"Mississippi Grind" | © Sycamore Pictures & © Electric City Entertainment

A Febre do Mississípi, em análise

A Febre do Mississípi” é uma reinterpretação genuína e audaz do clássico dos anos 70 “California Split” de Robert Altman. Reynolds e Mendelsohn são uma parelha de ases que consegue viciar mesmo os não-jogadores, relembrando que a verdadeira amizade é, e será sempre, a derradeira “ludomania”.

Anna Boden e Ryan Fleck – os realizadores desta febre por tudo o que é apostável -, que já tinham tentado esmiuçar de “É Uma Espécie de…Comédia” e “Half Nelson” esta nobre ideia de redenção pessoal coadjuvada pela força bilateral dos vínculos afetivos, voltam a acudir-se dessa premissa para romancear os degredos patológicos do ser humano. Sim, porque “A Febre do Mississípi” tem o condão de apanhar um homem em cacos, colá-lo, e devolvê-lo à sua melhor forma.

A Febre do Mississípi Análise Corpo
“Mississippi Grind” | © Sycamore Pictures & © Electric City Entertainment

Mas antes de voltarmos a tocar nesse arco-íris tão relevado por Gerry (Ben Mendelsohn) como a utopia de uma realidade colorida de dívidas saldadas, importa dissecar como este auto intitulado “homem mau”, se deixa convencer pelo arcaboiço argumentativo de Curtis (Ryan Reynolds) e um tratamento “woodford” com bourbon de primeira num daqueles encontros póquer de segunda. A apresentação de Curtis – que mais tarde Gerry viria a descrevê-lo como um “handsome leprechaun” à semelhança do guardião de um tesouro escondido -, prossegue no bar local ao ritmo alcoolizado do típico bate papo mundano e rudimentar que funciona como soro da verdade. E se a conversa da treta entre dois desgraçados possa desencorajar os mais sequiosos por conteúdo erudito, o mais surpreendente é que a aspereza e honestidade do discurso acaba por amolecer-nos o coração de simpatia emocional.

Reynolds finalmente encontrou um papel à sua imagem e semelhança, mimetizando este Curtis de linhas rápidas açucaradas por um sentido de humor saudosista e um espírito de viajante amadurecido, que vai e vem de toda a parte (como o próprio afirma) com a bagagem leve de quem foge da consciência e o rótulo de “player” em tudo o que mete saias e dinheiro. É aqui que a fome insaciável de Curtis alimenta a vontade incomensurável de vencer de Gerry; este agente imobiliário divorciado com um olhar sagaz à Dustin Hoffman, que deve a meio mundo e precisa urgentemente de correr atrás daquele salto de fé. Assim, os dois compinchas viciados em si mesmos, embarcam numa jornada sulista pelas margens do Mississípi até Nova Orleães, a fim de participarem no torneio de póquer que poderá mudar as suas vidas para sempre.

A Febre do Mississípi Análise Corpo
“Mississippi Grind” | © Sycamore Pictures & © Electric City Entertainment

Mas desengane-se quem poderá pensar que “A Febre do Mississípi” redunda em torno do jogo de cartas mais famoso do mundo, que aqui funciona mais como chamariz do que outra coisa qualquer. Boden e Fleck também eles jogam com este enredo psicologicamente destrutivo, que recusa viver mais do que o necessário nas salas douradas da perdição, sem o mínimo receio de esparramar toda a adrenalina proveniente dos impulsos mais descontrolados da interação doentia entre os dois protagonistas. E é numa cadência desmesuradamente febril e estimulante, que estes perigossíssimos duques “bromanceiam” pelos territórios fetiche dos jogadores escolásticos. Desde as boates de Memphis que cheiram ao blues de um Furry Lewis, ao mítico Salão de Poker de St. Louis, aonde Simone (Sienna Miller) faz a vez de uma pseudo namoradinha de Curtis, passando pela antiga casa de Gerry em Little Rock, e todos os canídromos e hipódromos até se queimarem as fichas para a “Big Blind” de Orleães.

A paisagem não poderia inspirar-se mais naquele velho sonho americano com estas “pit stop” emblemáticas, que conferem calor e textura à road-trip fanática. Mas Reynolds e Mendelsohn ainda conseguem “egoisticamente” arredar-nos da contemplação do “decour”, certificando o espetador de que eles é que são “os donos disto tudo”. E ambos atiram-se de cabeça às suas personagens falidas como se não houvesse amanhã, com o script a embeber-se de ambas as personalidades distintas. Quilómetro após milha, enraizamos no âmago destas personas tresloucadas: seja por um Gerry que rebobina as duzentas dicas do póquer de Joe Navarro, seja por um Curtis que aposta a vida em cada pretexto ao virar da esquina; os realizadores de “Grind” revelam as suas cartadas no momento oportuno, deixando-nos a marinar numa expetativa mediana.

A Febre do Mississípi Análise Corpo
“Mississippi Grind” | © Sycamore Pictures & © Electric City Entertainment

A Febre do Mississípi” é mais uma relíquia low-budget, das muitas que têm feito o seu “debut” no festival Sundance, e que em seguida caem numa certa marginalização atípica. Boden e Fleck convertem esta fita de vícios e exageros num “feel good movie”, que vagueia algures entre notas comediantes e o pendor dramático sem assumir descaradamente o seu género. Digamos que nem todas as comédias têm obrigatoriamente de promover risadas do princípio ao fim, nem todos os dramas têm de induzir compulsivamente em choro.

A Febre do Mississípi, em Análise
A Febre do Mississípi Análise Póster

Movie title: Mississippi Grind

Movie description: Um apostador afundado em dívidas une-se a um jogador de cartas para tentar a sorte num importante campeonato de póquer em Nova Orleães.

Director(s): Anna Boden, Ryan Fleck

Actor(s): Ryan Reynolds, Ben Mendelsohn

Genre: Comédia, Drama

  • Miguel Simão - 95
95

CONCLUSÃO

“A Febre do Mississípi” é uma peregrinação funcional de dois “buddies” disfuncionais com muita alma e com “eles no sítio”, que não deixará ninguém indiferente, mesmo depois dos créditos finais rolarem! É caso para dizer: “GO MISSISSIPPI!”.

Pros

  • Reynolds e Mendelsohn não jogam pelo seguro em termos de atuação, vão “all-in” com performances memoráveis.

Cons

  • Alguns clichés aqui e ali, sobrevalorizados por alguma falta de clareza quanto ao desfecho dos intervenientes.
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