©Três Vinténs

Entrevista | Marta Pessoa e a ‘Donzela Guerreira’

Protagonizado pelas actrizes Anabela Brígida, Dina Félix Costa e Joana Bárcia, exibido no IndieLisboa’19, ‘Donzela Guerreira’, um misto de documentário e ficção é também um dos filmes portugueses mais bonitos desta estranha temporada. A MHD aproveitou para conversar com a realizadora, agora que o filme chega finalmente às salas. Estreia nas salas nacionais de cinema na próxima quinta-feira, 5 de novembro.

Marta Pessoa nasceu em Lisboa, em 1974 no ano da Revolução de Abril. Aos 10 anos descobriu sozinha a literatura portuguesa, porque não havia uma grande biblioteca lá em casa: Sophia de Mello Breyner, e outros grandes escritores Garrett, Herculano, Eça de Queiroz e mais tarde Miguel Torga, porque faziam parte do programa da escola; e claro as suas maiores influências em ‘Donzela Guerreira’, este seu novo filme: Maria Judite de Carvalho (‘Tanta Gente Mariana’) e Irene Lisboa (‘Esta Cidade!’). Contudo, a educação de Marta e por influência dos pais, esteve sempre mais ligada ao cinema do que à literatura. Estudou na Escola Superior de Teatro e Cinema, e desde 1996 que tem trabalhado como directora de fotografia em documentários e filmes de ficção. Realizou, as curtas-metragens ‘Dia de Feira’ (2004), ‘Alguém Olhará Por Ti’ (2005), ‘Manual do Sentimento Doméstico’ (2007), ‘Bolor Negro’ (2015) e os documentários ‘Lisboa Domiciliária’ (2009), ‘Quem Vai à Guerra’ (2011) e ‘O Medo à Espreita’ (2015). Em 2013, criou a produtora Três Vinténs juntamente com Rita Palma e João Pinto Nogueira.

Donzela Guerreira
©Três Vinténs | Anabela Brígida em Emilia Monforte.

‘Donzela Guerreira’ é a quarta longa-metragem de Marta Pessoa, e um filme que cruza a cidade de Lisboa, primeiro dos anos 40 e depois 50 e 60, com a história da literatura portuguesa do séc. XX. Sobretudo com a obra de Maria Judite de Carvalho e Irene Lisboa, que como diz  a realizadora, não tiveram ‘um final feliz’, porque não tiveram tanta visibilidade como os escritores-homens do seu tempo. Isso não se deve à sua falta de talento para a escrita, mas a um ‘mal do século’ e a uma imposição da ditadura salazarista: a descriminação das mulheres. O medo estava à espreita, usando quase o título do filme anterior da realizadora, pois poucas mulheres arriscavam a sua afirmação e diferença. Foi por isso que a obra das duas autoras, especialmente a de Maria Judite de Carvalho, reflecte essa obscuridade numa cidade de quotidianos tristes e rotineiros, de ruas e casas onde famílias resignadas e mulheres solitárias passam os dias. É à volta mesmo desta Lisboa alegre e triste que assim permanece por várias épocas, que Marta Pessoa constrói este ‘Donzela Guerreira’. Emília Monforte (Anabela Brígida), a personagem principal é uma escritora, solteira sem nenhuma relação sentimental, à beira dos 40 anos, empregada num jornal, a viver num quarto alugado, não tem capacidade financeira para manter a velha casa alugada da família, porque entretanto, perdeu os pais. Ela é ‘a voz, a construção, a memória e o desejo do filme’. Estamos em 1959 e, apesar de Emília ter publicado um romance com um contraditório título para o tempo, ‘As Mãos Quietas’, em que as mulheres tinham a supremacia no trabalho manual, nada indica que a vida desta doce mulher de uma beleza subtil fosse mudar. O ponto de partida da narrativa do filme vem do ‘Romanceiro’ de Almeida Garrett, o poema inspirado no mito literário europeu da rapariga da era medieval, que na existência de um varão, veste-se de homem e vai à guerra. É a ‘Donzela Guerreira’ que dá mesmo o nome ao novo filme de Marta Pessoa, em que nenhuma das três heroínas se veste de homem, mas onde em todas há uma tentativa de superação e afirmação de género. De qualquer modo a donzela que tem de passar por homem para ir combater não é propriamente o melhor exemplo de emancipação feminina, pelo contrário: é uma mulher que para se assumir, tem de se esconder atrás do papel de homem. É por isso que essas três belas mulheres, e sobretudo Emília, não mudam mas também não querem seguir as regras do jogo, impostas pela sociedade conservadora e salazarista.

