© RTP

Abandonados | Entrevista com o elenco

A Magazine.HD esteve à conversa com os atores de “Abandonados” e ficou a conhecer melhor a nova série da RTP, produzida por Francisco Manso.

Francisco Manso é um conhecido realizador português habituado a produzir longas-metragens aclamadas pela crítica. Com 73 anos de idade, o cineasta continua a apostar em obras que prestam a devida homenagem a importantes pessoas que fizeram parte da História de Portugal. Entre o seu portfólio de trabalhos encontramos filmes como “O Nosso Cônsul em Havana”, um filme sobre Eça de Queirós, “O Cônsul de Bordéus”, que falavam sobre Aristides de Sousa Mendes, e “Salgueiro Maia – Rumo à Eternidade”, um documentário sobre o Capitão de Abril. Agora, Francisco Manso apostou em “Abandonados”, uma minissérie que conta um período negro da nossa história e que teve como cenário Timor.

Baseada em factos reais, “Abandonados” recorda a aliança inédita entre portugueses, timorenses e australianos unindo-se contra um inimigo comum que não hesitava em cometer as maiores atrocidades contra as populações locais e contra todos os que se lhe opunham. A série narra a situação dramática em que ficaram muitos desses homens e mulheres, esquecidos e abandonados em Timor e a luta persistente de um militar – o Tenente Pires, que contra todos os obstáculos e dificuldades, criados aliás pelo próprio governo de Salazar, tudo fez para salvar os seus companheiros, até ao seu sacrifício final. Esta série mostra-nos os caminhos tortuosos da política e dos interesses dos estados sobrepondo-se aos interesses individuais, com toda a carga de injustiça e de desumanidade que muitas vezes isso acarreta, conferindo a “Abandonados” um significado universal.

Em exibição desde o dia 21 de dezembro, “Abandonados” está disponível na RTP Play. A dois episódios do fim da minissérie, a Magazine.HD esteve à conversa com Marco Delgado, o protagonista que dá vida ao Tenente Pires, com Elmano Sancho e com o realizador Francisco Manso. Durante a conversa, tentámos perceber o processo criativo dos atores que lhes permitiu dar vida a pessoas da vida real, questionando os seus métodos pessoais.

MARCO DELGADO – TENENTE PIRES

marco delgado
© RTP

Magazine.HD: O Marco dá vida ao Tenente Pires, que personagem é esta? 

Marco Delgado: O Tenente Pires é um tenente do Exército Português que nasceu no final do séc. XIX e que participou na Primeira Guerra Mundial, sendo Republicano. É promovido como administrador da província de Baucau, em Timor, e está lá como administrador durante o período da Segunda Guerra Mundial. Em Timor, a neutralidade de Portugal no conflito não foi respeitada por parte dos japoneses e daí gera-se um conflito entre os Portugueses que viviam lá na altura e os Timorenses contra os Japoneses. Os Japoneses criam zonas de proteção para fingidamente proteger os Portugueses neutrais, mas, na verdade, eram verdadeiros campos de concentração.

O Tenente Pires, não concordando com estes campos desenvolve uma verdadeira epopeia para tentar salvar o maior número de autóctones Timorenses e europeus, todos os que quiseram ir com ele para fugirem. Ele faz uma série de pedidos e escreve ao General MacArthur, escreve a Getúlio Vargas, Presidente do Brasil na altura, escreve aos oficiais Portugueses, escreve a Salazar, escreve aos oficiais Australianos…, mas sem sucesso algum. Daí o título da série – “Abandonados” – porque ele e os outros ficam verdadeiramente abandonados nas montanhas e nas praias de Díli e de Timor.

