O Ancoradouro do Tempo | Entrevista a Sol de Carvalho (Parte 2)
Se acompanhaste a primeira parte da entrevista ao realizador Sol de Carvalho sobre “O Ancoradouro do Tempo”, a nova longa-metragem do autor que estreou nas salas de cinema nacionais a 26 de junho, podes agora ler aqui a segunda parte.
Como referi na parte 1, esta entrevista decorreu em videochamada na passada segunda-feira 30 de junho. Esta segunda parte aborda os bastidores da filmagem de “O Ancoradouro do Tempo”.
As memórias das paredes em O Ancoradouro do Tempo
Estava-me a lembrar aqui de uma outra coisa que eu não tinha metido aqui nas perguntas, mas lembrei-me agora de repente, que tem a ver também com o lado, digamos, bastante teatral e performativo do filme. Porque eu lembro-me… Por exemplo, há pouco, o Sol estava a falar da questão da fortaleza, de se ver as personagens, em determinadas alturas, não diretamente, não é? E estava-me a lembrar, por exemplo, que, sobretudo com o polícia, quando ele está a dormir, que aparece aquelas projeções na parede. Pronto, como é que surgiu, digamos, esta ideia? Isto, se calhar, foi feito já em pós-produção…
Não, na verdade… Sim, quer dizer, nós filmámos o sonho e depois em pós-produção juntámos. Mas o importante ali era a escolha do quarto e a escolha dos espaços onde cada um deles vive. Quer dizer, o Navaia vive rodeado de restos de barcos e de redes de pesca, etc. O outro vive no Jardim das Laranjeiras, que são os Frangipanis. O outro vive com as bugigangas, ela vive com a cama de água, portanto, com o barco da água. Portanto, todos eles têm uma relação com os objetos, digamos, com aquilo… Digamos, os objetos, se quisermos, com a “profissão”, com que eles representam no filme.
Os sonhos
Neste sentido, o polícia não tem nada. O polícia tem um saco que põe em cima de uma secretária, uma meia dúzia de fotografias com um dossiê e um quarto enorme. Esse quarto enorme é um pouco o vazio. O vazio onde ele está. E, por isso, nós quisemos escolher um quarto próprio onde ele tivesse uma relação com as paredes, que até é uma relação ao mesmo tempo distante, porque ele tem aquele quarto grande, mas… A primeira conversa que ele tem com o pai em que ele diz: “Sai da minha vida.”; que é aquela fotografia que o pai lhe manda, ele manda por um buraquinho muito pequenino, no quarto. Portanto, ele tem poucos sítios de fuga, vamos dizer assim.
Ele vive, ao mesmo tempo, num espaço muito grande, mas ao mesmo tempo não controla aquele espaço. E é naquele espaço que acontecem os sonhos e é naquele espaço que as coisas acontecem. Então, neste caso, a relação do espaço com o personagem é uma relação muito forte. Nós tivemos muito cuidado, andámos à procura na fortaleza, até conseguir encontrar o quarto dele. Pronto, é só para explicar que a fortaleza permitiu-nos isso. Permitiu-nos ter opções de escolha sobre os sítios onde filmar, em função da história do filme, e isso eu acho que foi uma coisa positiva.
Monólogos das personagens d’O Ancoradouro do Tempo
Sim, sim. Também senti perfeitamente isso de cada personagem, digamos, de se relacionar muito com o seu espaço e com os seus objetos.
Depois, queria também perceber aqui uma coisa que eu achei um bocadinho estranha. Não é que não resulte – porque eu acho que até resulta -, mas achei assim um bocadinho estranha, comparado com o resto do filme, que é o facto das personagens, a certa altura, quando estão a explicar, digamos, o seu envolvimento ou não no crime e o próprio polícia a refletir, depois falarem diretamente para a câmara. Porquê, digamos, esta escolha?
Há um filme que eu gosto muito de referir. Ou, aliás, um ator que eu gosto muito de referenciar que é o Marlon Brando. O Marlon Brando, e o [Jack] Nicholson também, eram pessoas que nunca falavam para a câmara, mas estavam sempre a falar para a câmara. Nas personagens, a gente sentia uma energia que, quando eles estão a falar para as personagens, eles estão dentro do personagem, a falar com os outros personagens, mas estão, ao mesmo tempo, a falar para a câmara.
