Breve História de Uma Família, a Crítica | Jianjie Lin assina um Saltburn chinês
“Breve História de Uma Família,” também conhecido como “Brief History of a Family” no mercado anglófono, é a estreia de Jianjie Lin na realização. É um começo promissor para o jovem cineasta chinês e já lhe valeu vários prémios.
Comparar um objeto artístico com outros que tais é um cliché crítico e tende a menorizar as obras envolvidas. Contudo, de vez em quando, lá se encontra um projeto que praticamente exige essas comparações, até beneficiando delas. Assim é o caso de “Breve História de Uma Família,” a primeira longa-metragem do realizador chinês Jianjie Lin que nos chega como uma espécie de déjà vu cinematográfico. Afinal, há muito de Highsmith e seu Sr. Ripley na narrativa e ainda mais reflexos do recente “Saltburn” de Emerald Fennell. Estética e tematicamente, a analogia aos “Parasitas” de Bong Joon-ho também é difícil de ignorar.
Mas de que trata a obra em questão? “Breve História de Uma Família” situa-se na China contemporânea, onde nos deparamos com Shuo, um adolescente taciturno e de poucos amigos que, certo dia, leva com uma bola enquanto exercitava no campo desportivo e magoa o joelho. Wei, seu colega, vê o sucedido e insiste em ajudar o miúdo aleijado, dando início a uma cumplicidade incerta cuja base parece estar na pena, quiçá na caridade entre classes. Porque, ao contrário de Shuo, Wei vem de uma família abastada, esses privilegiados que fizeram fortuna numa China que mantém o governo comunista, mas se rende a valores mais próximos do capital.
O conflito de classes em cenário doméstico.
Gradualmente, Shuo torna-se na sombra do colega e convidado habitual em sua casa, um apartamento luxuoso cheio de arte moderna e decoração requintada. Também se torna num conhecido querido dos pais ricos, um casal afetuoso cujo desapontamento com o filho é mal-escondido, especialmente quando a comparação com o amigo é tão latente e difícil de ignorar. Em certa medida, trata-se de uma questão de hierarquias socioeconómicas, com a classe média que Shuo personifica sendo caracterizada pela ambição e um empenho no melhoramento próprio que aqueles que nasceram mais afortunados não sentem. Wei nunca tenta com tanta convicção, nunca se esforça assim, nunca sofre.
O filho pródigo vê-se assim ignorado, à medida que o amigo conquista o amor dos pais num jeito que parece demasiado deliberado para ser acidental. Com a mãe, Shuo apela à sua generosidade e melancolia, dando-lhe a atenção que o marido e o filho já não lhe concedem. Um simples ato como encorajá-la a comer a fruta preferida, mesmo que os outros não gostem, significa muito para a senhora. Em relação ao patriarca, a música clássica serve de interesse comum, mas serão as qualidades académicas de Shuo que mais o marcam. Não desajuda que, de vez em quando, lá o miúdo aparece com nódoas negras e contos lúgubres de uma mãe que morreu ainda ele só tinha dez anos e um pai alcoólico.
Quando esse bêbado morre misteriosamente, não será surpresa nenhuma que os pais de Wei queiram acolher o colega, quiçá até adotá-lo. Nesse sentido, “Breve História de Uma Família” diferencia-se de muitas narrativas semelhantes devido à sua especificidade cultural e política, situando-se numa China que vive o rescaldo de décadas em que cada casal só podia ter um filho. De facto, a certa altura, a intromissão de Shuo provoca conversas desconfortáveis entre os pais, a sombra de um aborto a pairar sobre a sua domesticidade atual, a felicidade presente uma constante lembrança do que podia ter sido, mas não foi.
Adotar o adolescente pobre poderia ser como uma expiação, uma segunda chance. Infelizmente, Wei não vê este teatro doméstico da mesma maneira e revolta-se contra o final feliz que seus pais e suposto amigo querem à sua revelia. Jianjie Lin ancora-se inicialmente na perspetiva de Shuo, mas rapidamente expande os pontos de acesso da audiência para com esta história. Os pais tornam-se coprotagonistas em direito próprio e, chegados os atos finais, até já Wei se assume enquanto alicerce tonal, sua paranoia infetando todos os aspetos da fita. É claro que “Breve História de Uma Família” jamais se mostrou especialmente esperançoso ou leve.
Uma overdose de paranoia e estéticas severas.
Estilisticamente, o filme exibe um controlo formal estonteante, muito estudado e severo, com o uso de superfícies vítreas e transições de iris em barda. Sentimo-nos encurralados nos enquadramentos que Jianjie Lin e o diretor de fotografia Zhang Jiahao concebem, enquanto as cenografias de Yao Xu proliferam simbolismos angustiantes pelo espaço doméstico. O som impressiona ainda mais, fortemente subjetivo, uma opressão insistente que une forças com a música igualmente enervante de Toke Brorson Odin. Além das qualidades audiovisuais, o quarteto de atores principais também merece aclamação, especialmente Guo Keyu e Feng Zu como os pais de Wei.
Voltando àquela comparação inicial, tudo isto eleva “Breve História de Uma Família” acima de exercícios mais ostentosos como “Saltburn,” e consegue fugir ao legado de Highsmith através das suas especificidades políticas. A ambiguidade com que se encerra o conto também ajuda, deixando a culpabilidade verdadeira de Shuo envolta em mistério até ao rolar dos créditos finais. Comparações com “Parasitas” são mais infelizes e tendem a iluminar os limites de Jianjie Lin. Apesar dos seus talentos, o cineasta ainda padece de alguns vícios juvenis como um apego a sequências de sonho e metáforas gritadas, uma monotonia de tons dramáticos e austeridade a resvalar na rigidez. Será algo a melhorar em projetos futuros, mas, para já, “Breve História de Uma Família” será suficiente para por o seu nome no mapa.
Breve História de Uma Família, a Crítica
Movie title: Jiating jianshi
Date published: 3 de June de 2025
Country: China
Duration: 100 min.
Director(s): Jianjie Lin
Actor(s): Sun Xilun, Lin Muran, Guo Keyu, Feng Zu
Genre: Drama, Mistério, Thriller, 2024
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Cláudio Alves - 7/10
7/10
CONCLUSÃO:
“Breve História de Uma Família” é mais uma estreia promissora de um realizador em início de carreira. Neste caso, trata-se da primeira longa-metragem de Jianjie Lin, cujas influências temáticas e estéticas devem muito à literatura de Highsmith, os filmes de Bong e Fennell, o legado e História da sua nação chinesa. De facto, é mesmo a especificidade política do conto que o eleva acima de tantos outros, enquanto o formalismo ferrenho ajuda a limar alguns aspetos mais juvenis do projeto. Mal podemos esperar para ver o que este realizador fará a seguir.
O MELHOR: O cenário doméstico, seu uso de painéis de vidro congelados no momento do estilhaço como um reflexo da família aparentemente perfeita, cheia de segredos e arrependimentos sob a superfície. Além disso, amamos o trabalho de Guo Key como a mãe de Wei, tão frágil com ternurenta, alienada e nunca alienante, pronta a amar e magoar com o seu amor.
O PIOR: As sequências de sonho, especialmente aquelas que dão uso a imagética da esgrima, são um enorme passo em falso. Fazem com que todo o projeto de “Breve História de Uma Família” pareça mais imaturo do que realmente é.
CA