Aquilo que mais prazer me deu ao fazer esta personagem foi estar a prestar a devida homenagem a mais um grande herói da História de Portugal. O Tenente Pires foi propositadamente esquecido porque não concordava com as tomadas de posição do governo na altura da ditadura de Salazar e, portanto, era um incómodo. Por não concordar com o regime, ele sacrificou a própria vida para salvar o maior número de pessoas. É importante falar destas personagens que foram verdadeiros heróis e que sacrificaram tudo. Temos também o exemplo do Aristides de Sousa Mendes… Eu nasci em 1972 e até aos meus vinte anos eu não sabia quem era. Só a partir dos anos 90 é que se começou a falar do Aristides de Sousa Mendes. Eu espero que aconteça um pouco o mesmo com o Tenente Pires que é o Aristides do Sudeste Asiático [risos]. Ele salvou 80 e tal pessoas do conflito e não salvou mais porque não teve tempo e não teve apoio. Foi abandonado! E para mim foi muito emocionante interpretá-lo. É um projeto que vai ficar no coração!

Magazine.HD: É uma responsabilidade ainda maior representar uma personagem como o Tenente Pires?

Marco Delgado: É! Porque são personagens que efetivamente viveram e existiram. Enquanto os outros são apenas invenções em que nós podemos criar, imaginar e fazer, nesta existe uma responsabilidade acrescida. Este herói tem que ser cuidado e tem que se lhe prestar o devido respeito e para mim era muito importante cumprir isso e passar a ideia de que ele era digno e moralmente correto. Era um homem corajoso e altruísta e que sacrificou a própria vida para fazer tudo em nome da salvação de pessoas. 

Magazine.HD: Que preparação foi necessária para dar vida ao Tenente Pires?

Marco Delgado: Fiz muitas leituras de todo o material que pude, porque eu conhecia superfluamente esta parte da História Portuguesa, mas fui ler sobre o conflito, sobre Timor na altura e sobre a distribuição administrativa de Timor. Tive o apoio do Exército Português, porque isso também é muito importante para mim, porque eu não tenho formação de tropa, e isso é importante para interpretar um militar. Tive o apoio do Francisco [Manso], obviamente li muito, estudei muito, e vi muita coisa, vi muitas fotografias… Também tivemos o apoio da Dra. Ana Gomes, que foi muito importante, e li o todo o diário do António Monteiro Cardoso, que é um testemunho muito forte, e passei muito tempo nos arquivos do Exército Português. Preparei-me bastante [risos]!




ELMANO SANCHO – CAPITÃO BERNARD CALLINAN

elmano sancho
© RTP

Magazine.HD: Elmano, poderia apresentar-nos a sua personagem, por favor?

Elmano Sancho: A minha personagem é o Bernard Callinan, que fazia parte dos Australianos que estiveram em Timor e que de alguma forma tentaram ajudar o grupo de Portugueses que se encontrava lá e que era encabeçado pelo Tenente Pires. Mas os Australianos acabaram por sair da Ilha sem resolver a situação e o problema que aconteceu entre as tropas Japonesas e Australianas.

É uma personagem com algum desafio porque quase todos nós tivemos que tentar falar Português com aquele sotaque Australiano/ anglófono, e penso que esse foi o maior desafio desta série. Eu já tinha trabalhado com o Francisco [Manso] em “O Nosso Cônsul em Havana” e era completamente diferente – havia o desafio de fazer o Eça de Queirós, que também não é um desafio pequeno. A propósito de Bernard Callinan, também não havia muita coisa disponível na internet, por isso não havia aquela urgência maior de tentar ser fidedigno ao que ele era e parecia. Obviamente que eu pesquisei o que havia sobre ele, mas a nível de trabalho de interpretação, foi muito interessante tentar ver como é que se consegue falar Português, como se não fossemos nativos quando somos, de facto, Portugueses [risos]. E esse é o maior desafio para mim.

Magazine.HD: A série “Abandonados” é baseada numa história verídica, que faz parte da história de Portugal, mas que não é assim tão estudada, mesmo nas escolas. Qual é a importância da RTP trazer uma série destas para o século XXI? 

Elmano Sancho: Eu acho que é fundamental! O Francisco [Manso] diz que é importante revisitar o passado, sobretudo agora com a overdose de informação a que nós temos acesso, parece que teríamos, à partida, muito mais obrigatoriedade em saber o que é que aconteceu, mas isso não se verifica. Temos uma memória muito curta! Nós já sabemos que a história e que os acontecimentos são cíclicos e que as coisas acabam por se repetir de forma diferente. Então, é urgente perceber esta história e este lado trágico desta personagem!