O efeito brechtiano
Aqui, o que acontecia é que eu queria reforçar… E também foi por isso que eu mudei as cores dos relatos, porque inicialmente os relatos foram todos filmados, digamos, na cor natural do filme, mas eu depois mudei isso. Era a reforçar esta ideia de que: “Sr. espectador, caro amigo espectador, entre lá para a história do filme e vamos aqui estar juntos”. E, noutro momento: “Sr. espectador, tome lá uma bofetada (desculpe lá, a expressão não é, obviamente, com essa agressividade), mas volte lá para o seu lugar que eu vou-lhe contar uma história”. Este “volte lá para o seu lugar que eu vou-lhe contar uma história” cria aquilo que na História do Cinema foi chamado o efeito brechtiano. Portanto, de puxar o espectador para trás e, ao mesmo tempo, para que ele possa refletir sobre o que está a ver.
Então há este jogo que é feito com a câmara, com os atores, de puxar o espectador para trás. Ora, esses monólogos permitiram não só que a gente, digamos, fizesse um enquadramento do background, digamos assim, o contexto de onde é que essas pessoas vinham, da história delas, mas ao mesmo tempo que criássemos esse jogo com o espectador. Atenção, eu estou a contar a minha história, a minha história é triste, mas eu estou a contar uma história. Eu estou a contar uma história e eu estou a mentir, eu estou a mentir ao espectador.
Um jogo para o espectador
Não estou a mentir a mim próprio. Não estou a mentir àquilo que é a motivação. Mas eu estou a mentir em relação ao leitmotiv daquilo que o senhor está a procura. Então essa dualidade só podia ser feita criando este jogo, digamos, de atirar o espectador para trás, puxá-lo para dentro da tela, como a gente costuma dizer. E, pronto, isso foi a tentativa. Se resultou ou não, vocês me dirão, mas, pronto, essa foi a intenção, digamos assim.
A escolha dos atores para O Ancoradouro do Tempo
Eu diria que resulta. Queria era só também perceber melhor o porquê, mas acho que fiquei mais esclarecido, digamos assim.
Depois, queria também saber sobre os atores, que, para mim, em geral, todos eles são impressionantes e fazem muito bem as suas personagens. Queria perceber se eles são todos profissionais ou também há aqui alguns atores amadores…
Não, eles são… Tirando a atriz que foi resultado de um casting e, depois, até nos tornámos amigos. Foi muito competente e profissional.
Eu conhecia a maior parte dos atores e, quando pensámos nas personagens, eu disse logo para o Mia Couto: “Olha, para aqui eu quero este, para aqui eu quero este, para aqui eu quero este.” E chegámos rapidamente a um acordo. Não houve muita discussão. Eles são todos atores de teatro, basicamente.
Que modelo de representação?
Então, mais uma vez, aqui havia este problema. Portanto, como fazer essa representação. Aqui, vamos entrar em debates muito alargados de qual será o modelo de representação que é o ideal para o cinema. Mas a verdade é que o modelo asiático, o modelo americano, o modelo europeu, o modelo russo e o modelo africano não são iguais. Porque as pessoas, em função da sua própria tradição cultural, em função dos seus contextos, das suas texturas, se interpretam de maneira diferente. E não há dúvidas que em África, a representação, é mais gestual, é muito gestual. Tem a tradição dos rituais feitos nas aldeias em que é preciso comunicar com a aldeia toda, enfim. E retoma, de alguma forma, um certo tipo de representação clássica na Europa, mas pronto.
Agora, aquilo que se convencionou que, depois, mais tarde, alguns realizadores disseram: “Ok, ator, anda daqui para ali e pensa no que é que fizeste no pequeno almoço, porque o que eu quero é uma emoção completamente, digamos, distanciada de emoção”. E também aconteceu, aconteceu com o [Michelangelo] Antonioni e com outros. Agora, qual é o modelo certo? Eu sinceramente não sei. O que eu sei é que eu quero fazer filmes de alguma forma, digamos, sustentados por uma cultura.
Duas culturas
Neste caso, eu sou um bi-cultural, no sentido de que, obviamente tenho uma educação africana, mas também tenho uma educação europeia. Os meus pais eram europeus. Mas eu quero fazer filmes africanos. Então, tenho que pensar como é que se faz a representação, como é que se fazem os espaços, como é que se faz a movimentação, como é que se faz até a circulação de câmara, etc. Quer dizer, a discussão, por exemplo, das volumetrias, é uma coisa importante. Porque as volumetrias em África são todas muito redondas, não é? Hoje, o mundo moderno é muito de linhas, mas, em África, as coisas ainda são muito redondas.
Então, todo este contexto dos tempos da montagem, a luz, as cores, a representação – principalmente a representação -, tem muito a ver com opções que você toma em relação a isso. Aqui, no caso, o filme, como eu acabei de dizer na resposta anterior, ainda permitia mais esse jogo entre as duas, digamos, dois tipos de representação. Então, eu acho que o polícia tem uma representação mais “cinematográfica”, enquanto os outros, de alguma forma, revelam um pouco a representação teatral. Mas isso foi, de alguma forma, trabalhado e provocado. Então, foi um pouco esse jogo; se calhar, não acertou sempre, mas pronto, foi isso também, mais uma vez, aquilo que nós tentamos fazer.
A imagem do filme O Ancoradouro do Tempo
O tratamento de imagem, já que estávamos a falar das cores… O Sol escolheu para tratar os flashbacks – quando as personagens estão a contar o seu assassinato, digamos assim –, escolheu dar uma imagem assim mais escura. Eu acho que a pergunta autoexplica o porquê, mas, de qualquer maneira, queria perceber se isto foi pensado logo, digamos, à partida, se foi uma decisão mais de pós…
Não, foi uma decisão posterior. Foi uma decisão posterior, porque, inicialmente, muitas das pessoas a quem eu mostrei o filme… Porque eu tinha algumas dúvidas sobre isso e… Hoje, não terei tantas, mas admito que se, numa questão do relacionamento sobre o mundo mágico com o mundo real, ser um relacionamento muito forte, muito presente em África, justificava-se perfeitamente que eu não tivesse feito nenhuma mudança de cor.
É mentira
Por outro lado, esta ideia que eu estou a falar de fazer um jogo com uma conversa dos atores com o espectador e, ao mesmo tempo, uma conversa com o polícia, que é uma conversa que é, obviamente, como se percebe depois no filme, uma mentira. Imediatamente percebemos que é uma mentira, mas, ao mesmo tempo, percebemos que há uma razão para eles terem feito aquilo. Ou seja, podiam ter sido eles os assassinos. Ora, tudo isto se passa, todos estes elementos. Eu não vejo outra cor, eu não vejo isto numa cor aberta, clara. Eu vejo sempre isto numa cor mais escura, mas não preto e branco. Ou seja, não radicalizo completamente a cor, porque eu acho que há ali algum elemento de realidade que deve ser mantido e foi essa a razão da cor.
Mas também uma excelente sugestão do Leonardo Simões, que foi depois o consultor na fotografia, com quem eu já trabalhei. Quer dizer, o diretor de fotografia… O primeiro luminotécnico, um moçambicano fantástico [Caulo Rabajo] a fazer o trabalho. Foi ele que pintou, digamos assim, aquelas… A gente, às vezes, ficava à espera: “- Então, quando é que vamos começar a trabalhar? – Calma, que o homem está a pintar.” [risos] A pós-produção de imagem da Mafalda [Aleixo] foi também fantástica para tornar aqueles cenários realmente pinturas. E eu acho que, nesse aspeto, o trabalho de imagem, todo ele, foi muito positivo.
A política implícita em O Ancoradouro do Tempo
Sim, sim, é verdade.
Então, a minha última pergunta tem a ver aqui com a questão colonial que está presente, embora de uma forma muito pouco aprofundada, e a própria luta contra o regime português do Estado Novo. Isso, em certa medida, acaba por ser uma questão que atravessa muito do cinema das ex-colónias portuguesas. Por exemplo, estou-me a lembrar de um caso recente como o filme “Nome” do Sana Na N’hada. Pronto, eu como não conheço a totalidade da sua filmografia, não sei se esta minha pergunta, se calhar, é um bocado “parva”, mas queria perceber se alguma vez pretende trabalhar esta questão mais a fundo, eventualmente num próximo projeto, ou até se já trabalhou, considerando que, como não conheço toda a sua filmografia…
Quer dizer, eu sou um cineasta. Eu conto histórias. Eu não faço política. Se fizesse política, ia para um partido político. Mas, quer eu queira quer não, as minhas histórias são políticas, têm que ser. Não tenho maneira de fugir a isso.
Agora, o que acontece é que eu acho que o que eu gosto verdadeiramente de fazer é que… e acho que é um bocado o papel do cinema. Nós, de alguma forma, como no teatro, como no cinema, nós tiramos as coisas debaixo do tapete e pomo-las cá em cima e fazemo-lo confrontar com as pessoas. E eu acho que o papel da arte é um bocado isso. É beber da realidade, transfigurá-la e vomitá-la, no bom sentido, de novo para a realidade.
“Eu faço filmes para as pessoas”
Eu não faço filmes para mim, eu faço filmes para as pessoas. Pelo menos, penso assim. Faço filmes para as pessoas. E, obviamente, que nesta história há aqui um problema base que é o problema da corrupção e é um problema que o país atravessa. Um grande problema que o país atravessa. Dito por mim e dito por toda a gente, toda a gente reconhece isso. Mas depois há que ver essas nuances muito particulares, porque é que acontece.
Eu recordo-me, o “Impunidades Criminosas”, é um filme que eu faço em que a mulher, vítima de violência doméstica, mata o marido e depois ela passa o filme a ser perseguida pelo fantasma do marido. Então, o que acontece? Ela não matou o marido, ela matou-o fisicamente, mas não o matou na cabeça, vamos dizer assim.
A morte “é um caminho sem retorno”
Aqui, trata-se mais de um processo de, por um lado, saber dizer não, saber dizer quero a verdade. Aconteça o que acontecer, quero a verdade. Que é o papel dele e, por outro lado, também perceber que o caminho da corrupção é um caminho sem retorno. É um caminho sem retorno: ou você para isso a seu devido tempo ou, se você não para isso, o seu destino será a morte.
E, quando eu digo a morte, estou a falar a morte do ponto de vista simbólico. Quer dizer, porque são processos sem retorno e o país sofre essa conflitualidade. Ou para, ou o país se autodestrói. E, na verdade, há muitos sinais de autodestruição precisamente por não conseguir parar. Ok, vai dizer que é um ponto sem retorno? Eu não sei, acho que não. Acho que há uma possibilidade de retorno. Acho que o que se passou em termos históricos, da independência, etc., é História e é sagrado. Aconteceu, pronto. Agora, fecharam-se ciclos, abriram-se outros ciclos. Vamos ver o que acontece. Agora, a minha função como cineasta é estar atento ao que se está a passar e colocar isso à discussão das pessoas.
Muito obrigado.
Conclusões sobre O Ancoradouro do Tempo
Nesta entrevista a Sol de Carvalho pudemos saber um pouco mais sobre o seu filme “O Ancoradouro do Tempo”. Esta nova longa-metragem surgiu de um processo de colaboração entre o realizador e o escritor Mia Couto. A eles juntou-se ainda o escritor José Eduardo Agualusa como script doctor do argumento.
“O Ancoradouro do Tempo” é um filme integralmente filmado em Moçambique. Sol de Carvalho optou por isolar os seus atores numa fortaleza dando todo um significado às paredes do local e aos objetos das personagens.
Em “O Ancoradouro do Tempo” assistimos a um policial invertido onde as personagens se dão como culpadas de um assassinato e não é importante para os autores sabermos quem é o verdadeiro assassino. No fundo, o que interessa é que foi a corrupção que matou Vasto Excelêncio. O filme traz algumas metáforas na imagem e na construção da montagem. Isso dá-lhe todo um significado próprio que torna o filme reflexo da própria realidade moçambicana.