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O resultado do filme baralha também as regras do jogo da narrativa cinematográfica, embora de alguma forma linear, sendo no fundo uma ‘receita’ de vários ingredientes, ou seja de três harmoniosos encontros: literatura, arquivo de imagens e a palavra, que se transformam em matéria plástica e sonora. Lisboa é a outra das personagens do filme (ou antes a personagem principal), habitada por estas figuras, pelas suas vidas e por outras pessoas ausentes com que se cruzam ou partilham sentimentos: a locutora de rádio da voz doce (Dina Félix da Costa), a criada Etelvina (Joana Márcia), a escritora emergente Emília Monforte (Anabela Brígida), que não vai passar disso mesmo, emergente. No entanto, também de algumas personagens  que nunca vemos, os pais de Emília, sobretudo o pai que tem uma enorme influência na sua vida, o ex-noivo Luís e a amiga Gracinha; bem como Olga, a femme fatal, a mulher que acabou por casar com o Luís, um figura de luz e sombras que parece saída de um daqueles film noir americanos da época. No entanto, a Lisboa que nós amamos, apesar das alterações que sofreu ao longo dos anos, está no centro do drama. Marta Pessoa reconstruiu-a cuidadosamente utilizando imagens de arquivo, manipulando-as por vezes ou provocando descodificações e evocações desse próprio acervo para encontrar os lugares de Emília e das suas histórias reais ou inventadas. Lisboa, é de facto uma cidade amada e parece quase imutável no tempo na representação desses lugares: o Terreiro do Paço sem carros, Cais do Sodré, o Jardim do Príncipe Real, até o Quiosque do Oliveira, o banco do jardim vazio. A casa onde a Emília aluga um quarto, é uma recriação possível da casa da família de Marta Pessoa, que viveu junto à Praça do Chile nos anos 40 e 50. ‘Donzela Guerreira’ é por isso também um pedaço de uma história real na ficção, povoada de alegrias, tristezas e mistérios, contados pela Emília, a escritora, inspirada nas figuras de Maria Judite de Carvalho e Irene Lisboa, mas obviamente uma figura de ficção. Na voz de Emília está a cidade, que se vê e ouve, sítios para ir como o Teatro Apolo que não existe mais e outros que mudaram de sítio, — como o tritão Neptuno que mudou da Praça do Chile para a Estefânia, e na Praça do Chile está agora a estátua de Fernando Magalhães — recantos de vida doméstica, sons, murmúrios, músicas e ‘valsinhas’ da época, tilintares e ruídos que julgávamos esquecidos, mas que ainda permanecem, que reproduzem a emoção e memória da cidade. Há ainda a materialidade real de um estúdio de rádio à antiga, de um quarto alugado nas Avenidas Novas, dos recantos de uma casa de infância, do retrato por Herculano de um homem vulgar, que fazem parte da memória fundadora de Emília e da sua história afectiva. Ests é a contracena que se oferece à voz da protagonista. ‘Donzela Guerreira’ é um filme ora technicolor, ora a preto e branco, sobre a cidade de Lisboa e uma mulher que apesar da sua docilidade não hesita em ir à luta para se emancipar e afirmar como escritora. Resumindo, este filme é uma declaração de amor à literatura, a Maria Judite de Carvalho e Irene Lisboa, mas sobretudo à cidade de Lisboa, e uma homenagem a todas as figuras de ontem e hoje que não se conformam com as regras do jogo e os preconceitos da sociedade. Estreia nas salas nacionais de cinema na próxima quinta-feira, 5 de novembro no Cinema City Alvalade.

Donzela Guerreira
©Três Vinténs | A história de uma escritora e das suas memórias.

Emocionado e contente com o filme, até o vi duas vezes, mas um pouco armado em ‘entrevistador-technicolor’, lá fui ter com Marta Pessoa ao Príncipe Real, um dos lugares do filme, nesse dia particularmente barulhento, ausente dos agradáveis sons da cidade. Contudo, a conversa correu muito bem e foi muito inspiradora.

MHD: O título do teu filme, ‘A Donzela Guerreira’, vem de um velho mito da literatura. Temos três donzelas, mas em vez de se vestirem como homens e partirem para a guerra, são todas tão femininas, e de uma exemplar doçura e fineza. Não há aqui uma contradição?

