 1905: o motim contra o poder imperial ocorrido a bordo do Couraçado Potemkine, o contágio revolucionário que então se espalhou a toda a cidade de Odessa e à feroz repressão que se segue.

O Couraçado Potemkine
via Mosfilm

Essa repressão dá origem, no filme — e não na realidade, é uma invenção do cineasta —, a uma sequência de culto, que foi mil vezes imitada em outros filmes (nomeadamente em ‘Os Intocáveis’ (1987) de Brian De Palma): a do massacre de civis nos degraus do Primorsky, a monumental escadaria de Odessa. Ao colocar um bebé num carrinho e no centro da acção (isto é, no topo da escadaria), Eisenstein mantém o espectador fascinado e em suspenso, entregue aquilo que se pode considerar a quinta-essência da arte da montagem. O realizador envia ao mesmo tempo uma clara mensagem política: Odessa aparece como o centro da história e como a capital do bolchevismo. Não há, parece como, a Ucrânia sair da esfera da URSS.

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VÊ TRAILER DE ‘TARAS BULBA’

Taras Bulba (1962) A versão mais conhecida, é um filme de aventuras de produção norte-americana realizado por J. Lee Thompson em 1962, vagamente baseado no romance do escritor russo Nikolai Gogol (1809-1852). O argumento é consideravelmente diferente do original de Gogol, embora esteja mais próximo da versão literária de 1842 (pró-Rússia Imperial), do que da versão original (pró-ucraniana) de 1832. Gogol quiz ficar bem com o Deus e o Diabo! Porém, no 1º de abril de 2009, foi lançada nas salas de cinema russas, uma nova adaptação cinematográfica deste famoso romance, ‘Taras Bulba’ e Nicolas Gogol foi celebrado por Vladimir Putin como ‘um enorme escritor russo’. No mesmo dia, o então presidente ucraniano Viktor Yushchenko prestou também uma homenagem ao mesmo escritor: ‘Ele pertence sem dúvida, à Ucrânia’. Gogol escrevia em russo, mas pensava e sentia em ucraniano, diz-se? Ou melhor a sua nacionalidade é motivo de muita polémica, pois sua cidade natal, a cidade dos cossacos ucranianos Sorochyntsi, fazia parte do Império Russo na época, mas actualmente pertence à Ucrânia.

taras bulba
via Avala Film

Assim como Gogol, também o guerreiro Taras Bulba, é um cossaco ucraniano que, na fogueira, jura lealdade eterna ao czar, o que curiosamente pode ser visto por dois prismas diametralmente opostos: um herói da independência ucraniana ou uma figura da unidade do país com a Rússia. Em 1962, o cineasta americano Jack Lee Thompson trabalhou a partir de um argumento assinado por dois argumentistas, um dos quais, Waldo Salt, que foi colocado na lista negra por causa suas simpatias pró-comunistas. Filmado principalmente na Argentina, o filme, protagonizado por Yul Brynner e Tony Curtis, é acima de tudo um filme de acção, um formidável épico guerreiro que foi aliás um grande sucesso de público. No plano político, é um filme que tende a permanecer cautelosamente no centro do debate, apimentando-o com alusões ao czar, enquanto e ao mesmo tempo, exalta a Ucrânia como uma terra de liberdade. Parece, portanto, que mesmo em Hollywood, a questão russo-ucraniana nunca foi fácil de conciliar. Basta dizer que, mesmo que a acção se passe no século XVI, as questões levantadas pelo filme, parecem curiosamente muito contemporâneas.

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VÊ TRAILER DE ‘CHERNOBYL’

Chernobyl (2019) A notável mini-série de Craig Mazin para a HBO parece efectivamente inspirada no documentário A Suplicação-Vozes de Chernobyl’(2016) do luxemburguês Pol Cruchten e por sua vez no extraordinário livro com o mesmo título de Svetlana Alexievitch — curiosamente nascida em Minsk, na Bielorússia — Prémio Nobel de Literatura 2015, uma obra de literatura-reportagem que descreve minuciosamente a tragédia de Chernobyl. Trata-se, portanto, de um relato extremamente documentado, rico em detalhes pungentes e inesperados, sobre um acidente nuclear de enorme gravidade e sem precedentes, com consequências amplificadas por causa das muitas hesitações e uma mentira estatal. Por razões óbvias, as filmagens não ocorreram no local da acção em Prypiat, Ucrânia — mas antes na Lituânia e nos arredores da capital Kiev.

Chernobyl
A magnífica mini-série ‘Chernobyl’, da HBO é um exemplo das tensões que sempre existiram. ©HBO

Mesmo com diálogos em inglês e interpretada por atores britânicos (Jared Harris, Jessie Buckley) e suecos (Stellan Skarsgard), a mini-série ‘Chernobyl’ consegue capturar com grande autenticidade esta tragédia ucraniana: não apenas a vida quotidiana em torno da central nuclear destruída, que é meticulosamente reconstruída, mas também de uma forma muito de simples mostra-nos grande actos de coragem, perante o rolo compressor do poder e dos burocratas que procuram a todo o custo minimizar a tragédia e sentem dificuldade em responder rapidamente a esta emergência. Sem abordar diretamente a questão da independência da Ucrânia, a série transmite igualmente uma mensagem inequívoca, sobre as tensões entre o governo central russo e as autoridades ucranianas.

JVM

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