"Nome" | © Risi Film

Nome, a Crítica | Sana Na N’Hada traz a memória da Guerra Colonial ao IndieLisboa

“Nome,” o novo filme de Sana Na N’Hada, teve antestreia nacional no IndieLisboa, dentro da secção Rizoma. Trata-se de uma experiência audiovisual sobre a Guerra Colonial através de uma perspetiva poética com raízes na Guiné-Bissau.

Quando tinha somente 13 anos, Sana Na N’Hada alistou-se para combater na Guerra da Independência que havia de libertar a Guiné-Bissau do domínio colonial português. Passados uns anos, em 1967, ele seria parte de um grupo de jovens cineastas guineenses que foram para Cuba a mando do revolucionário Amílcar Cabral. Lá, Na N’Hada, José Bolama Cobumba, Josefina Lopes Crato e Flora Gomes aprenderam o ofício e a arte audiovisual, preparando-se para um projeto de documentação sem precedentes. Quando os realizadores regressaram à Guiné-Bissau, o seu trabalho de repórter capturou um momento histórico da descolonização.

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Em registo de 16mm, as filmagens englobaram horas sem fim de acontecimentos entre 1973 e 74. Tristemente, muito desse material se perdeu ou nunca foi revelado. O que sobrou, tem vindo a ser re-imaginado pelo realizador desde o instante da sua rodagem, representando uma fonte de estudo e recursos incalculável para todos aqueles que queiram explorar a luta pela independência guineense. De facto, podemos ver muitas das imagens que sobrevivem no esforço documental do cineasta, começando com projetos coletivos como “O Retorno de Cabral” e “Anós nô Ossá Lutá,” ambos lançados em 1976.

É impossível articular quão importante Sana Na N’Hada é num contexto de cinema anti-colonial ou, mais especificamente, na História da sétima arte dentro do seu país. Note-se que ele foi cofundador do Instituto Nacional do Cinema e Audiovisual da Guiné-Bissau e veio a colaborar com outros realizadores estrangeiros na sua exploração do continente Africano – destacam-se Chris Marker e Sarah Maldoror. Chegados os anos 90, ele expandiu o repertório para a realização de longas-metragens narrativas, dando início a um processo artístico que vem culminar em “Nome,” seu mais recente trabalho com estreia mundial no Festival de Cannes do ano passado.

nome critica indielisboa
© Risi Film

De chegada a Portugal com antestreia no IndieLisboa, a obra converge o filme de época, o sonho folclórico e um apelo à imagem de arquivo com permutações quase experimentais. “Nome” afigura-se em dois movimentos, durante a guerra e no seu rescaldo, tecendo também um retrato de crenças e tradições ancestrais na sua tapeçaria narrativa. Num patamar mais deslocado da ação central, testemunhamos um menino em luto pelo pai, levado à floresta para esculpir a madeira num rito pós-morte. No seio da natureza, ele põe mãos à obra sob a observação de um espírito que tudo vê e comenta, quase como personificando a proteção de antepassados em guarida do presente.

Mas, acima de tudo, “Nome” segue a sua figura titular, chamado em honra de outra pessoa no seu passado. O homem é um enigma e não é, parecendo completamente mundano num contexto de aldeia rural. Um dia, a chegada da bela Nambu desperta-lhe o desejo e uma paixão depressa deflagra entre os dois, não obstante a transgressão social implícita. Quando ela anuncia a gravidez, a desgraça abate-se e Nome foge antes que a comunidade o possa ostracizar. Ele vai na direção de Bissau e junta-se aos militares que lutam pela liberdade da nação. Só que a revolução não é idílio idealista e a utopia é um sonho. Regressado a casa, ele faz-se herói, sem saber que os fantasmas do passado lhe virão prestar contas.


No caso de Nambu, mais do que a tragédia do indivíduo, compreendemos o fado e o fardo das mulheres numa cultura patriarcal cujos laços com o passado exultam a irmandade, mas também o julgamento. Apesar de ser Nome quem vai para a guerra, a história de Nambu é mais violenta, manchada pelo derrame de sangue inesperado, pela gentileza de muitos e a crueldade contrastante de tantos outros. Sana Na N’Hada dá-nos a ver um melodrama guineense com desvios em teias de corrupção e desilusões políticas, boas intenções que se tornam insidiosas e uma cena final capaz de nos arrebatar o espírito e trazer lágrimas aos olhos.

