Festa do Cinema Francês ’25 | Caso 137 – Análise
“Caso 137”, também conhecido como “Dossier 137”, é a mais recente longa-metragem de Dominik Moll. A obra vem no seguimento do seu imenso sucesso com “A Noite do Dia 12”, que lhe valeu múltiplos prémios César, inclusive os galardões para Melhor Realização, Melhor Argumento Adaptado e Melhor Filme, pois claro. De certo modo, existe uma continuidade temática entre os dois projetos, tratando-se de policiais com grande ênfase numa só investigação. Também existem ecos de um certo ceticismo para com a funcionalidade do sistema judicial francês, mas, em quase todas as medidas, “Caso 137” prova ser um trabalho muito mais arriscado que o antecessor.
Esse mesmo risco terá garantido a Moll um regresso à competição principal do Festival de Cannes, uma honra de que o cineasta já não disfrutava desde “Lemming”, vinte anos atrás. Dito isso, há que se ter pensamento crítico e não sobrevalorizar os riscos tomados pelo artista. Há que ter em conta toda a intersecção política do projeto e contexto em que apresenta sua história que, começada a fita, nos é descrita como uma ficção baseada em factos reais. Tudo remonta aos protestos que assolaram Paris em finais de 2018, ao deflagrar do descontentamento francês personificado pelos Coletes Amarelos e sua cólera gritada nas ruas.
Mas, antes disso, o “Caso 137” tem que nos introduzir ao seu milieu investigativo, bem longe do alvoroço e da ação. Porque este não é um drama escrito da perspetiva dos manifestantes ou das forças armadas que se debatem contra eles no que alguns descrevem como “guerra” e “defesa da República”. Pelo contrário, Moll convida o espectador a ponderar o fado de Stéphanie, agente da Investigação Interna, um departamento inundado de casos no rescaldo dos protestos parisienses. De facto, a cena de abertura refere-se a outro caso completamente separado daquele do título, apesar de as mesmas dinâmicas se repetirem, provas de falhas sistémicas.
Perante um polícia capturado em vídeo a atirar uma pedra da calçada contra os manifestantes, Stéphanie surge-nos impávida, sem reação e, acima de tudo, sem opinião própria. Esse é o cerne do seu trabalho segundo a sua própria descrição do mesmo. Também é uma mentira, pois, não obstante a clara culpa do agente cujas justificações se baseiam todas num acesso de raiva em que lhe “saltou a tampa”, a investigadora não recomenda punição penosa. Como “Caso 137” voltará a argumentar em jeito muito mais explícito, o sistema está desenhado para se resguardar a si mesmo e defender os seus, concedendo-lhes um nível de impunidade acima da lei.
Um policial que questiona a polícia.
Qualquer polícia que investiga as ações de um colega está predisposto a simpatizar mais com o acusado do que com os civis e Stéphanie não é exceção. Isso é indiscutível, por muito que argumente o contrário, que minta a si mesma e ao filho adolescente quando este lhe traz histórias sobre a falta de confiança da gente para com as autoridades. O trabalho de Moll é mínimo no que se refere a modular a nossa percepção da protagonista, pondo a responsabilidade sobretudo na atriz principal da fita. E Léa Drucker faz jus ao desafio, começando por articular o profissionalismo de Stéphanie antes de iluminar as contradições e hipocrisias latentes nela.
Trata-se de um retrato feito com base na negação de sentimento demonstrado, contendo tudo e limitando quão legível a interioridade da personagem será do ponto de vista da audiência. Tanto assim é que o seu arco narrativo se prende à desconstrução dessa dinâmica, como se Moll e o “Caso 137” fossem progressivamente descascando camadas de apatia até porem a nu o que vai dentro dessa agente. O momento-chave que desencadeia esse processo acontece quando uma mulher aparece para fazer queixa em nome do filho que está no hospital depois de ter sido alvejado na cabeça com bala de borracha.
Noutra situação, Stéphanie provavelmente deixaria o caso acabar como tantos outros, mas um detalhe chama a atenção e puxa por uma identificação contrária aos laços da polícia para com os seus. A família da vítima vem da mesma localidade onde a investigadora cresceu, partilhando origens de classe trabalhadora com esta senhora, seu filho e restantes companheiros que viajaram até Paris para a sua primeira manifestação. Moll pouco interroga os motivos dos Coletes Amarelos e muito menos documenta a forma como o movimento passou de interesses laborais ao aproveitamento da extrema-direita. No entanto, dá voz à família para se defender.
Pelas suas palavras, pinta-se um quadro de precariedade económica e políticas em traição dos trabalhadores – neste grupo, quase todos enfermeiros ou técnicos de um hospital com cortes orçamentais. Acima de tudo, Moll confere dignidade a estes manifestantes, quiçá até sob o risco do romancear da causa, espelhando o modo como as simpatias de Stéphanie se vão alterando com o acumular de provas. Até sua forma de se dirigir às testemunhas. Um amigo da vítima é primeiro encarado com suspeita e hostilidade, mas as suas palavras reverberam pela fita com sua verdade. Ele foi condenado em dez minutos e a investigação dura meses sem nenhum resultado.
E é difícil ficar indiferente quando Moll mostra toda a força policial em colusão para encobrir e desculpabilizar quem quebrou a lei em suposta defesa dela. O trauma dos ataques terroristas que a cidade sofreu no passado é muitas vezes apontado para reivindicar respeito e vassalagem às forças do BAC, como se o seu heroísmo numa ocasião lhes desse carta branca para fazer o que quisessem. O uso de encenações hiper-formais nos gabinetes da Investigação Interna e montagens que enfatizam repetição de mentiras e o esforço burocrático que gasta tempo interminável dão ao trabalho de Stéphanie uma qualidade quase sisífica.
