Ryan Coogler assina com “Black Panther” um dos melhores filmes da Marvel e um verdadeiro triunfo de cinema de ação e super-heróis, que se poderá vir a provar revolucionário, quer seja pelo seu foco afrocentrico, quer seja pela sua estética incomum.

“Black Panther” não é o primeiro filme de super-heróis com um protagonista negro. Afinal, “The Meteor Man”, a saga “Blade” e o horrendo “Catwoman” com Halle Berry vieram primeiro. Seria justo, contudo, dizer que é o melhor desta escassa coleção de filmes para além de ser também um dos melhores a alguma vez sair do muito celebrado Marvel Cinematic Universe. Talvez também não seja coincidência que “Black Panther” seja um dos filmes mais atípicos desse canon, por muito que as fórmulas e fragilidades do universo Marvel ainda se façam manifestar, especialmente no último ato da narrativa.
Veja-se, por exemplo, o modo como o argumento de Joe Robert Cole e Ryan Coogler quase que isola hermeticamente esta história do resto dos filmes da Marvel. Ao contrário das aventuras de Capitão América e Homem-Aranha, para mencionar só alguns, “Black Panther” nunca parece ser somente um episódio de uma série, afirmando-se como uma história individual. Esta é a trama de como o príncipe T’Challa de Wakanda sobe ao trono após a morte do seu pai e é confrontado, não só com a ameaça destrutiva do misterioso Erik Killmonger, mas também com as hipocrisias e problemas latentes às tradições isolacionistas da sua nação.

Graças à suja riqueza e avanços tecnológicos, Wakanda é uma espécie de Atlântida do continente africano, um paraíso de inovação escondido dos olhos do resto do mundo. Nem todos os seus habitantes concordam com as práticas secretistas que regem a nação, sendo a ex-namorada do príncipe um bom exemplo disso. Nakia é uma espécie de agente secreta que vive fora da bolha de prosperidade de Wakanda e se debate com a injustiça do seu povo, tão próspero e tecnologicamente superior, se recusar a ajudar as nações em necessidade à sua volta. Outra figura bem insatisfeita com tal regime é Killmonger, um homem com sangue real que cresceu nos EUA e conhece bem a opressão racista que as pessoas da sua etnia sofrem fora do paraíso de Wakanda. Só que, na tentativa de dar força à população preta oprimida, Killmonger é somente mais um imperialista que deseja centralizar em si o domínio global.
Uma breve descrição como esta torna logo claro que este é o filme mais ideologicamente complexo e politicamente ativo de todo o MCU. Afinal de contas, Coogler começou a sua ainda breve carreira com um filme sobre brutalidade policial e o seu toque autoral está bem presente em “Black Panther”. É verdade que a Marvel e especialmente a Disney têm por tradição apagado qualquer sombra de individualismo artístico mesmo dos mais visionários realizadores, mas, na batalha entre produtores e financiadores contra os criativos, Coogler parece ter ganho e o sucesso de “Black Panther” é um testamento à sua bravura cinematográfica.
Seriam precisos muitos ensaios para esmiuçar toda a carga política contida em “Black Panther”. O modo como Coogler posiciona as mulheres na sua história como barómetros de moralidade e padroeiras da prosperidade cultural é algo quase revolucionário no panorama de filmes de ação, para nada dizer de narrativas de super-heróis. A crítica ao imperialismo europeu e americano é acídica ao mesmo tempo que não impede o filme de ter a leveza humorística típica da Marvel, unindo esses dois impulsos em momentos tão divertidos como quando a irmã de T’Challa chama colonizador a um agente da CIA. No entanto, o elemento mais espetacular e politicamente eletrizante de “Black Panther” talvez seja mesmo a sua qualidade enquanto um objeto de entretenimento.
Representação é importante, mas o filme de Ryan Coogler não se fica pela simples representação. “Black Panther” é uma glorificação da cultura africana oriental, tanto em termos de narrativa como de casting e design. Já falámos um pouco dos elementos textuais, pelo que nos foquemos um pouco na componente visual. Este é, sem sombra de dúvidas, o mais belo filme do MCU e nem a inclusão de alguns efeitos especiais menos bons consegue detrair da qualidade em exibição. A cenografia de Hannah Beachler e os figurinos de Ruth E. Carter são milagres ostentosos que trazem ao grande ecrã uma estética Afrofuturista que é praticamente inédia em cinema. Não há palavras para descrever a variedade e glória do design de “Black Panther” mas convém dizer que nada disso funcionaria sem a contribuição de Rachel Morrison, a diretora de fotografia que com Coogler criou aqui uma série de imagens a rebentar de cor e que jamais parecem saturadas de ruído visual ou de alguma forma desarmoniosas.

Ainda falando de facetas formais, há que se celebrar a música do filme, com composições instrumentais de Ludwig Göransson e canções de Kendrick Lamar. Em termos musicais, a MCU esteve sempre atrás da DC, mas com “Black Panther” a situação mudou por completo. Também a montagem é exímia, sendo que toda a sequência coreana do filme é um dos grandes píncaros do cinema de ação recente. Enfim, a batalha padece do mesmo problema da maioria das obras da Marvel, nomeadamente demasiados efeitos digitais, demasiadas coisas a acontecer em simultâneo e a inclusão desnecessária de um elemento aéreo que só distrai do conflito principal.
Continuando a eterna comparação entre o filme e o resto do cânone Marvel, há que se esclarecer que “Black Panther” continua a tradição de ter fabulosos elencos de personagens e grandes atores a darem-lhes vida. Chadwick Boseman, por exemplo, traz a sua usual presença imperiosa a T’Challa, mas não deixa que a sua personagem seja demasiado distante ou fria. Angela Bassett é um milagre de glamour e dignidade monárquica como a rainha mãe, Letitia Wright e Winston Duke são carismáticas revelações, Daniel Kaluuya volta a provar que consegue transmitir oceanos de informação com um só olhar, Forest Whitaker é apropriadamente amedrontado por pecados do passado, Andy Serkis e Martin Freeman são agradáveis distrações em papéis pequenos e Lupita Nyong’o tem aqui a audição perfeita para ser a próxima grande Bond Girl. No entanto, são Danai Gurira e Michael B. Jordan que realmente elevam o filme.

Como a chefe da guarda real de Wakanda, Gurira é uma fusão inebriante de Grace Jones e Imperator Furiosa, trazendo tanta emoção como carisma de estrela de ação a um papel dissimuladamente simples. Mesmo assim, Jordan é a grande estrela do filme, afirmando-se como o melhor vilão cinemático da Marvel talvez o melhor supervilão que o cinema já viu desde o Joker de Heath Ledger. O grande trunfo do ator é o modo como ele interpreta Killmonger como o herói do seu próprio filme imaginário, deixando que a audiência percecione somente fugazes rasgos da loucura e crueldade nascida de anos de ódio e ressentimento. No final, quase que entendemos e concordamos com as ambições de justiça sangrenta de Killmonger, quase que torcemos por ele e quase que choramos a sua morte. Por essa e outras razões, “Black Panther” é o filme mais complexo do MCU. O grande milagre é que a sua complexidade em nada invalida o seu espetáculo ou valor como uma obra de bombástico e energético entretenimento.