O título “Abandonados” vem do facto de o Governo Português os ter deixado lá ficar… Eu acho que é muito importante para termos uma leitura mais global sobre este período da Segunda Guerra Mundial em que, na verdade, nós não participámos. Eu não estou a dizer que esta época é pior que as outras para comparar. Acho que cada época tem desafios completamente diferentes, mas, de facto, há um desconhecimento do passado, e este passado já é muito longínquo, sobretudo para as novas gerações – estamos a falar de mais de 70 anos. É importante que a RTP traga estas histórias destas personagens esquecidas, porque o mundo é feito destas personagens que mudaram o rumo dos acontecimentos e que nós desconhecemos e que é importante relembrá-las. É importante para que tudo não caia numa displicência.

Foi trágico que aconteceu com o Tenente Pires, mas, por outro lado, também há um lado inspirador nessa personagem. Ele tentou defender e teve coragem até ao último momento, algo que eu acho inspirador! Hoje nós não passamos por esta privação, mas temos exemplos do que acontece na Europa neste momento e é importante mostrar isto para todas as gerações, não só para as mais novas, mas para todas. Eu desconhecia de todo esta história do Tenente Pires. Aliás, eu pesquisei e há pouquíssima coisa sobre este Tenente Pires. 

Magazine.HD: Sendo uma história verídica que não é muito falada, sente-se uma responsabilidade ainda maior ao participar-se numa série destas? 

Elmano Sancho: Eu acho que sim, porque nós somos uma peça importante para que a história consiga chegar até ao espectador, não é? Para que a história chegue com clareza e com impacto ao telespectador, eu acho que há uma certa responsabilidade. Falo só do meu ponto de vista da interpretação, porque imagino a responsabilidade do guião e da realização seja muito maior [risos].

Mas voltando àquela primeira questão de tentar ir ao encontro da quem era este Bernard Callinan… ao saber que havia pouca informação sobre ele, para mim, de alguma forma, foi uma lufada de ar fresco, porque eu poderia imprimir nesta personagem uma personalidade que que depreendi do guião e que acaba por ser ficcional. Deu-me uma certa liberdade, porque a ficção também permite isto, porque senão seria um trabalho mais de documentário e seria outro objeto artístico que não este, que é uma ficção e cujo objetivo não é só o de cativar as pessoas, mas sobretudo de fazer perdurar esta história. Acho que esse é que é o elemento mais interessante desta criação que imprime o que não ficou registado na História com a amplitude que merecia. E voltando a esta questão de que temos tudo disponível e que tudo nos parece também rapidamente obsoleto e descartável… É importante termos este trabalho de mostrar que as pessoas são importantes de alguma forma, e que este Tenente Pires foi importante, mas também todas as pessoas que estiveram envolvidas no conflito em Timor. E das relações que se criaram no desconforto da guerra. 




FRANCISCO MANSO [REALIZADOR]

francisco manso
© RTP

Magazine.Hd: Porque é que escolheu contar a história do Tenente Pires?

Francisco Manso: O Pires é um herói esquecido, um herói português, um homem absolutamente extraordinário que só em 1973 lhe reconheceram a coragem e o heroísmo. Para tentar salvar outros portugueses teve de bater corajosamente contra um conjunto de fatores que o impediam, digamos assim, de salvar pessoas. O Governo Português e o Governo de Salazar não fizeram nada para proteger os portugueses que estavam completamente desprotegidos. Havia meia dúzia de militares em Timor, havia uma companhia de caçadores que não tinha nada, tropas locais que não tinham armas nem munições, não tinham nada. De repente, há um exército brutal poderosíssimo que invade aquilo. Foi uma desgraça… as raparigas novas violadas, os homens mortos… foi horrível. Morreram 50.000 timorenses, portanto, estas histórias têm que ser contadas. Há aquela ideia que se quer passar de que Portugal escapou à Segunda Guerra Mundial e que Salazar foi maravilhoso e que poupou Portugal da desgraça.

