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A Chorona, em análise

Jayro Bustamante introduz os espectadores a “A Chorona”, uma história arrepiante protagonizada por María Mercedes Coroy e Sabrina De La Hoz.

Salías del templo un día, Llorona,
Cuando al pasar yo te vi,
Hermoso 
huipil llevabas, Llorona,
Que la Virgen te creí.

(Excerto dos primeiros versos da canção La Llorona)

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Para melhor lermos nas entrelinhas e apreciarmos as nuances sociais, culturais e políticas da ficção proposta em LA LLORONA (A CHORONA), 2019, muito interessante longa-metragem com realização e argumento do guatemalteco Jayro Bustamante, não fica mal saber alguma coisa sobre o mito de La Llorona no imaginário latino-americano, e neste caso, a sua adaptação ao contexto específico da República da Guatemala. E, já agora, convém saber alguma coisa sobre a História daquele país, atravessado por numerosas convulsões, das quais se destaca uma prolongada guerra civil. Na sequência de numerosas barbaridades que então foram praticadas, Rigoberta Menchú (que faz parte da Ficha Técnica deste filme), denunciou o miserável genocídio cometido contra a população indígena, praticado com o apoio das autoridades governamentais defensoras dos interesses plutocráticos da reaccionária e prepotente classe dominante, assim como dos interesses estrangeiros instalados no país, nomeadamente norte-americanos. Pela sua coragem e determinação, esta activista Quiché-Maia recebeu em 1992 o Prémio Nobel da Paz.

A Chorona
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QUE VIVA O ANJO EXTERMINADOR…!

La Llorona, ou seja, a Chorona, a mulher que chora, aparece com frequência no folclore mexicano e de outros países da América Central e do Sul como um fantasma, ou então como um espírito imortal que vagueia pelo mundo. E nesta sua viagem para redimir a alma perdida num passado em que cometeu o crime de infanticídio atravessa uma espécie de limbo para onde foi relegada, um lugar de sombras situado entre a vida e a morte. Seja como for, será sempre nas longas e mais silenciosas horas da noite que o seu lamento sob a forma de choro se exprime com maior intensidade, incidência e mistério. Não obstante ser um mito pré-hispânico, o seu significado no imaginário popular foi reforçado quando os povos nativos passaram a interagir com os chamados “conquistadores” europeus que, a partir do final do Século XV, impuseram a lei do mais bruto cálculo colonialista e imperialista, assumindo a posse de vastíssimas regiões onde usaram e abusaram das populações locais, nomeadamente das mulheres que passaram a ser consideradas para os mais diversos serviços, incluindo naturalmente os inerentes ao “repouso do guerreiro” e demais “urgências” sexuais dos senhores que abocanharam o novo poder instituído pela força. Na versão que prevalece na mitologia da Guatemala, a Llorona, identificada como uma nativa centro-americana, seria uma dessas mulheres que, seduzida por um rico senhor de origem espanhola, ficara grávida, sendo posteriormente abandonada pelo amante. Submetida a censuras que estigmatizavam o seu comportamento e ao peso das consequências de um acto visto como pecaminoso, renegaria a maternidade proibida afogando o filho nas águas de um rio. Por isso seria penalizada no Além pelo crime cometido e, desde então, iniciaria uma sinuosa viagem pelo mundo dos vivos em busca da criança morta, sobretudo junto de cada lugar onde encontrasse uma significativa quantidade de água, um rio, um lago, uma cisterna ou, como iremos ver, uma simples e burguesíssima piscina.

