O Azul do Cafetã, em análise
Lubna Azabal e Saleh Bakri protagonizam “O Azul do Cafetã”, a mais recente obra da cineasta Maryam Touzani!
Nesta segunda longa-metragem de ficção da realizadora e actriz marroquina Maryam Touzani, LE BLEU DU CAFTAN (O AZUL DO CAFETÃ), 2022 (de que anteriormente víramos um interessante exercício de cinema no feminino intitulado ADAM, 2019), logo a abrir percorremos o olhar pelo azul-petróleo de uma espécie de seda que as mãos de um homem acariciam com o carinho que nos faz pensar ser produto de qualidade superior. Para além do mais, coreografa os seus movimentos com o cuidado de quem sabe e aprecia o que está a fazer e, podemos mesmo afirmar, demonstra evidente respeito por aquela preciosa matéria-prima que manipula com óbvia perícia profissional. Tecido rico e singular que vai ser a base de um futuro CAFTAN (em francês), CAFETÃ (em português), encomendado por uma senhora de classe, não necessariamente abastada mas folgada do ponto de vista económico e bem instalada na vida. E quem se vai encarregar de o fazer, e sobretudo bordar, será o alfaiate Halim (Saleh Bakri), conhecido maalem, um alfaiate de prestígio, que se distingue pela minúcia da sua arte e pela perfeição dos seus bordados, aptidões herdadas do seu pai, um nome famoso entre os comerciantes da cidade de Salé, situada no Noroeste de Marrocos. Não muito longe do mar encontra-se uma das mais antigas medinas da região, e nesse local situa-se a loja para onde Halim se desloca diariamente com a sua mulher Mina (Lubna Azabal, a actriz em destaque no anterior ADAM). Ambos são apoiados por um aprendiz ainda jovem mas com grande vontade de sair da vida dura que levara até ali, Youssef (um admirável Ayoub Messioui).
MORTALHA BORDADA COM FIO DE OURO SOBRE AZUL
Nos minutos iniciais parecia ser mais um filme sobre os meandros algo exóticos de uma realidade social e cultural que vive paredes meias com a Europa, mas que em muitos aspectos parece bem distante. Um melodrama sobre homens e mulheres que ganham a vida no limite a segurar as pontas de um negócio cada vez mais difícil de sustentar. Sim, aquilo que podia ser mais uma co-produção para estrangeiro ver passa de repente para uma outra dimensão quando o alfaiate Halim, na sua singela e sempre serena figura de homem sem pressas e aparentemente sem angústias existenciais, se fecha numa cabina privada de um Hammam com outro homem. Nada que o espectador não suspeitasse poder acontecer desde que vimos Halim naquele local de relaxamento com banhos e vapores apaziguadores do corpo e da alma mas, mesmo assim, o factor surpresa está presente e, ainda mais do que esse sentimento, prevalece depois o peso da interrogação sobre a real natureza e o real enquadramento das relações pessoais que o casal Halim e Mina assumem ou não, num contexto em que gradualmente nos damos conta de como são dinâmicas as contradições que crescem denunciando e alimentando a possibilidade de outras subversões da moral vigente e dominante no país. Nomeadamente quando na equação subjacente ao comportamento sexual dos protagonistas sentimos novos conflitos latentes, segredos que não se revelam e olhares que a certa altura não enganam quem acompanha a interacção do casal com o jovem e dedicado Youssef, quer no interior da loja, quer posteriormente na casa de Halim e Mina.
Por um lado, estamos no domínio de um filme que lenta e paulatinamente nos mostra o respeito pelos valores passados e pela identidade dos usos e costumes nacionais, aqui simbolizado e consubstanciado na arte da confecção de um cafetã, quase diríamos um acto de amor pelo belo, pelo que se usou e sempre será usado, uma atitude de resistência face ao vulgar pronto-a-vestir cada vez mais dominante. Por outro, estamos igualmente no domínio das convulsões inerentes a uma recusa do pensamento redutor, quer político quer religioso, que condena a homossexualidade. Não nos esqueçamos que esse constitui um problema sério que os marroquinos enfrentam no seu dia-a-dia. E Maryam Touzani equilibra os pratos desta balança, que podia com outros pesos e medidas resvalar só para o lado do negativo, com uma visão clara, precisa, não isenta de ambiguidades mas decididamente aberta sobre a expressão maior de uma sexualidade que só possui uma barreira, a da morte que a doença de Mina faz recair sobre a narrativa. Magnífica de coragem, a sequência em que a actriz mostra o peito cortado e a cicatriz de uma mastectomia. Nem nos países mais liberais, por exemplo em alguns dos co-produtores (França, Bélgica, Dinamarca), se encontra com frequência um grau assim de verdade e uma forma desencantada de olhar de frente o que não deve ser ocultado.
Por fim, o lindíssimo e requintado cafetã, bordado a ouro sobre azul, será a mortalha que envolve Mina, por vontade do marido mas também de Youssef, no fundo os homens que partilharam o sentimento de uma vida comum, de uma vida que valeu a pena viver e que o espectador pode usufruir, com ou sem cumplicidade, no rendilhado dos 118 minutos de AZRAQ ALKUFTAN (como se designa no original marroquino).
Diz Halim a certa altura a Youssef: “Um cafetã deve sobreviver a quem o veste. Deve passar de mãe para filha. Deve resistir ao TEMPO”. Trata-se de uma maneira de referir a importância do que perdura, do que nos diferencia e une nas relações humanas. Na verdade, este filme apresenta-nos, mais do que uma relação amorosa, uma outra maneira de falar do amor.
O Azul do Cafetã, em análise
Movie title: Le bleu du caftan
Date published: 4 de April de 2023
Director(s): Maryam Touzani
Actor(s): Lubna Azabal, Saleh Bakri, Ayoub Missioui, Mounia Lamkimel, Abdelhamid Zoughi, Zakaria Atifi
Genre: Drama, 2022, 122min
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João Garção Borges - 65
Conclusão:
PRÓS: Em 2022 recebeu o Prémio da FIPRESCI, atribuído na secção UN CERTAIN REGARD do Festival de Cannes.
No mesmo ano foi-lhe entregue o Prémio do Júri no Festival de Marraquexe.
Não sendo uma obra que supera o anterior ADAM, de 2019, possui no entanto os sinais reveladores da sensibilidade de uma cineasta, casada com o mais experimentado produtor, realizador e argumentista Nabil Ayouch. De facto, a realizadora e actriz não parece recear encarar de frente matérias relativamente controversas ou até mesmo muito difíceis de abordar num país como Marrocos. Por exemplo, o marido já retratara o mundo da prostituição em Marraquexe no filme ZIN LI FIK (MUITO AMADAS), 2015, e ela veio agora dar-lhe uma certa réplica abordando a homossexualidade e as relações proibidas, ou mesmo subversivas da moral dominante, no recente O AZUL DO CAFETÃ.
CONTRA: Nada.