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A Vida de uma Mulher, em análise

Depois de “Johnny Coração de Vidro”, de Koreyoshi Kurahara, chega a vez de “A Vida de uma Mulher”, de Yasuzō Masumura, conquistar o seu destaque nos ecrãs nacionais!

NOITE E NEVOEIRO NO JAPÃO

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A Vida de uma Mulher
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Em 1960, um dos cineastas, digamos, mais “conhecidos” do público ocidental, Nagisa Oshima, realizou um filme intitulado NIHON NO YORU TO KIRI (NOITE E NEVOEIRO NO JAPÃO), que mostrava de forma muito clara as profundas clivagens que existiam na sociedade japonesa numa era de grandes convulsões sociais devido em grande parte a uma forte onda de contestação contra a hipótese de se negociar um pomposamente designado “Tratado de Mútua Cooperação e Segurança entre os Estados Unidos e o Japão”. Na verdade, oito anos antes, com o fim da ocupação americana, fora assinado um acordo militar com os EUA que expirara, precisamente, em 1960. Nessa altura o Parlamento nipónico foi chamado a pronunciar-se sobre a sua possível continuidade por mais uma década. Não podia ser maior a divisão nos sectores mais activos e politizados da sociedade, uns defendendo o acordo e outros preferindo manter a neutralidade face aos EUA, mas igualmente perante a União Soviética e a China. Pressentindo a situação pouco segura, o então governo e o seu partido abandonaram a discussão parlamentar e decidiram unilateralmente pela sua renovação. Foi então que a oposição reagiu e se verificaram inúmeros protestos, confrontos diários com a polícia, liderados por um grande número de manifestantes numa escala de militância pouco vista até aí no Japão. Um clima de agitação que juntava partidários de movimentos políticos, o mundo laboral e os seus sindicatos, cujas estruturas se aliaram aos estudantes e a outros cidadãos que, no fundo, queriam erguer um país longe da esfera de influência da potência que, após a Segunda Guerra Mundial, se comportou como era de esperar durante a ocupação, ou seja, com a arrogância dos vencedores. No ano de produção do filme, que praticamente coincidiu com o pico destes acontecimentos, Nagisa Oshima estava com vinte e oito anos, e o argumento baseava-se na sua própria experiência enquanto estudante no interior das lutas radicais que, posteriormente e ao longo de anos, se multiplicaram pelas razões apontadas e por outras ainda mais substantivas.

A Vida de uma Mulher
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Dito isto, será importante recordar que uma boa parte dos realizadores e da produção cinematográfica da época, nalguns estúdios mais do que noutros, não podia de modo nenhum ignorar, por um lado, o que estava a acontecer e, por outro, o clima muito favorável a uma discussão política que punha em causa e sem medo valores da sociedade que há uns anos pareciam eternos e que, sobretudo a esquerda japonesa, fosse a ortodoxa ou a revolucionária, desejava questionar no contexto de um panorama social e cultural alargado ao domínio das artes e das letras, mas igualmente ao dia a dia do cidadão comum. Desenhava-se aqui simultaneamente uma nova luta contra o imperialismo e o capitalismo reinantes e, ao abordar num meio popular e de massas, como o cinema, o passado histórico do Japão, muitos produtores e realizadores viram nessa abordagem ficcional, mas baseada na realidade histórica e concreta que atingia as pessoas no seu quotidiano, uma forma complementar de dizer não ao passado, de arrumar de vez com os restos que pudessem ainda prevalecer da herança e do pensamento imperialista, que outrora levara os militaristas fascistas e o imperador a sonhar com o Japão no papel de dono e senhor da Ásia e do Pacífico.

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A Vida de uma Mulher
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Esta introdução vem a propósito do filme de que a seguir me ocupo, ONNA NO ISSHO (A VIDA DE UMA MULHER), 1962, realizado por Yasuzo Masumura, mais uma proposta selecionada pela produtora e distribuidora THE STONE AND THE PLOT, integrada no Ciclo MESTRES JAPONESES DESCONHECIDOS II. Pela primeira vez no conjunto dos dois ciclos, organizados com a mesma filosofia de programação, os responsáveis da THE STONE AND THE PLOT integraram um filme oriundo dos Estúdios DAIEI, e não dos Estúdios NIKKATSU. E isso merece alguma reflexão, que ficará para uma outra e posterior abordagem do ciclo. Para já, irei dar conta do que se pode ver ou rever nesta narrativa situada ao longo de uma sucessão muito diversa de períodos conturbados da História do Japão entre 1905 e 1945. Narrativa apoiada num guião que aposta numa dialéctica permanente entre o percurso individual das personagens que dão corpo e alma aos meandros plutocráticos de uma família, representante da burguesia empresarial, que em circunstâncias peculiares adopta uma órfã, mulher do povo, Kei (Machiko Kyo), que fora expulsa e abandonada por outra família de uma escala social mais baixa, onde ela não passava de um pau mandado, uma mera criada, sem grande liberdade ou voz própria. Uma vez integrada no seio dos que na “sua” nova casa passam a acarinhar a sua presença, a matriarca herdeira de um lucrativo negócio irá ver nela a sucessora predilecta, aquela que na “nova família” podia melhor garantir, através da disciplina e da qualidade do seu empenho pessoal e profissional, a continuidade de um negócio muito dependente da gestão das matérias-primas que lhe estavam subjacentes, mas igualmente da capacidade de se adaptar ao devir da sociedade nipónica e da ascensão de um assanhado militarismo de ambição imperialista que começou a definir-se de forma muito clara com a ocupação da Manchúria, a que se seguiu o ataque e ocupação de vastas regiões da China. Uma abordagem ficcional que não ilude a síntese necessária da realidade destes anos de brasa para compreender as contradições económicas, sociais e de classe, com algum espírito “didáctico”, e para melhor situar a acção, mesmo para quem no Japão fosse o primeiro espectador deste A VIDA DE UMA MULHER. Recordemos alguns factos relevantes – Era Meiji: 1905, guerra Russo-Japonesa. Era Taisho: 1912, morte do Imperador Meiji. 1918, greves, inflação, agitação a favor do sufrágio universal. Terramoto em Tóquio em 1923. Era Showa: 1930, aumento do desemprego. Problemas nas zonas rurais. 1931, início da agressão militar na Manchúria. 1932, fundação do Império fantoche de Manchukuo. O primeiro-ministro Inukai será assassinado. 1937, início da intervenção militar na China. 1940, intervenção militar na Indochina. 1941, ataque a Pearl Harbour. Guerra do Pacífico. 1945, duas bombas atómicas lançadas pelos americanos arrasam Hiroshima e Nagasaki. Capitulação do Japão – Será pois nesta conjuntura global (aqui resumida de forma muito breve), uma vez inserida na estrutura do guião, que iremos acompanhar a verdadeira razão que leva Kei a viver a vida de um modo que põe em jogo a sua generosa personalidade, fruto das vicissitudes do passado e ainda da ideologia imposta a quem possuía modestas raízes. Para os devidos efeitos, a realização concebe uma série de conjunturas pessoais que nos permitem, ponto por ponto, compreender a vida de uma mulher que no início se encontrava desesperada e que, passo a passo, degrau a degrau, acaba por herdar de forma quase improvável as rédeas de um negócio mercantilista cujo modelo, para se manter ou ser pura e simplesmente salvo, exige compromissos que, no caso de Kei, iam contra a sua consciência mas que, a certa altura, incorporou como uma espécie de sacrifício, a única atitude que restava para salvaguardar o equilíbrio de uma família onde se cruzara com um militante de esquerda que fora lutar com os comunistas chineses, o rapaz que salvara Kei da miséria e do abandono e que regressará clandestino ao Japão para ser perseguido pelo poder fascista perante a inércia dos familiares, os ociosos e algo inúteis membros do seu círculo familiar, que pouco ou nada tinham feito para merecer a protecção e o relativo bem-estar em que viviam. No final desta poderosa ficção, a vida da mulher, Kei, finalmente mentora do seu destino e dos que a rodeiam, confunde-se com a morte da derrota japonesa onde pairava o negro de uma era que nascia e que  veio a chamar-se Guerra Fria. Kei será mais uma vez abandonada, desta vez pelas circunstâncias dos acontecimentos históricos, deixa de ser dona do seu destino e o seu futuro perfila-se incerto. Porque os interesses dos que se instalam no poder raras vezes incorporam os interesses dos povos em nome dos quais era suposto governarem. De facto, dos filmes incluídos neste novo ciclo de mestres japoneses desconhecidos, A VIDA DE UMA MULHER será o mais clássico do ponto de vista formal, mas o mais directo e objectivo do ponto de vista das matérias que coloca em cima da mesa, como cartas de um jogo cujas regras se querem limpas e sem ambiguidades. Na verdade, ao contrário dos outros dois, apresenta uma estrutura formal que não se enquadra directamente no despontar do novo cinema japonês, mais orientado para ficções em que jovens rebeldes, com causas ou sem elas, lideravam um jogo existencial cujas regras eram difíceis de aceitar pelos sectores mais conservadores da sociedade. Movimento cinematográfico que, desde o início dos anos sessenta, despontara com inegável força e intervenção junto dos circuitos comercias e alternativos do Japão. Seja como for, a belíssima fotografia, a composição dos planos, a segurança com que os actores se movimentam, o guarda-roupa e a direcção artística, que nos dão a verdade necessária ao retrato evolutivo de diversas eras da sociedade japonesa, a prestação dos actores que muitas vezes podiam cair na armadilha da personagem exemplar mas, pelo contrário, encontram a subtileza e estilização necessárias para serem credíveis e eficazes na especificidade do papel que representam, fazem desta obra uma grata descoberta que se pode perfeitamente colocar ao lado dos filmes dos realizadores mais conhecidos, ou menos ignorados, pelo público e pela crítica ocidentais.

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Director(s): Yasuzō Masumura

Actor(s): Machiko Kyô, Masaya Takahashi, Jirô Tamiya

Genre: Drama, 1962, 93min

  • João Garção Borges - 85
85

Summary

PRÓS: Repito o que disse na crítica ao filme anterior, JOHNNY CORAÇÃO DE VIDRO (GARASU NO JONI: YAJU NO YO NI MIETE), 1962, de Koreyoshi Kurahara: o melhor convite para a descoberta de um cinema, que vale a pena ver e rever, está inscrito na própria designação do Ciclo, ou seja, MESTRES JAPONESES DESCONHECIDOS II, primeira e mais importante razão para dedicarmos a melhor atenção ao conjunto dos filmes propostos.

CONTRA: Nada.

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