"No Verão Passado" | © Alambique

Festa do Cinema Francês ’23 | No Verão Passado, a Crítica

Depois de dez anos sem filmes, a realizadora Catherine Breillat volta à ribalta com “No Verão Passado,” conhecido como “L’été dernier” no original. Este remake francês de um drama da Dinamarca competiu em Cannes e agora passa em antestreia na Festa do Cinema Francês. Fora dos festivais, a obra-prima chega brevemente às salas pela mão da Alambique.

Em 2019, “Rainha de Copas” de May el-Toukhy propôs uma narrativa com traços de controvérsia, onde uma advogada de sucesso inicia relações sexuais com o enteado menor. Essa história desenrolou-se em jeito de tragédia, perscrutando as dinâmicas de poder entre as personagens antes de se precipitar para uma conclusão cruel até dizer chega. No papel principal, Trine Dyrholm interpretou a transgressora sexual como uma manipuladora nata, insinuando-se à audiência antes de se revelar em toda a maldade. Poucos filmes recentes tão bem ilustraram a predação, suas facetas mais insidiosas e as máscaras com que se esconde.

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Fazendo o exercício do remake, a francesa Catherine Breillat mantém-se fiel ao original no que se refere à premissa e estrutura, até à construção textual de muitas cenas. Contudo, o tom gerado pela cópia é incrivelmente distinto, justificando todo o aparato cinematográfico e, em certa medida, superando o antecessor. Não que “No Verão Passado” esteja interessado na comparação direta. O filme de Breillat é extraordinário o suficiente para viver independente de “Rainha de Copas”, suas intenções divergentes dessa fita dinamarquesa. Contudo, na comparação das duas obras, entendemos melhor o triunfo desta distorção gálica.

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Para começar, há um maior foco na realidade bucólica da protagonista, Anne, cujo quotidiano é pintado nas matizes solarengas de um Téchiné, quiçá até Rohmer. Só que, em contraste com a sua versão escandinava, a mulher gálica parece viver na ignorância do próprio privilégio, insegura e infeliz, sem acordar para o poder que detém no sistema de classes. A cenografia opulente e o guarda-roupa elegante fazem muito para sublinhar estes fatos, mas há também um toque de farsa no modo como a câmara a considera, o olho de Breillat apurado para a vertente satírica da personagem. Até as filhas adotadas, um par de gémeas com origem asiática, nos aparecem propostas enquanto símbolos de estatuto, quer Anne se aperceba ou não.

A maladia espiritual da personagem é o aborrecimento da alta burguesia por excelência, o tédio de quem não sente a falta de nada material, mas se deixa consumir pela fome de mais. Essa voracidade é desperta pelo aparecimento do jovem Théo, sempre em tronco nu e com marotice no canto do olho. Um rebelde caricato, o adolescente testa os limites da madrasta em guerra aberta contra o pai ausente, partindo a serenidade de Anne no processo. Com o caldo entornado, o risco de destruição total apodera-se da mulher que assim se precipita para os braços do miúdo cuja imaturidade Breillat faz tudo para salientar.




A Anne de el-Toukhy e Dyrholm era assustadora. A Anne de Breillat e Léa Drucker é uma idiota plena, motivada pela adrenalina de dançar à beira de um precipício. Tanto assim é – ela parva e ele um rapazote sem graça – que o caso adúltero não se manifesta tanto como algo erótico do que como uma piada negra. De facto, as cenas de sexo sustentam essa leitura, ao mesmo tempo que evitam a natureza explícita com que Breillat fez fama no princípio da carreira. Ao invés dessa carnalidade gráfica de outros tempos, temos sequências estendidas além da sensualidade, focadas em caras que se contorcem de prazer.

Assim se expressa a inexperiência do jovem em contraste com o egoísmo da adulta, a incompatibilidade dos dois apesar do magnetismo que os une em cena. O desconforto é generalizado e nem o mais devasso dos espetadores poderia ver todos estes momentos como algo puramente excitável. Breillat quer o nosso riso nervoso, a inquietude de quem não sabe como reagir, o nojo intersetado pela curiosidade ilícita, o transtorno. Tudo isso ela nos provoca, mantendo-se fiel à sua reputação enquanto uma das artistas mais ousadas do cinema francês. Só que a provocação vai-se afiando com o tempo e aqui surge na plenitude do afiado, mais subversiva que violenta.

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Tão diferente de “Rainha de Copas” e tão mais desafiador enquanto cinema, “No Verão Passado” é um milagre de adaptação sagaz que, mesmo assim, cairia na ruína sem o apoio de certos elementos além de Breillat. Já referimos a fotografia e o design, mas a montagem de François Quiqueré é outro pilar do edifício fílmico, negociando alguns momentos estrambólicos com implacável secura, até culminar num corte abrupto para os créditos finais. Também há que felicitar os atores, pois claro. A estreia do jovem Samuel Kircher é auspiciosa e Olivier Rabourdin oferece-nos uma lição em contradição coesa no papel do patriarca traído.

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Dito isso, “No Verão Passado” vive e morre com Drucker, uma atriz de sucesso na esfera do cinema francófono que, até aos últimos anos, não tinha alcançado o sucesso que o seu talento merece. Sob a direção de Breillat, ela desempenha o seu melhor papel até hoje, fugindo a sete pés do trabalho genial de Dyrholm para poder encontrar um tipo distinto de génio, muito francês e só seu. Ela é uma mulher que perde a razão perante o aborrecimento dos seus dias, os impulsos do corpo e do inconsciente escancarando com a sua paz – algo que devia ser ópera, mas sabe a circo. A grande reviravolta a meio da trama é exemplo perfeito desta abordagem. Ocorre quando verdades incómodas vêm ao de cima, quando o que poderia ser um jogo de mentira a tombar para o suspense se dissolve num acesso maníaco, desesperado, perversamente cómico.

No Verão Passado, a Crítica
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Movie title: L'été dernier

Date published: 7 de October de 2023

Director(s): Catherine Breillat

Actor(s): Léa Drucker, Samuel Kircher, Olivier Rabourdin, Clotilde Courau, Serena Hu, Angela Chen, Romain Maricau, Romane Violeau, Marie Lucas, Nelia Da Costa, Lila-Rose Gilberti, Jean-Christophe Pilloix

Genre: Drama, Thriller, 2023, 104 min.

  • Cláudio Alves - 90
90

CONCLUSÃO:

Breillat volta ao grande ecrã com mais uma formidável provocação, fazendo a sua própria versão da “Rainha de Copas” em jeito de farsa grotesca. Em “No Verão Passado,” questões de classe e género são ideias que correm debaixo da superfície como rios subterrâneos, enquanto a sordidez sexual domina a ação principal. Sentimos a subversão típica da cineasta, tão mais forte porque está tão bem aconchegada entre ligeirezas burguesas, ares de cinema comercial e de prestigio.

O MELHOR: A prestação principal, esse sol caótico à volta do qual o restante filme orbita. Somente o grande plano de reação aquando de uma confrontação com o marido, a câmara claustrofobicamente próxima de Anne, deveria valer a Drucker montanhas de prémios. Que assombro esta prestação! Que circo! Que milagre ímpio!

O PIOR: Nada a apontar.

CA

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