Mas foram os deportados políticos enviados por Salazar que combateram os japoneses que faziam barbaridades. Este Tenente Pires que era um homem até do regime, porque era um militar com responsabilidades, era administrador de Baucau e apesar de não ser um Democrata como hoje entendemos, era um Republicano sério. Ele percebia muito bem o que é que o Japão e os japoneses estavam ali a fazer. Portanto, eu acho que esta esta atitude do Tenente Pires foi absolutamente extraordinária. O que é incrível é que depois da derrota e da rendição do Japão, o Governador de Timor e os restantes governadores consideram o Tenente Pires um homem perigosíssimo que fez perigar as relações de Portugal com países amigos. Eu acho que aquilo que nós temos que tentar é ser um bocadinho isentos, e a isenção passa por percebermos o que é que aconteceu. Esta questão do Tenente Pires é muito relevante porque as pessoas não sabem quem ele é. Era um militar do Exército Português com uma enorme ética, com um enorme respeito pelos camaradas de armas e pelos amigos, e que tudo fez para os salvar, até que foi morto pelos japoneses. 

Magazine.HD: Como é que se prepara para contar uma história destas que não faz parte sequer dos nossos manuais?

Francisco Manso: Estas histórias normalmente não são contadas! Eu tinha um grande amigo que, aliás, também escreveu o argumento deste projeto, que é o António Monteiro Cardoso, que já morreu. Ele conhecia muito bem Timor, gostava e interessava-se muito por aquele país. E conheceu muito bem a história do Tenente Pires. Nas conversas que eu tive com ele, vim a perceber que era um homem extraordinário, mas que era ostracizado e ninguém lhe ligava porque tinha posto em causa decisões do Governo. Ele pôs em causa, tal como o Aristides de Souza Mendes pôs durante a Segunda Guerra Mundial. Pode-se dizer, entre aspas, que eles ficaram queimados pelo Regime. Mas a verdade é que estas histórias têm de ser conhecidas das pessoas. Eu acho que as pessoas novas têm que perceber um conjunto de coisas e nós ganhamos todos em conhecê-lo. Mas mesmo as pessoas mais velhas, porque muitas pessoas da minha idade nem sabem quem é o Tenente Pires!

Magazine.HD: Timor hoje é um país mudado… como é que se contorna esse fator para recriar um cenário mais semelhante ao da época?

Francisco Manso: Bom, nós tivemos um problema grande que foi a pandemia e isso criou-nos um limite enorme. A opção foi realmente filmar na Madeira na parte da Laurissilva, nas montanhas, porque a maior parte desta série passa-se no ambiente da floresta. E é na floresta que a maior parte das situações dramáticas acontecem, como a fuga e os bombardeamentos. A Madeira tem ali uma zona de floresta endémica absolutamente extraordinária, que é muito parecida com aquela floresta densa de Timor. Portanto, tivemos de filmar numa altura mais económica, para evitar os turistas, portanto teve de ser no Inverno. A 1.200 metros de altura faz muito frio e há muita chuva, por isso foi um grande esforço para a equipa técnica e para os atores. As pessoas quando olham para a série vêm aquelas frestas e aqueles vales e não percebem onde é que aquilo se passa. Os filmes fazem-se assim mesmo! Não temos que fazer tudo nos sítios. Claro que em Timor teria sido diferente… Aliás, eu fui lá várias vezes e fiz um grande levantamento, mas é muito complicado e era muito dispendioso. E com a questão da Pandemia, sendo que tínhamos de passar pela Indonésia, é um processo muito complicado. Além disso, a nós interessávamo-nos que a série pudesse ir para o ar no ano em que se celebram os 80 anos da invasão do Japão, que foi em 1942 e os 20 anos da Independência de Timor, que foi em 2002.

TRAILER | ABANDONADOS É A MAIS RECENTE OBRA DE FRANCISCO MANSO

Tens acompanhado a série “Abandonados”? Conhecias a história do Tenente Pires?

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *