Aftersun, em análise
“Aftersun”, a primeira longa-metragem da autoria de Charlotte Wells, narra uma história profundamente emocional e pessoal acerca da relação entre uma filha e um pai. Com uma nomeação para Paul Mescal, refletimos agora acerca desta obra, nos cinemas portugueses desde 26 de janeiro.
Um belíssimo e melancólico pedaço de memória, banhado pelo sol e mar, “Aftersun” é um drama quietamente devastador, numa reconstrução dos anos 90 capaz de recuperar, com um enorme grau de intimidade, um momento no tempo. A primeira longa-metragem de Charlotte Wells reflete uma memória da própria, umas férias com o pai, na Turquia, quando era pequena. Ao procurar lidar com a perda precoce do seu pai, Wells cria este drama que, sempre perante um véu de pachorrento ócio, esconde emoções mais profundas e de difícil lidação.
A obra passa-se no final dos anos 90, e acompanha Sophie (a revelação que é a pequena Frankie Corio) e o seu jovem pai, Calum (Paul Mescal, de “Normal People”), de férias num resort decrépito, na Turquia. Com duas temporalidades distintas, o presente e a memória do passado, é a partir da perspetiva de Sophie que a acção nos é apresentada. Ao fim de contas, o presente da ação é configurado por uma manta de retalhos de memórias, filmadas a VHS, evocativas de um aqui e agora que já não volta.
“Aftersun” distingue-se pela sua capacidade de, pela calada, nos destruir emocionalmente. A sua narrativa de combustão lenta deixa-nos em permanente sobressalto, à medida que umas aparentemente banais férias assumem um carácter de urgência e sobressalto. Algo não bate certo, a ameaça paira no ar, mas nem nós nem os protagonistas se atrevem a dar-lhe nome ou forma. Por agora, Sophie e o seu pai Calum, que acabou de celebrar 30 primaveras durante as suas férias, limitam-se a absorver os raios de sol e as experiências que os unem nesta sua jornada.
Uma longa-metragem capaz de tratar temáticas muito pesadas com particular mestria, dependendo em grande parte do poder da sugestão, “Aftersun” deixa, a quem ver, muito espaço para refletir, preencher espaços e até complementar o final na sua mente. Quanto aos inegáveis pontos altos desta longa-metragem, como se sequer existissem pontos baixos, destacamos a cumplicidade construída entre os dois jovens protagonistas – os quais conseguiram construir uma nítida relação de intimidade credível no ecrã e para lá dele.
Distingue-se também a prestação de Paul Mescal, um ator jovem, que acabou de completar 27 primaveras, mas que se assume já como uma das grandes estrelas emergentes de Hollywood. Com um trajeto de crescimento na indústria verdadeiramente impressionante, Mescal foi nomeado ao Emmy pelo seu primeiro papel como protagonista na televisão, por “Normal People”, e é agora indicado ao Óscar de Melhor Ator pela sua prestação nesta obra, a sua primeira grande prestação como protagonista no campo do cinema.
Como obra independente, “Aftersun” não apresentou uma campanha forte nesta temporada de prémios, mas o destaque dado à prestação de Mescal parece inegável. O seu Calum transporta uma tristeza e melancolia no olhar, mas ao contrário de outras prestações explosivas habitualmente indicadas nesta categoria, como por exemplo este ano, a muito teatral apresentação de Brendan Fraser, é também incrivelmente contido. Mescal brilha sem se exaltar, gritar, espernear. O sofrimento traduz-se nas suas micro-expressões, através de uma prestação devastadora, na sua mais evidente quietude. Habilmente, a jornada emotiva não precisa de gritar para ser ouvida. Antes, seríamos capazes de ouvir o seu apelo até no silêncio total.
Destaque também para a maravilhosa, assombrosa, perfeitamente brutal e avassaladora sequência final, do momento de cumplicidade partilhado na pista de dança, até ao instante climático que sucede no não-lugar que é a discoteca, onde os gritos abafados pelo silêncio são, sem dúvida, os mais aterradores. Os minutos que encerram o filme são perfeitos, e pedem uma segunda, terceira, quarta visualização. Quase sufocantes, confirmam não só a grande promessa de Paul Mescal, como a genial capacidade criativa da jovem realizadora. Tudo é perfeito, da expressão corporal dos atores até à versão remixada de “Under Pressure“ (o uso da música é sublime ao longo de todo o filme, mas aqui assistimos mesmo ao apogeu deste trabalho). Tudo é transitório e simultaneamente permanente. Memorável.
“Aftersun” brilha em toda a sua simplicidade e complicada descomplicação. Esta é “só” uma relação entre um pai e uma filha, mas este retrato mune-se de uma humanidade desconcertante e quiçá até pouco frequente, a qual devemos valorizar e procurar ilustrar com maior frequência. Aqui o aparato não vence, mas antes a emoção. Uma cápsula temporal perfeita, que exige ser revista e estudada. Prezada.
Distribuído pela Leopardo Filmes, “Aftersun” encontra-se ainda em exibição, à altura da redação deste artigo, podendo ser visto em Lisboa, no Cinema Nimas e no Amoreiras, no Cinema Vida, em Ovar, e ainda no Porto, no Cinema Trindade e no Teatro Municipal Campo Alegre (e ainda noutras localizações pelo país, a descobrir no site da Leopardo Filmes).
TRAILER | AFTERSUN ENCONTRA-SE AINDA EM EXIBIÇÃO NOS CINEMAS
Aftersun, em análise
Movie title: Aftersun
Movie description: Numa estância de férias em decadência, Sophie (interpretada, em jovem, pela revelação Frankie Corio), com 11 anos, desfruta de um raro período que tem para passar em junto com o pai, Calum (Paul Mescal, num pujante momento de carreira). Enquanto o mundo da adolescência se anuncia para Sophie, fora do seu olhar Calum soçobra sob o peso da vida fora da paternidade. Vinte anos mais tarde, as ternas memórias de Sophie (em adulta, interpretada pela multitalentosa Celia Rowlson-Hall) das suas últimas férias juntos transformam-se num poderoso e desolador retrato da sua relação, enquanto tenta reconciliar o pai que conheceu com o homem que lhe permanece um desconhecido, neste soberbo e emocionalmente abrasador filme inaugural de Charlotte Wells.
Date published: 2 de March de 2023
Country: EUA, UK
Duration: 102'
Author: Charlotte Wells
Director(s): Charlotte Wells
Actor(s): Paul Mescal, Frankie Corio, Celia Rowlson-Hall,
Genre: Drama
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Maggie Silva - 98
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Cláudio Alves - 95
CONCLUSÃO
Um exercício de memória quase perfeito, agridoce, melancólico, belo, e livre de pretensão, “Aftersun” é “só” o retrato de uma relação familiar. E que retrato tão invulgarmente tenro e valoroso.
Pros
- A cumplicidade entre os dois intérpretes centrais, perfeitos para lá da sua condição de “newcomers”.
- A caracterização de uma relação pai-filha centrada em pura afetividade.
- Uma cápsula do tempo perfeita.
- Uma sequência final capaz de fazer arrepiar a espinha e desnortear os sentidos.
- Que versão de “Under Pressure ” e, em geral, que banda sonora!
Cons
- O filme parece, inicialmente, muito lento, mas a recompensa faz-se forte e dissipa qualquer dúvida.