"Ascension" | © XTR

Ascension, em análise

Ascension” marca a estreia da cineasta Jessica Kingdon no panorama das longas-metragens. Esta obra documental está nomeada para os Óscares deste ano, na categoria de Melhor Documentário.

Apesar de retratar a China presente com calcinante candor, a primeira longa-metragem de Jessica Kingdon marca seu princípio e conclusão com um olhar para trás, para o passado. Na pesquisa para fazer o filme, a realizadora encontrou os escritos de um dos seus antepassados, o bisavô Zheng Ze, e entre eles descobriu o cerne da obra. Em 1912, durante a queda da dinastia Qing e chegada ao poder do Partido Comunista Chinês, o poeta escreveu sobre o paradoxo do progresso e, em certa medida, sumariou aquelas que viriam a ser os espinhos na rosa do sonho nacional.

Esse texto tinha o nome de “Ascenção” e assim também é o título do filme, ligando a expressão artística familiar ao longo de gerações. Tanto muda e tanto permanece imutável, as ansiedades de um país contínuas ao longo de mais de um século. Quiçá apelando a uma continuidade do sentido poético também, Kingdon construiu sua fita como um poema. Ao invés de usar a palavra, a realizadora tenta evitar declarações verbais. Sua caneta é a câmara, sua pontuação a montagem com que faz imagens colidir e do seu confronto extrai ideias.

ascension critica
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O tema é claro – o dito “Sonho Chinês” e o modo como se manifesta através de várias classes. Pelo prisma da hierarquia social, sua estratificação violenta, os ideais da inovação priorizada aparecem-nos desnudos, sua retorcida realidade exposta. Em essência, trata-se de uma montagem meio abstrata sobre o capitalismo selvagem que se faz sentir em todas as facetas da sociedade chinesa, um cosmos desumano dominado pela produtividade, pelo ganho, pela economia acima de tudo. O trabalhador deixa de ser pessoa e passa a ser visto meramente como mecanismo.

Uma das primeiras imagens que ilumina o ecrã transmite tal ideia através da distância e do contraste entre a figura humana e seu ambiente. Observamos um homem das limpezas no topo de um grande prédio. A arquitetura é luxuosa, mas a posição do trabalhador é precária. Ele está nos limites de uma piscina sem aparente contorno. Entre a vida e a morte, a água e o céu, o pé e a queda, a margem de manobra é minúscula. Contudo, não há música dramática ou qualquer gesto formal a indicar suspense. Pelo contrário, tudo é observado com pávida serenidade.

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Somos assim convidados a pensar criticamente nesta desconfortável apresentação, a refletir sobre a aflição vertiginosa em conflito com um sistema que recusa considerar o trabalhador enquanto alguém merecedor de empatia. Noutra poderosa composição, Kingdon mostra-nos uma influencer tirando fotografias num esplendoroso hotel. Contudo, a câmara não a captura só a ela. Na periferia da modelo, um jardineiro ajuda a preservar a paisagem de luxo que as redes sociais verão. Em certa medida, todo o filme é feito destas tensões, destes enquadramentos que ponderam a humanidade de todos os envolvidos, não só os protagonistas com capital.

O que surpreende mais é quanto Kingdon não demonstra um olhar enojado para com os perpetradores da opressão. Cada pessoa capturada pela sua câmara tem direito ao seu devido respeito e dignidade. A realizadora está interessada na crítica do sistema, o coletivo socioeconómico e político. O indivíduo é examinado, mas jamais lhe é apontado o dedo culpabilizante. De facto, até as estrelas da internet desse tableau no hotel são miradas com interesse humano. Somos testemunhas de como seu ofício é trabalho, como o entretenimento digital é um lavoro como todos os outros.

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Numa vertente mais abertamente satírica, o documentário salta da fábrica e da internet para uma esfera habitada somente por milionários e aqueles que os servem. O treino de criados é visto com assombroso rigor, traços de discurso colonialista trespassando nas ordens e preceitos. Há um desdém pelo traço asiático e uma celebração das monarquias europeias, a desigualdade feita fétiche. Momentos depois, ainda inflamados com questionamento político, o espetador pode ser direcionado para outra linha de montagem, desta vez de bonés vermelhos com slogans Trumpistas bordados.

Algumas das passagens mais memoráveis de “Ascension” vão além da figura humana para perscrutar quanto o objeto, só por si, pode conter uma reflexão sobre o ambiente que o produz. Uma longa sequência centra-se no fabrico de bonecas sexuais, manequins de silicone na forma feminina idealizada pelo cliente. Apesar do conteúdo potencialmente lascivo, há delicadeza na filmagem, uma valorização do operário e até do propósito do produto. Contudo, ver o carinho dado a esses corpos sem vida deixa o espetador inquieto. Porque são essas massas plásticas mais valiosas que as pessoas que os criam?

Ascension, em análise
ascension critica

Movie title: Ascension

Date published: 26 de March de 2022

Director(s): Jessica Kingdon

Genre: Documentário, 2021, 97 min.

  • Cláudio Alves - 85
85

CONCLUSÃO:

Lirismo cinematográfico dá de caras com um registo jornalístico em “Ascension” de Jessica Kingdom. Mirando o estado da China atual, a realizadora produz um hino ao trabalhador, um protesto contra sistemas opressores e uma inspirada sinfonia audiovisual. Dos vários filmes nomeados para o Óscar de Melhor Documentário, este é o mais audaz, arriscando a alienação e nunca apelando a qualquer tipo de sentimentalismo.

O MELHOR: A economia textual do filme. “Ascension” é inspirado em poesia e sua sensibilidade remete para uma procura do sentido por vias oblíquas. O discurso crítico, a fúria política, nasce de um ventre de cinema puro. Montagem e fotografia são reis no cinema de Kingdom e são os melhores elementos desta sua primeira longa-metragem.

O PIOR: A falta de informação clara pode resultar numa experiência confusa para alguma audiência sem noção das questões socioeconómicas ao rubro na sociedade Chinesa dos nossos dias. Admiramos a consideração dos cineastas pelos seus espetadores, o respeito à sua inteligência. Contudo, haverá aqueles para quem “Ascension” é um puzzle indecifrável.

CA

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