Mais uma espantosa interpretação de Barry Keoghan © Amazon Content Services LLC

Saltburn, a Crítica | Sátira excêntrica de Emerald Fennell dá liberdade total a Barry Keoghan e Jacob Elordi

Depois de “Promising Young Woman” (2021), ou “Uma Miúda com Potencial”, a atriz, produtora e argumentista Emerald Fennell regressa com a sua 2.ª longa-metragem. “Saltburn” dá-nos a garantia de que o seu estilo como realizadora se está a consolidar a ritmo alucinante. O novo trabalho traz-nos uma vez mais ênfase no choque, prestações excelentes e para lá dos limites do confortável, mas também um compromisso frágil no que à verosimilhança diz respeito…

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A britânica Emerald Fennel era há muito uma figura familiar frente à câmara e atrás dela, como atriz, produtora e argumentista, por exemplo na arriscada e recompensante série “Killing Eve”. Todavia, foi em 2020 que Fennel entrou para o nosso radar e nunca mais desapareceu quando lançou o primeiro filme que escreveu e realizou. “Uma Miúda com Potencial”, protagonizado por Carey Mulligan,  é uma narrativa sem freios que explora as consequências devastadoras da ‘rape culture’ nas universidades norte-americanas e que através da hipérbole nos transmite impressões poderosas sobre a natureza insidiosa e duradoura do trauma. Por este filme foi nomeada na qualidade de produtora ao Óscar de Melhor Filme, para Melhor Realização e ainda para Melhor Argumento Original, tendo levado esta terceira estatueta para casa pela sua história genuinamente original e poderosa.

saltburn Amazon Prime Video
A deslumbrante propriedade de Saltburn | © Amazon Content Services LLC

Depois de anos muito repletos, com uma indicação ao Emmy pela sua interpretação como Camilla Parker Bowles em “The Crown”, e ainda uma participação especial em “Barbie” (2023) como a hilariante Midge, a Barbie grávida, Fennel regressa com mais um filme igualmente arrojado, embora não tão original quanto “Uma Miúda com Potencial”. E apesar de “Saltburn” ser um filme bastante imperfeito, a vontade de criar narrativas excessivas, exacerbadas, satíricas e inesperadas está a revelar-se uma verdadeira tendência na carreira de Fennell. Por tudo isso, abraçamos mais uma das suas criações, uma vez mais produzida por Margot Robbie e pela sua LuckyChap Entertainment.




“Saltburn” é uma longa-metragem que nos estimulou os sentidos e dividiu as sensibilidades. Esta é uma história de ‘Dark Academia’ que tem o seu arranque em Oxford (claro está) e a sua progressão numa enorme mansão na ruralidade inglesa, com direito a uma viagem no tempo até 2006/2007 e uma imersão na cultura Millennial vigente, da leitura conjunta de Harry Potter às músicas em voga nesse período. Pejado de nostalgia mas também de elementos que apelam à cultura pop do aqui e agora, como o casting de Jacob Elordi, que a certo ponto até se veste com um traje num baile de máscaras que nos traz à mente referências a sua ‘casa’ “Euphoria”, “Saltburn” é um cinema que parece ter sido feito para responder a certos desejos do público. Trocado por miúdos, é um filme perfeito para a cultura TikTok, alimentada pela Geração Z e parcialmente pela Millennial. Está repleto de frases de diálogo apelativas e chocantes que resultam na perfeição para a partilha online massificada e para a criação de memes.

Saltburn Jacob Elordi
Jacob Elordi como Felix Catton ©Amazon Studios

Com isso, não temos pretensão alguma no sentido de afirmar que “Saltburn” não é cinema, signifique isso o que significar. Como as tendências culturais recentes o pedem, o tal ângulo de “Dark Academia” (preferência por um estilo clássico, académico, focado nas artes, literatura e localizações associadas aos colégios e escolas de topo) é aqui visualmente envolvente e eficaz. No plano inaugural vemos, desde logo, a icónica biblioteca da Universidade de Oxford. A parti daí mergulhamos num mundo ligeiramente sombrio onde os ricos e poderosos chegam a esta escola através do nepotismo. A cultura de colégios privados e das elites impõe-se.




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O nosso protagonista é Oliver ou ‘Ollie’ Quick (Barry Keoghan, que precisamente em 2023 foi nomeado ao Óscar pela sua brilhante participação em “Os Espíritos de Inisherin”) um jovem bolseiro que acabou de chegar à Universidade, onde tem dificuldade em adaptar-se junto das elites académicas. Isto até se tornar amigo do belo e carismático Felix Catton (Jacob Elordi), um estudante rico e extremamente popular. Quando Felix se mostra receptivo à história de vida de Oliver, rapidamente se gera uma amizade profunda entre ambos que acaba por conduzir Ollie para um verão na propriedade de Saltburn, a majestosa mansão da quase aristocrática família Catton.

Eis que começa um sonho febril na forma de um verão inesquecível, que é tanto símbolo de perfeição, ânsia, como de podridão e desespero. A longa-metragem pauta-se por conversas tão desconfortáveis quanto deliciosas, pela representação física do desejo sem limites, pelo abraçar de desconfortáveis recantos da mente humana. Barry Keoghan, que deu já tanto de si, no melhor dos sentidos, em filmes como “O Sacrifício de um Cervo Sagrado” (2017) ou “The Batman” (2022), acede a novos níveis de desinibição e entrega.