Dizemos isso pois, não obstante o olhar duro que o realizador impõe à História da Guiné-Bissau em pós-guerra, “Nome” jamais perde um toque de esperança. Até no suplício do que vem depois – da violência, do parto, da perda, do amor e da revolução – o cineasta deixa espaço para o sublime. Se o filme se mostra ultrajado com o estado da nação, as destruições da tradição e transtornos ecológicos, fá-lo porque acredita na responsabilidade do povo guineense e na sua capacidade para alcançar aquilo pelo qual se lutou. Isso vê-se logo nos registos visuais escolhidos, especialmente o trabalho fotográfico levado a cabo por João Ribeiro sob a direção de Na N’Hada.

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© Risi Film

É cliché dizer isso, mas há, de facto, algo mágico nas visões que “Nome” possibilita ao espetador. Este é um dos filmes mais belos com produção portuguesa nos últimos tempos, levando os limites do digital além do que se pensaria possível. Na catedral da floresta, sente-se a visceralidade do cenário sem, no entanto, perder um toque de teatralidade em veia cerimonial. A história de amor entre Nome e Nambu começa na noite escura, seus corpos iluminados por sois invisíveis e impossíveis, pintados a ouro e bronze no breu de uma tela entre o abstrato romântico e o documento da realidade rural. Em guerra plena, o tempo parece congelar em âmbar, mais mito que História.

A poesia de Sana Na N’Hada vai além das novas filmagens, tanto no tom antigo que toda a fita promove como no uso do fluxo documental do passado. Muito do que melhor se faz em “Nome” depende do diálogo entre as imagens dramatizadas e o arquivo que o cineasta construiu há mais de cinquenta anos. Na montagem, colidem as texturas e, em certos momentos, até a película se parece desfragmentar numa explosão de fogo e luz enraivecida. Dá-se assim forma ao inefável, revelando o lirismo no olhar crítico, uma reflexão sobre o passado que não descura a plasticidade do grande ecrã.

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Esta abordagem multifacetada é prova da criatividade autoral que sustenta todo este “Nome,” cujo maior pecado será a desmesura da sua ambição. Mesmo assim, preferimos um filme com muito a dizer, com ideias para dar e vendar, quer sejam políticas ou estéticas, a algum drama sem sal. Além disso, há ferocidade no engenho, uma vontade ferrenha de criticar o caminho que tomámos até ao nosso presente e obliterar as ilusões de quem adocica a História. Contra a mentira de um colonialismo sem consequência cruel, “Nome” é uma chapada na cara para o espetador que ainda se deixe levar pelos nacionalismos nostálgicos.

Nome, a Crítica
nome critica indielisboa

Movie title: Nome

Date published: 31 de May de 2024

Duration: 118 min.

Director(s): Sana Na N'Hada

Actor(s): Marcelino António Ingira, Binete Undonque, Marta Dabo,

Genre: Drama, Guerra, 2023

  • Cláudio Alves - 75
75

CONCLUSÃO:

Entre a História ressuscitada em encenação moderna e as imagens reais do nosso passado, “Nome” invoca uma conversa preciosa sobre a Guerra Colonial e seu legado na Guiné-Bissau. Sana Na N’Hada volta a confirmar o seu estatuto como um dos grandes artistas audiovisuais do seu país, entregando um dos projetos cinematográficos mais belos dos últimos tempos.

O MELHOR: A conversa constante entre a fotografia de João Ribeiro e as documentações dos anos 70 que o próprio Sana Na N’Hada filmou na sua juventude revolucionária. Assim se aclama a fotografia, mas também a montagem deste “Nome.”

O PIOR: A estrutura bifurcada é um tanto desconcertante. A maior experimentação audiovisual está no primeiro ato, enquanto a retórica política é mais forte no segundo. Em certa medida parecem dois filmes suturados à força, a estoirar de ideias sem conseguir a coesão total.

CA

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