©The Stone and the Plot

Johnny Coração de Vidro, em análise

“Johnny Coração de Vidro”, de Koreyoshi Kurahara, é uma das mais recentes obras do cineasta nipónico a ganhar destaque em Portugal!

JAPÃO E CINEMA NA ENCRUZILHADA DA RECONFIGURAÇÃO POLÍTICA, ECONÓMICA, SOCIAL E CULTURAL

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Mais uma vez, quero aqui salientar a importância da iniciativa da produtora e distribuidora THE STONE AND THE PLOT, que nos propõe neste início de Novembro de 2022 um segundo ciclo dedicado ao cinema japonês, com duas longas-metragens produzidas nos Estúdios da NIKKATSU e uma nos Estúdios DAIEI. Recordo que no ano passado os responsáveis pela selecção e organização do ciclo, como o de agora, intitulado MESTRES JAPONESES DESCONHECIDOS, concentraram a atenção nas produções de 1955 e exclusivamente em obras oriundas da NIKKATSU, a saber: O MENINO DA AMA (Jochukko), de Tomotaka Tasaka, MULHERES DE GINZA (Ginza No Onna), de Kôzaburô Yoshimura, e CADA UM NA SUA COVA (Jibun No Ana No Nakade), de Tomu Uchida. Muito provavelmente, estes filmes ainda circulam em sessões especiais e ainda podem ser vistos nos canais TVCINE e, aqui ficam os meus votos, no TVCINE+. Iniciei as colaborações regulares com a MHD precisamente com uma crítica conjunta a esses filmes, que convido os actuais leitores a ler ou reler, para o que basta procurar a referência JAPÃO, NA RESSACA E RENASCIMENTO DO PÓS-GUERRA, nome que então dei ao artigo. Do ponto de vista cronológico, esse vem em primeiro lugar. Dito isto, como fiz na altura, embora o meu aplauso seja sonoro e entusiástico, não deixo de fazer um reparo: falar de mestres, alegadamente desconhecidos, funciona no plano do marketing mas é uma visão redutora, apesar de legítima, um conceito que só pode aplicar-se de fora para dentro da vasta, diria mesmo, vastíssima filmografia japonesa, que se apresentava e continua a apresentar voltada preferencialmente para o mercado interno, sem no entanto abdicar ou esquecer as perspectivas de internacionalização inerentes a qualquer indústria com a solidez e sustentabilidade da japonesa, uma das maiores do mundo desde há muitos anos. De facto, uma indústria constituída por uma série de estruturas profissionais que, ao contrário da grande indústria alemã (destruída em grande parte, nos derradeiros momentos da Segunda Guerra Mundial, para reforçar a presença da produção Made in Hollywood nos ecrãs europeus e não só), conseguiu resistir ao período de ocupação americana, a um novo paradigma laboral com uma forte presença dos sindicatos, aos problemas levantados pela reconstrução, nomeadamente, o renascer de uma grande parte dos estúdios, paralelamente ao erguer das salas que substituíram as que foram arrasadas pelos brutais bombardeamentos da maioria das grandes cidades nipónicas, enfim, que soube impor-se num regime democrático, com novas regras políticas e sociais, apesar das muitas contradições do imediato pós-guerra. Seja como for, reconheço que qualquer dos realizadores que fazem parte deste novo ciclo, não sendo desconhecidos no seu país, não foram bafejados com a projecção internacional que outros obtiveram. Por exemplo, Kenji Mizoguchi, Akira Kurosawa, Mikio Naruse, Masaki Kobayashi, Kon Ichikawa, Teinosuke Kinugasa, só para citar meia dúzia de autores com vários e inegáveis clássicos nas suas filmografias, sem esquecer, nos anos sessenta, realizadores como Shoei Imamura, Nagisa Oshima, o menos conhecido mas nem por isso menos importante Hiroshi Teshigahara… E podia continuar por mais algumas linhas a desbobinar nomes de quem gosto muito, mas vou ficar por aqui, não sem dizer que o maior dos maiores, a quem chamaram, com algum exagero especulativo, o mais japonês dos cineastas japoneses – falo do grande Yasujiro Ozu – foi um dos que se manteve mais ou menos “desconhecido” do público fora do Japão, como se fosse uma jóia bem guardada para usufruto dos espectadores cinéfilos japoneses. Mais, a maior abertura ao cinema japonês, particularmente na Europa, deu-se através da inserção de poucos mas significativos filmes, seleccionados ou exportados para integrarem a programação de festivais de cinema como Berlim, Cannes ou Veneza, ou seja, da mesma forma que outras cinematografias se impuseram e que não eram nem são similares do ponto de vista da originalidade cultural e da capacidade industrial.

Johnny Coração de Vidro
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Por fim, quero salientar o facto de o presente ciclo abordar a cinematografia dos anos sessenta do século vinte, um período conturbado que assistiu a uma baixa acentuada do número de espectadores, lá como no ocidente devido em grande parte ao concorrente audiovisual, a TV, que passou a ser a janela para o mundo, incluindo o do entretenimento, quer o reproduzido a partir do que já existia, quer o especificamente orientado para o pequeno ecrã. Para além do mais, são anos de reconfiguração do capitalismo japonês, com lutas sociais intensas e extremadas, uma maior divisão entre as classes em função das oportunidades dadas a cada um no contexto laboral e empresarial em múltiplas áreas da produção, como a dos serviços a par da agricultura e das pescas. Uma década em que o acesso ao bem-estar, o crescimento de uma nova burguesia e a correspondente consolidação da sua posição social se media e obtinha através dos privilégios de casta e não necessariamente pelo mérito nem o direito de frequentar o ensino, sobretudo o superior. Uma era de arrivismo e demagogia política, de corrupção misturada com o conformismo dos mais desfavorecidos face ao que era a parca esperança de obter um lugar ao sol, que parecia cada vez mais sombrio e sem futuro, uma altura em que o crime organizado ou meramente circunstancial não era coisa rara. Estes e outros problemas podem ser encarados como as dores de crescimento de uma nova sociedade que se libertava pouco a pouco da memória dos anos de chumbo, do militarismo fascista que empurrara o Japão para um beco sem saída, um pesadelo violento que foi interrompido, mas não esquecido, após a barbaridade das explosões de Hiroshima e Nagasaki, em 1945. Memórias que fazem parte das preocupações ficcionais dos filmes selecionados para o Ciclo MESTRES JAPONESES DESCONHECIDOS II, que passo de seguida a apresentar.

Primeiro, JOHNNY CORAÇÃO DE VIDRO (GARASU NO JONI: YAJU NO YO NI MIETE), de Koreyoshi Kurahara, 1962.

Johnny Coração de Vidro
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Na sequência inicial, vemos um homem que irrompe pelo meio de um grupo de mulheres que se encontravam na praia e na apanha de algas junto ao mar, provavelmente para servirem de adubo. Ele, Akimoto (Jôji Ai), investe de forma pouco simpática junto de Mifune (Izumi Ashikawa) que, depois de submetida, se vê obrigada a viajar com outras raparigas da pequena aldeia de pescadores, destinadas a ser escravas sexuais num negócio sujo e muito básico, na sua natureza mais do que sórdida. Mas Mifune não se fica e procura fugir das garras do proxeneta, que faz o que faz ao serviço de uma qualquer organização criminosa. Ela estava a ser arrastada para uma vida que naturalmente não desejava porque, saberemos mais adiante, a mãe a vendeu. Durante a fuga encontra Joe, que não cabe na definição do padre Américo de que não há rapazes maus, mas esta figura muito inquieta consigo própria e o mundo possui um feitio peculiar e, aqui e além, no limite do violento que, mesmo assim, não parece incomodar Mifune. Todo o filme, a partir desta mais ou menos forçada relação, irá estabelecer uma série de linhas cruzadas que marcam de forma muito saliente o percurso das personagens aqui descritas. Akimoto não desiste de recuperar Mifune, pois colocaria em perigo a sua reputação e, quem sabe, a vida de gangster junto dos chefes mafiosos, mais poderosos e que permanecem ocultos. Entretanto, Mifune e Joe passam os dias a ver passar os cavalos de corrida, porque Joe possui um esquema manhoso de apostas, que não faz dele uma flor que se cheire. Para estruturar a narrativa a partir destes e outros pressupostos mais pontuais, que resultam em sequências com maior ou menor interesse, a realização e o argumentista Nobuo Yamada engendraram um guião em que a sucessão de episódios vividos pelos protagonistas acaba por não ter um centro, dispersando-se antes por uma infinidade de histórias e personagens secundárias, de que se destaca a dona de um restaurante com quem Joe tem uma relação intermitente, e ainda uma velha senhora que parecia não fazer mal a uma mosca mas que afinal quer comprar Mifune, mais uma vez, para a lançar na malfadada má-vida. De algum modo, estas circunvoluções fragilizam a atenção do espectador para o que no fundo era essencial: a relação cada vez mais complexa entre a desamparada, algo ingénua e masoquista Mifune, as contradições do fura-vidas Joe e a omnipresente sombra persecutória do criminoso Akimoto. E, no meio disto, ainda introduzem uma sequência em que Mifune, no quarto onde o gangster se encontra preso, canta uma velha canção que fala de uma figura, nunca saberemos se real ou imaginada, na prática uma quarta personagem ausente, chamada “Johnny Coração de Vidro”. Provavelmente uma quimera, como constataremos no final ao regressarmos ao espaço da aldeia natal de Mifune, onde por fim ela decide alterar o sentido da sua atribulada existência optando pela solução mais difícil mas igualmente a mais corajosa no interior do seu desespero, que lhe permite “viver e morrer” em paz.

Johnny Coração de Vidro
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Há quem veja neste filme a influência de LA STRADA (A ESTRADA), 1954, de Federico Fellini. Mifune, interpretada por Izumi Ashikawa, seria uma outra versão de Gelsomina, inesquecível composição de Giulietta Masina. Sim, pode ser, mas seria forçar muito a nota ir mais longe. Prefiro antes destacar a boa definição dos ambientes, a muito boa fotografia, quase sempre em exteriores, e que apresenta momentos fulgurantes na abordagem das paisagens agrestes e selvagens do litoral do Hokkaido, o Norte do Japão. Não obstante o profissionalismo dos actores, preferia maior contenção verbal nos diálogos e menos overacting, sobretudo por parte de Jô Shishido, que poucos anos depois viria a ser um dos grandes nomes da representação no cinema japonês.

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Na verdade, que venham mais filmes deste realizador, Koreyoshi Kurahara (1927-2002), que se destacou na produção de filmes que podem inscrever-se no género noir, crime e delinquência juvenil. Realizou uma adaptação do romance AI NO KAWAKI (SEDE DE AMOR), de Yukio Mishima. Seria importante saber mais e poder visionar alguns dos melhores filmes que o deram a conhecer, dentro e fora de portas, e que podem ser apreciados em DVD na CRITERION COLLECTION. Já agora, que a CINEMATECA PORTUGUESA, os canais de cinema das plataformas de cabo, as empresas de streaming, os cineclubes que ainda existam por esse país fora, sigam o exemplo da STONE AND THE PLOT e incluam na sua programação mais cinema de realizadores japoneses e não só, desconhecidos ou menos conhecidos cá pelo ocidente que, muitas vezes, só sabe olhar para o seu umbigo.

Johnny Coração de Vidro, em análise

Movie title: Garasu no Jonî: Yajû no yô ni miete

Director(s): Koreyoshi Kurahara

Actor(s): Jô Shishido, Izumi Ashikawa, Jôji Ai, Daisaburô Hirata

Genre: Drama, 1962, 106min

  • João Garção Borges - 70
70

Conclusão:

PRÓS: Está inscrito na própria designação do Ciclo, ou seja, MESTRES JAPONESES DESCONHECIDOS II, a primeira e mais importante razão para darmos a melhor atenção a este e aos outros filmes propostos.

CONTRA: Nada de especial, para além dos reparos que assinalei no artigo.

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