Mas haverá uma prova capaz de pôr fim à dúvida. Mais ou menos a meio do filme, surge um vídeo do incidente, gravado por uma trabalhadora preta e de origem imigrante, parte de comunidades constantemente aterrorizadas pelos caprichos da polícia. Com pouco mais de duas ou três cenas, Guslagie Malanda – a atriz fenómeno de “Saint Omer” – dá as voltas à hierarquia de valores em “Caso 137” e colapsa qualquer sombra de dúvida que pudesse haver sobre a verdade neste crime de brutalidade policial. Drucker incorpora o choque na sua prestação e Moll ainda mais o faz na estrutura. Pois, a partir daqui, somos forçados a ver e rever esse vídeo ad nauseam.
O que primeiro parece uma indulgência vai ganhando novas dimensões, especialmente quando os cineastas rematam toda a dramatização com uma cena final onde a narrativa se torna em documentário. Acontece que o vídeo, assim como outras imagens espalhadas pelo filme, não é nenhuma criação cénica. Pelo contrário, são verdadeiras documentações da violência perpetrada contra o jovem Guillaume Girard, que nunca recuperou por completo da bala que lhe esmagou a frente do crânio e lhe alterou as capacidades cognitivas. Vê-lo, sem pretensões de ficção, na última cena é um murro no estômago e um grito de fúria que nunca levanta a voz.
Afinal, aquela repetição era um confronto do espectador com os factos inegáveis, preparando-nos para a obscenidade do que aconteceu na vida real. Como muitas vezes ocorre, pouco ou nada sofreram os polícias violentos. Nem despedidos foram, pervertendo todo o sentido de justiça que a profissão supostamente exalta. Além do mais, certas passagens com porta-vozes sindicais também foram tiradas diretamente das notícias, evidenciando não só as falhas sistémicas como a cultura que permite tais abusos ocorrerem sem consequência. Em certos pontos, “Caso 137” aproxima-se de um discurso radicalista, de uma verdadeira tese contra a instituição no seu âmago.
Drucker e Malanda em estado de graça.
Mas Moll não consegue ir tão longe. Logo a sua decisão de filtrar toda a história pela perspetiva de Stéphanie complica a coerência da fita, puxando suas observações para um centrismo passivo que aponta maldades sem saber articular-lhes a raiz ou a solução. Não é esse o trabalho do cinema, mas foi Moll quem se predispôs a fazer uma peça de cariz tão abertamente político. Por que não seguir os Girard ou as outras testemunhas-chave? Ao escolher a protagonista, o realizador cria o perfil de uma heroína, pondo a descoberto a falácia de todo o policial em pretensão de crítica sistémica. É como a dificuldade em fazer um filme de guerra em jeito antiguerra.
Enfim, há mais valor nas dinâmicas de classe estabelecidas que nas poucas tentativas de expandir a visão da obra e considerar questões raciais e de xenofobia. A intervenção de Malanda é incrível, só que “Caso 137” tem sempre que invariavelmente voltar a Stéphanie e aos limites assumidos da sua pessoa. Se não fosse a prestação deveras notável de Drucker, seria difícil suportar muito do drama. Especialmente quando a decisão de dar o privilégio do centro narrativo à polícia significa que o filme acaba por divulgar os mesmos argumentos autoritários. Temos mesmo que ouvir a mesma fantochada outra e outra vez?
Em última análise, o que redime e eleva o “Caso 137” é o mesmo que fez com que “A Noite de Dia 12” tivesse um impacto tão grande. Chegado ao fim da busca da verdade, Moll nega-nos a catarse e acaba a fita sem conclusão porque, na vida real, assim foi. Nem sequer há uma redenção para Stéphanie para além de um monólogo que torna explícita a mensagem do filme e um momento de escapismo à beira da loucura. Benditos sejam os vídeos de gatinhos que nos mantêm sãos quando tudo ao nosso redor nos põe malucos. Certo que a câmara considera estes escapes com um certo desgosto moralista, mas é melhor que nada.
“Caso 137” terá distribuição da Films4You em Portugal, com estreia planeada para 2026. Entretanto, a Festa do Cinema Francês continua em Lisboa, antes de expandir para o resto do país.
Caso 137
Conclusão:
- Uma das antestreias mais esperadas da Festa do Cinema Francês foi “Caso 137” de Dominik Moll. Trata-se, porventura, do filme mais ambicioso na carreira deste cineasta muito amado pelo público e pela indústria em França. Decerto, o uso de imagens reais em comunhão com dramatização do que aquilo a que o público não tem acesso remete o trabalho para um diálogo com tamanhos estrondos quanto “A Voz de Hind Rajab” e “A Semente do Figo Sagrado.” Ao mesmo tempo, também levanta as questões éticas que afetam as outras fitas.
- O trabalho de ator está em evidência e em estado de graça, com Léa Drucker em mais uma interpretação merecedora de aplausos sem fim. Dizemos o mesmo de Guslagie Malanda e o enorme elenco secundário que ainda inclui nomes como Stanislas Merhar, Antonia Buresi, Sandra Colombo, Christian Sinniger e tantos outros.
- Uma menção honrosa para o trabalho de montagem levado a cabo por Laurent Rouan, que aqui supera o que já tinha feito em “A Noite de Dia 12” e a “Venus Negra” de Abdellatif Kechiche.