Marta Pessoa: A inspiração para o título vem do ‘Romanceiro’, do Almeida Garrett, aliás como de outros escritores românticos mencionados no filme, e que de facto eram mais apreciados pelo ‘pai’ do que pela ‘donzela’. Ao contrário do ‘Romanceiro’, as três donzelas não querem mesmo passar por esse processo de androginia.

MHD: Efectivamente as mãos delicadas dessas mulheres estão sempre presentes desde o início, ao longo do filme e sempre a mexer, mesmo aquelas que são referidas das empregadas de balcão. No entanto, o romance da Emilia Monforte chama-se ‘As Mãos Quietas’. Porquê?

MP: Exactamente por isso, por as mãos estarem sempre a mexer. As tarefas das mulheres dessa época estão identificadas com o trabalho manual de donas-de-casa: cozinhar, cozer, bordar, escrever, etc. Um dos meus maiores traumas é que não consigo fazer nada com as mãos, como faziam a minha mãe ou a minha avó. No caso da literatura feminina dessa altura da ditadura, ou de qualquer outra actividade artística ou profissional que pudesse ser desenvolvida pelas mulheres, era imediatamente esquecida ou não apresentava a visibilidade que tinha se fosse feita por homens.

MHD: É muito curioso começar com uma entrevista de rádio, onde se conversava e que já não existe: a radio da palavra. Porque lembras-te de começar assim, com esse dispositivo radiofónico? Assistimos a toda a entrevista e só vemos a cara da Emilia no final,  como se fosse uma revelação. Porquê?

MP: Vamos imaginar que estávamos fazer a construção de uma escritora, de uma dona-de-casa, esposa ou mulher-de-alguém. Neste caso era de uma escritora que queria ter a sua actividade literária e de facto naquela altura eram as mulheres as mais convidadas para os programas de rádio, para as sessões de lavores, para as conversas, para as revistas e suplementos femininos dos jornais da época. E foi por aí que decidi montar aquela entrevista radiofónica porque tenho um certo carinho pela personagem e por essas conversas de rádio, que na verdade funcionavam mais ao nível do bordado. De facto o espaço das mulheres era a rádio, onde havia uma espécie de ‘entrevistadoras-technicolor‘.

MHD: O filme faz uma grande ligação da imagem com a literatura portuguesa: Garrett, Herculano, Camilo, Eça de Queiroz e depois, mergulhamos no universo literário feminino de duas escritoras: Maria Judite de Carvalho e Irene Lisboa. Dizes que a História da Literatura Portuguesa, ‘não lhes deu um final feliz’. Porquê e porque te inspiraste nelas?

MP: Para mim é uma grande felicidade revelar estas duas escritoras, pois elas, não têm a visibilidade que merecem na Literatura Portuguesa. Até dada altura a obra da Irene Lisboa estava mais ou menos acessível, agora voltou a desaparecer. Da Maria Judite de Carvalho (1921-1998) levei quase 20 anos para conseguir todos os livros dela. É incrível porque quando acabei de comprar o último livro, de uma edição antiga, foi publicada a obra toda. Digo que elas não tiveram ‘um final feliz’, refiro-me claro à sua falta de visibilidade e espaço. Mas não aconteceu só com elas. Há imensas mulheres-escritoras dessa época com imenso talento, que ou escreveram pouco porque não havia espaço ou outras que escreveram mas não foram editadas, como por exemplo a Cecília Correia e depois do 25 de Abril, a Olga Gonçalves, Isabel da Nóbrega, e outras. A própria Maria Judite de Carvalho teve de passar pelo jornalismo, pelo Diário de Lisboa. O lado triste da Maria Judite de Carvalho era ela própria, a sua escrita e as suas personagens. No caso da Irene Lisboa (1852—1958), também tem a ver com a época em que viveu. Para mim ela viveu até uma situação mais dramática. Foi pouco editada, nasceu numa altura em que parecia que as mulheres se iriam libertar e iriam ter um papel importante depois da I República, mas depois a ideologia do Estado Novo consegui esmagá-las até à invisibilidade. A Irene Lisboa, era professora primária, por questões políticas não editava. A primeira edição de ‘Esta Cidade!’ (1942), é de autor e só finalmente em 1958 depois de passar uma espécie de exílio no seu próprio país, e já acarinhada por muitos amigos do meio literário, acabou por morrer. Se pensarmos na literatura portuguesa do século XX, a que nos vem logo à cabeça é a Florbela Espanca, que só foi também editada depois de morrer. Havia de facto uma série de condicionantes mas a maior era de facto a ditadura salazarista. A minha relação com suas duas escritoras a primeira a Irene Lisboa começou na escola, porque fazia parte do programa, como aliás Alexandre Herculano, Miguel Torga. Acontece até muitas vezes, ficarmos traumatizados com muitas das leituras obrigatórias. Mas não foi o caso da Irene Lisboa. Descobri-a começando pelos contos da infância, que na verdade eram lidos já muito tarde, no ensino secundário. Estou-me a lembrar daquele ‘As Aventuras da Rosalina’, que deu a canção do Fausto. E a Irene Lisboa foi-me sempre ‘picando’, curiosamente até na dificuldade em descobri-la. Nasci em 1974, e descobri a literatura aos 10 anos. Há pessoas que os pais têm bibliotecas, mas a minha educação passou mais pelo cinema, tive que andar à procura por mim própria dos livros nos depósitos e foi assim que também descobri a Maria Judite de Carvalho. Comecei pelo ‘Tanta Gente Mariana’ e foi sempre uma descoberta. Curiosamente a Maria Judite de Carvalho admirava o trabalho da Irene Lisboa. Se me permites vou dar um salto para falar de uma outra coisa: há mais de dez anos tentei adaptar ao cinema o ‘Tanta Gente Mariana’. Havia a questão dos direitos de autor, que pertenciam ao Urbano Tavares Rodrigues e à única filha de ambos. Pedi-lhes autorização e fiz a adaptação. E não tive financiamento. Acabou por ficar assim meio para o lado, mas as coisas nunca ficam bem resolvidas para mim, além de ter ficado um pouco frustrada e na dúvida, pois passei por todo aquele complexo processo de uma adaptação literária ao cinema. Fiquei sempre com aquela de como é que não se tinham interessado por este livro, pela minha adaptação. O livro é muito interessante, podiam ao menos dizer-me: a sua adaptação não presta, qualquer coisa assim. Senti mesmo que havia um grande desligamento e portanto deixei-o para ali ficar…até agora.

Donzela Guerreira
©Três Vinténs | Os retratos das criadas com nomes de flores.

MHD: Ainda pensas em retomar esses projecto?

MP: Bem, nunca se sabe….?

MHD: No teu filme há também uma espécie de contaminação entre o documentário e a ficção. Qual é na verdade aquele que se sobrepõe um ao outro (a realidade ou a ficção)? Além de haver certamente muito trabalho de pesquisa de arquivo, algumas coisas que decerto estão relacionadas contigo ou com as memórias da tua família ou da Rita Palma, que escreveu o argumento?

MP: Comecei não por um guião, mas por um simples texto que se refere no filme à relação da protagonista com o pai. Era apenas a história da relação pai-filha e nessa altura nem sequer estava a pensar na Maria Judite de Carvalho ou na Irene Lisboa. E comecei a passar esses textos sem grande pretensão à Rita(Palma). Ela pegou nesses textos, mas não foi propriamente um processo de escrita conjunta. Tudo o que escrevi ela sofreu imenso a tentar alterar aqueles textos algo atabalhoados e começamos a conversar sobre eles. De facto a Rita Palma conhecia bem a obra da Maria Judite de Carvalho e não tão bem a da Irene Lisboa. E começamos naquele processo do lê isto, lê aquilo….mas de facto o filme também tem algo a ver com a minha família. Conheço mal a história da minha família, mas a dada altura a minha avó viveu em Arroios, junto à Praça do Chile. Há uma parte do filme em que a Emilia vai viver para um quarto da casa da Dona Clara. Ora bem essa casa é exactamente como imagino (ou ‘ficciono’) a casa da minha avó que nunca vi. E de que, nem sequer há fotografias do interior. Mesmo o meu pai não se lembra nada como era a casa, diz que era uma casa com quartos e corredores. A minha avó contava que tinha muitos bichos em casa. O meu pai foi de facto um filho tardio, as fotografias são tal e qual a fotografias dos meus avós e havia a história das criadas. Os meus pais são primos direitos e às vezes haviam umas conversas tia-sogra, prima-primo, e a minha avó tinha um monte de criadas que não faziam nada, só gostavam muito de conversar. Mas as criadas estão também muito nos livros da Irene Lisboa, nas casas daquela zona. Ela tem uma personagem real que vivia na Praça do Chile. A minha avó, que era muito ‘gaiteira’ devia-se ter certamente cruzado com a Irene Lisboa ou com essa personagem. Era esse lado dos bastidores, das criadas, de um mundo virado para dentro, das raparigas pobres vinham para Lisboa, que viviam praticamente nas cozinhas e nas escadas de incêndio desses prédios, que quis mostrar no filme.

MHD: Lisboa a cidade, também é a protagonista do teu filme. Curiosamente os lugares de Lisboa que filmas (pode ser impressão minha…) não estão assim tão diferentes: estão lá os edifícios os lugares e curiosamente até os sons da cidade. Falta-nos o belíssimo  Teatro Apolo, que já não existe. Acho que consegui reconhecer quase todos os lugares. Isto foi propositado…querias mostrar uma Lisboa que permanece apesar de tudo inalterável?

MP: Sou lisboeta e tenho uma relação complicada com a minha cidade. Qualquer lisboeta e não estou a generalizar muito se disser que vivo como muitos, entre a fúria e o amor constante. Sempre passeie muito pela cidade a pé e sempre fui dar muito ao rio. É uma espécie de atracção, as pessoas vão descendo, vão descendo até ao rio. A Maria Judite de Carvalho em ‘Tanta Gente Mariana’, descreve muitos percursos que vão dar ao rio. Não foi propositado mostrar esse lugares que são reconhecíveis  ainda hoje, mas antes que fizessem sentido na história e fizessem as ligações com a personagem da Emília. E muitas coisas foram puras investigações. Pode existir isso de uma forma inconsciente em relação a esses sítios, mas enfim… o Teatro Apolo descobri-o quase por acaso, aliás como a sua história. Chamava-se primeiro Teatro do Principe Real — porque foi edificado em homenagem ao rei D. Carlos, embora estivesse localizado na esquina da Rua da Palma. Foi demolido em 1957. À procura de imagens do Príncipe Real apareceram-me as imagens do Teatro Apolo. Se calhar existiu mesmo essa ideia de me aproximar a sítios que de facto não se alteraram muito, nós é que andamos sempre a queixarmo-nos. Mesmo com as obras e demolições há de facto uma Lisboa que permanece.

Donzela Guerreira
©Três Vinténs

MHD: Há uma frase no fim que amei, além da canção do Tony de Matos: ‘Lisboa Acordou’ tema de filme que adoro: ‘Rapazes do Táxi’, do Constantino Esteves (1965/67): ‘Namorar é ser viajante na nossa cidade…’ de quem é esta frase???

MP: Foi a Rita Palma que a escreveu. A partir do momento em que se começou a escrever o argumento, abandonamos os livros da Maria Judite de Carvalho e da Irene Lisboa. Mas depois há aquelas coisas que nos entram muito na cabeça. Se vem de algum lado e com a maior das inocências, é da cabeça da Rita Palma. A música fui eu que a descobri. Para além das músicas desses filmes, a do Tony de  Matos que referes ou do Francisco Alves, que adoro, elas evocam e são símbolo de uma Lisboa e de personagens que nos puxam para ela. Também gosto muito do filme ‘Os Rapazes do Táxi’. (riso). Há outra coisa que liga muito bem com Lisboa que é a música barroca de Vivaldi. Não é a primeira vez que uso Vivaldi. Já tinha feito um filme pequenino sobre Lisboa, chamado ‘Manual do Sentimento Doméstico’(2007), que tinha música barroca e também essas ‘valsinhas’ brasileiras dos anos 30 do Francisco Alves (‘Só Nos Dois no Salão’), que também aparece em ‘Donzela Guerreira’. Elas dão aquele rodopiar, como quando encontramos as pessoas, as ruas e os locais vistos nas fotografias. Lisboa é uma boa cidade para dançar a valsa.

MHD: A dada altura há um diálogo ou um discurso que define de uma forma bastante reacionária e machista, o retrato da mulher perfeita. Onde é que o encontraste?

MP: Foi mais uma que a Rita Palma escreveu. Bem é quase um segredo a fonte de inspiração desse retrato de uma mulher perfeita. Foi uma sugestão minha de leitura à Rita, pensando que quase de certeza que a Emilia Monforte pela sua condição, pela sua forma de viver e ao escrever sobre as outras mulheres se inspiraria nesse conto. E este conto é que me vai meter em ‘águas-ardentes’. Não sei se deveria estar a dizer isto, mas pode ser assim em ‘meio-off-the-record’? Foi de facto inspirado no ‘Retrato de Mónica’ da Sophia de Mello Breyner.  Disse à Rita que podia haver a meio do filme uma coisa que se assemelha-se a algo que a Emilia estivesse a escrever. Assim como quando entramos nas ‘Flores do Chile’, tínhamos que escrever sobre as criadas. Era preciso um texto que criasse como que uma contradição. No caso de ‘Retrato de Mónica’, existiu mesmo essa contradição, pois dizem que até das amigas da Sophia de Mello Breyner ficaram zangadas com ela por causa daquele retrato. No caso da Emilia Monforte, ela sabe que essa é um tipo de mulher que nunca foi, nem nunca irá ser. Quem é esse modelo de mulher é a Olga que se casa com o Luis, o seu ex-noivo.

Donzela Guerreira
©Três Vinténs | Joana Bárcia é a crida Etelvina.

MHD: Há uma espécie de mistério que passa no filme ou passou-me a mim pelo menos….quando Emilia vê a maravilhosa Etelvina na Estefânia entrar num prédio com um embrulho pardo debaixo do braço. Que mistério é esse, que surpreendeu a Emilia?

MP: A Emilia ficou surpreendida porque encontrou uma personagem que para ela era uma memória. Nesse momento descobriu que a Etelvina tinha outra vida para além da criada da casa dos seus pais. Aquela Etelvina que ela conheceu agora já só tinha lugar na ficção.

MHD: Afinal quem é a mulher que viveu duas vezes é a Olga do Luis ou a Etelvina?

MP: Pois não sei. Se calhar a própria Emilia Monforte é a mulher que viveu duas vezes.

MHD: As fotos das criadas com nomes de flores e da Emilia são geniais da Foto Aurélio na Praça do Chile. Este fotógrafo existiu mesmo?

MP: (Riso). Não não. As poucas fotografias que existem de casa da minha avó são tiradas por um fotógrafo da Praça do Chile, que não consegui perceber o nome. Mas é uma brincadeira: Foto Aurélio, porque o nosso director de fotografia é o Aurélio Vasques. Claro que existe uma relação muito especial dele com fotografia e com os retratos de estúdio. Se ele não fosse director de fotografia de cinema, imagino que poderia bem ser o Senhor Aurélio da Foto da Praça do Chile. Nessa altura havia muitos desses fotógrafos de estúdio que faziam aquele tipo de retratos. O meu pai e eu temos algumas fotografias da família desse tipo, tiradas nos anos 40.

MHD: A fotografia do Aurélio Vasques é magnífica. Como te lembraste dele para trabalhar contigo?

MP: Já tinha trabalhado há muitos anos com o Aurélio, quando eu era assistente de imagem dele, naquelas publicidades que nunca mais acabavam. E a nossa relação vem daí. O Aurélio começou entretanto a trabalhar mais como director de fotografia e convidei-o para trabalhar neste filme. Mas não foi ele que fez a direcção de fotografia na totalidade, pela simples razão de como o filme foi rodado. Ouve vários períodos de rodagem. A parte com as actrizes não foi feito numa semana nem em duas, mas num espaço de meses. Há algumas coisas de mais pormenor que fui eu mesma que as fiz até por uma questão prática.

MHD: A fotografia e a luz na cena no Terreiro de Paço é magnífica….

MP: Todas as cenas que foram com as actrizes foram feitas pelo Aurélio. Costumo dizer se houver alguém que não goste de alguma coisa, Aurélio diz que fui eu. Mas ele que fez essas cenas, falamos sobre a época, foi perfeitamente clássico no sentido da conversa porque as cenas não são assim tão clássicas. Já agora aproveito para dizer isto: o filme teve um percurso de financiamento muito curioso, aos bocados. Não foi fácil e tenho que assumir isso. Primeiro foi num concurso de 2016 com um mini-subsídio daqueles da Gulbenkian, algo que me tramou porque me obrigou a ter mesmo que fazer o filme e a filmar Lisboa, pensando como é que vou agora fazer uma filme de época passado nos anos 40? E tive que resolver isso. Foi tudo foi feito um bocado entre amigos para as coisas correrem bem.

Donzela Guerreira
©Três Vinténs | Dina Félix da Costa é a entrevistadora da rádio.

MHD: A entrevistadora-technicolor (Dina Félix da Costa), a Anabela Brígida (Emilia Monforte) e a Joana Bárcia (Etelvina), parecem-me um elenco perfeito. Porquê estas três actrizes e como conseguiste essa adequação tão perfeita aos papéis?

MP: Já tinha trabalhado várias vezes com a Anabela Brígida, que é sempre uma actriz muito disponível, generosa e que percebe perfeitamente o tempo das coisas. É sobretudo é flexível. Sabia que tinha aquele texto todo para ler e eu disse-lhe não te preocupes que não se vê a tua cara e quase não vais entrar. E foi-se gravando, gravando. Ela não modificou o texto como às vezes alguns actores fazem. Mas houve tempo e espaço para isso. Gosto muito da voz dela, tem uma voz muito bonita, com aquele lado infantil e leve. A Dina Félix da Costa já tinha também trabalhado com ela e é uma actriz completamente diferente. Aliás são as três completamente diferentes. A Dina está mais habituada à televisão, a outro ritmo, mas entregou-se completamente à personagem que fez com uma enorme facilidade e leveza, e de uma forma despretensiosa, sem preconceito e sem fazer qualquer tipo de leituras. Construiu na perfeição aquela pose. Há muito tempo que sou grande admiradora da Joana Bárcia, mas nunca tinha trabalhado com ela. A Anabela e a Joana são muito amigas e pedi-lhe para a convencer a fazer o meu filme, porque dava uma Etelvina perfeita. A Anabela como leu o texto todo, disse logo que claro que dava e que até já tinha pensado na Joana para o papel. E foi assim….

MHD: No filme há também uma enorme relação com as comidas e as receitas através da criada Etelvina. Para ti não se trata de cozinhar mas qual é afinal a tua receita para contares esta história…para fazer um filme com tantos ingredientes?

MP: Olha como diz mais ou menos a Etelvina, na sua receita: Quente mas não muito, açúcar quanto baste, cobre-se com baunilha ou com morango….(riso). Na verdade não tenho nenhuma receita. Tentei fazer este como fiz os meus filmes anteriores, pensando  até: a Gulbenkian vai-me obrigar a ter de entregar qualquer coisa (riso). Estou a brincar. Pensei pelo menos que tinha de fazer este filme com a maior liberdade possível e se houvesse alguma coisa que corresse mal, tínhamos que a fazer para a próxima de outra maneira. A receita é mesmo liberdade…e a receita da Etelvina, claro (riso). Só para concluir a receita da Etelvina vem de velhos livros de receitas reais. Ou antes do livro de receitas da avó da Rita Palma. E estas receitas não têm a ver com Lisboa, porque a avó da Rita é da zona de Aveiro. Naquela altura, as senhoras sabiam todas cozinhar muito bem, não precisavam das temperaturas, nem dos tempos nem das quantidades de ingredientes, já sabiam de cor a quantidade de açúcar e quando estava cozinhado ao ponto. E claro que a Etelvina apesar de analfabeta sabia aquilo tudo de cor e melhor que qualquer senhora de família. Eu jamais conseguiria cozinhar com uma daquelas receitas da avó da Rita, que segundo ela cozinhava tudo e tão bem.

MHD: Em jeito de provocação fazia-te só três perguntas, que se quiseres podes responder numa única resposta: Qual é o mal do século? Qual é a virtude fundamental num homem e numa mulher? Que gostarias de ser, senão fosses, o que és? Havia mais perguntas technicolor, mas deixo-as para os espectadores desvendarem no filme….

MP: Ah boa! (risos). És incrível porque a Emília não responde e eu vou ter de responder! (riso). Acredito que não me consigo livrar da maldade dessas perguntas. Na verdade, essas eram as perguntas que se faziam às escritoras nas entrevistas dessa altura nos programas de rádio, nas revistas, em que os críticos literários acreditavam que elas escreviam quase como os homens. Nem parecem mulheres….o mal do século é….o chamado ‘ainda andamos nisto’! Seja isto o que for….e essa da virtude não é muito fácil de responder, assim com uma piada. Vou ser como a Emilia: não respondo!

José Vieira Mendes

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