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A Chorona
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De início, o filme A CHORONA dá-nos conta de um estranho ritual promovido por um grupo de senhoras da alta sociedade, lideradas por uma circunspecta Carmen (Margarita Kénefic) que mais parece uma feiticeira presidindo a uma cerimónia pagã digna de um qualquer ambiente subdesenvolvido, em pleno contraste com o seu privilegiado estatuto social. Logo depois descobrimos que esta lenga-lenga pseudo-religiosa se destina a, digamos assim, afastar os maus espíritos do que poderá acontecer ao seu marido, personagem particularmente odiosa reunida noutra sala com homens da sua confiança. Trata-se da figura do chefe de família em cuja casa decorre a maior parte da acção, o general Enrique Monteverde (interpretado por Julio Diáz), que aqui surge como se fosse uma outra versão do ditador Efraín Ríos Montt, um déspota que ocupou o poder na Guatemala, mas que não se livrou em 2013 de ser condenado por genocídio e crimes contra a humanidade. Estamos assim nas vésperas do veredicto final que o velho caudilho pressente não lhe ser favorável, apesar da arrogância com que já no Tribunal enfrenta as autoridades judiciais que entretanto ouviram, como nós, poderosos depoimentos de mulheres de etnia Maia Ixil pormenorizando os delitos de que o general fora um dos autores e cúmplice. Será com rancor que recebe a notícia da sua condenação. Mas lá, como em muitos outros sistemas corruptos, a decisão será revertida e a acusação retirada. Esta situação desencadeia uma fortíssima reacção popular, e a casa onde Enrique Monteverde habita vai ser circundada por homens e mulheres que protestam contra a pouca vergonha de o deixar impune. O general e os seus familiares mais próximos escondem-se no interior do seu imponente lar feito refúgio, onde pouco a pouco se destacam outras figuras controversas: a filha Natalia (Sabrina De La Hoz), personalidade dúbia, conturbada e circunspecta (cujo marido se encontrava desaparecido há muito sem se saber bem porquê, embora se possa pensar que podia ser opositor do regime), Sara (Ayla-Elea Hurtado), a filha de Natalia que passa ao de leve pelos primeiros minutos do filme mas que vai adquirir um papel substantivo quando entra em contacto mais íntimo com a nova e misteriosa empregada (já lá iremos), o omnipresente guarda-costas, Letona (Juan Pablo Olyslager), e a mulher, mãe e avó que irá assumir a manutenção de uma certa forma de ser e estar, a já referida Carmen das mezinhas. Por fim, a única empregada que não desertou perante o cerco da casa, Valeriana (María Telón). Todos eles não são capazes de contrariar a presunção do seu estatuto de classe, nem sequer fazem um esforço para perceber as sucessivas manifestações de cidadãos comuns indignados contra a descarada ausência de justiça num país que, não obstante os progressos alcançados no capítulo dos direitos humanos e cívicos, parece continuar a proteger os mentores de um modelo de exploração económica baseado nas desigualdades raciais e sociais. Todavia, passando pelo meio desta multidão, irá surgir uma nativa, a belíssima Alma (notável interpretação de María Mercedes Coroy). Foi chamada por Valeriana e veio da sua aldeia vestida de um branco virginal, como se fosse de uma outra dimensão. Mas a sua face não parece nada a de um ser angélico, antes pelo contrário, percebemos que na expressão serena e na acutilância e profundidade do seu olhar há muito mais do que uma imagem de pureza. De facto, ela será a partir daquele momento a verdadeira protagonista do filme, intermitentemente banhado pela fantasmática luz que ilumina os labirínticos corredores e divisões da casa, mesmo quando o seu corpo não está visível ao olhar das personagens com quem se cruza. Nota importante: nas sequências que precederam a sua entrada ouvira-se o mítico choro que, aliás, provocara alguns incidentes graves entre os membros da família. E o estratagema para polarizar sobre ela a atenção que, por sua vez, alimenta a ansiedade e as naturais interrogações sobre o que a jovem mulher deslocada do seu meio pode ou não realizar para reverter ou subverter uma dada situação marcada por um bom número de sinais negativos, não pode ser apelidado senão como um golpe de génio que a realização integra de forma exemplar na estrutura narrativa, gerando o grau necessário de cumplicidade entre o espectador e a figura em causa (o nome Alma, que ao início parecia um lugar-comum redutor, adquire então uma muito precisa sustentabilidade ficcional). Estamos no domínio de um realismo mágico, muito ao gosto de algumas manifestações da cultura latino-americana, e nesta atmosfera iremos seguir passo a passo o que aquela, quem sabe, materialização da milenar Llorona pode ou não fazer para atingir o que, a partir de certa altura, parece ser o seu subtil mas muito determinado propósito. E nós estamos ao seu lado e esperamos que ela cumpra a sua aparente missão vingadora.  Queremos vê-la no papel do Anjo Exterminador, ao lado daqueles que não hesitam em convocar a memória do horror e exigem justiça pelo povo martirizado, o que morreu e o que está vivo. Do anjo que defenda os que combatem os ilusórios fatalismos do destino com garra e determinação, como os que no exterior daquela casa permanecem firmes e unidos no cerco a um espaço cada vez mais fechado, cujas paredes húmidas e estranhamente invadidas por inesperados bolores encerram personagens cada vez mais impotentes e impedidas de espoletar os mecanismos das suas anteriores e habituais prepotências. Multidão que impede a saída livre de quem nunca foi verdadeiro amigo da verdadeira liberdade. E a solução final virá? Pois bem, isso, meu caro leitor, melhor será ir ver num ecrã perto de si. Sabe muito melhor…!

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A Chorona
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A Chorona, em análise
A Chorona

Movie title: La Llorona

Date published: 4 de April de 2023

Director(s): Jayro Bustamante

Actor(s): María Mercedes Coroy, Sabrina De La Hoz,, Margarita Kenéfic, Julio Diaz

Genre: Drama/Terror, 2019, 97min

  • João Garção Borges - 80
80

Conclusão:

PRÓS: Muito boa simbiose de realismo fantástico e mitologia popular num quadro de denúncia política e social subordinada ao retrato contundente da sociedade guatemalteca e que nos propõe uma ficção assombrada pela memória de factos reais que decorreram nos anos de brasa de um país que viveu uma devastadora guerra civil e as consequências nefastas de diversos governos ditatoriais.

Notável a interpretação da personagem Alma, papel defendido pela actriz María Mercedes Coroy, a quem podemos colar os ecos da mítica La Llorona, figura do folclore popular cujas origens milenárias perduram no imaginário latino-americano.

 CONTRA: Nada.

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