Barry Keoghan no novo filme de Emerald Fennell
Barry Keoghan como Oliver Quick | ©Amazon Studios

Da sua psique à sua corporalidade, Keoghan entrega-se a ‘Ollie’ Quick sem quaisquer reservas e volta a reforçar o seu talento inato como um dos grandes do cinema britânico e norte-americano dos dias de hoje. Já Jacob Elordi (que poderemos ver brevemente em “Priscilla”) também deixa bem claro o porquê de tanto alarido em seu torno. As suas qualidades como estrela de cinema são inegáveis e “Euphoria” foi apenas o princípio de uma aventura que se antevê bem longa. Em papéis mais pequenos mas também abençoados com algumas falas irresistíveis temos Rosamund Pike (“Gone Girl”) e Richard E. Grant (“Memórias de Uma Falsificadora Literária”), os pais do magnético Felix.




Mas se este filme sabe habitar o género ‘Dark Academia’ de forma hábil, se tem performances memoráveis e cenas que serão discutidas durante algum tempo, e se até foi filmado com cuidado e preocupação estética, com ângulos dramáticos, e algumas sequências inundadas de um sedutor filtro vermelho cativante, qual é o seu problema? O que é que o impede de se tornar numa criação notável?

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A sua progressão narrativa, claro está. “Saltburn” é uma plataforma perfeita para a excentricidade de Barry Keoghan e tem vários instantes dos quais não nos esqueceremos tão cedo. Usa a música tão bem quanto “Promising Young Woman” e tem uma sequência final que escolhe a melodia perfeita para anunciar a sua resolução. Infelizmente, o que está ausente é o simbolismo e a dor bem real que encontrávamos no último filme de Emerald Fennell. “Saltburn” não nos pede apenas para suspender a nossa crença no real. Com o seu final e a sua sequência de eventos, pede-nos para desistir inteiramente de acreditar que as regras daquele mundo se aproximam sequer das regras do nosso mundo.

Saltburn na Prime Video
© Amazon Content Services LLC

Além disso, também não nos parece que Fennell teça grande comentário social ou político, ao contrário do que aconteceu no seu argumento vencedor do Óscar. A nova criação, novamente escrita e realizada a solo, é mais vazia na sua intenção. E sim, nem todos os filmes precisam de transmitir grandes ideias sobre a humanidade. Por vezes podemos estar simplesmente investidos numa jornada divertida. Neste caso uma que passa do repugnante ao irresistível com uma rapidez impressionante. E sim, “Saltburn” é uma viagem bem capaz de entreter. Contudo, e mesmo como sátira que suspende a realidade, há que admitir que a certo momento a lógica é atirada janela fora. Examinar o último ato do filme acabará sempre por trazer desilusão face ao produto final.

Mas e daí, não quer dizer que este verão na propriedade de Saltburn não tenha os seus méritos. Um gigante sucesso no final de 2023 e na Prime Video Portugal, onde estreou a 22 de dezembro, “Saltburn” foi criado para gerar partilhas, debate e fortes reações coletivas e assim o fará. 

Saltburn, a Crítica
Poster Saltburn 2023

Movie title: Saltburn

Movie description: A cineasta vencedora do Óscar Emerald Fennell traz-nos uma história perversa sobre privilégio e desejo. Com dificuldade em encontrar o seu lugar na Universidade de Oxford, o aluno Oliver Quick (Barry Keoghan) é atraído para o mundo do encantador e aristocrata Felix Catton (Jacob Elordi), que o convida para Saltburn, a enorme mansão de sua família excêntrica, para passar um verão inesquecível.

Date published: 28 de December de 2023

Country: EUA, RU

Duration: 127'

Author: Emerald Fennell

Director(s): Emerald Fennell

Actor(s): Barry Keoghan, Jacob Elordi, Rosamund Pike, Richard E. Grant, Alison Oliver

Genre: Drama, Comédia Negra, Thriller

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  • Maggie Silva - 67
67

Conclusão

“Saltburn”, com Barry Keoghan e Jacob Elordi, é inconstante em toda a sua excentricidade e pauta-se por um final caótico, vertiginoso e pouco credível mesmo no âmbito do seu próprio mundo. Não obstante, oferece-nos uma viagem alucinante, repleta de momentos inesperados e falas capazes de alimentar o discurso mediático durante semanas. Mesmo que falhe como obra coesa, não deixa de se assumir como guilty pleasure.

Pros

  • A prestação de Barry Keoghan merece todo o destaque. O ator entrega-se ao papel de tal forma que aceita fazer tudo e mais alguma coisa com a sua mente e particularmente o seu corpo. Uma cena improvisada em particular (num cemitério) diz-nos tudo sobre o seu talento e sobre a forma como habitou Ollie.
  • A promessa Jacob Elordi continua também a solidificar-se e neste filme repleto de queer baiting temos Elordi e Keoghan em perfeita sintonia e com uma química palpável. O quase toque enlouquecerá qualquer um, tal qual como Fennell o imaginou. Quando vemos Ollie com hastes de veado e Felix vestido com asas de anjo podemos mesmo considerar as alusões algo toscas na sua componente direta e descarada, mas esta componente descarada é precisamente o que tem vindo a tornar “Saltburn” num sucesso.
  • Alison Oliver como Venetia Catton – uma figura frágil, atormentada, mas também poderosa, em particular no seu último discurso. Quiçá esta seja a personagem com mais naunce em “Saltburn”.

Cons

  • Embora consigamos compreender que o arco de “Saltburn” foi pensado pela sua argumentista do início ao fim, a verdade é que a hipérbole torna-se insustentável a certo ponto. Certas personagens, como por exemplo a Elspeth Catton de Rosamund Pike, agem de forma pouco credível e não conseguimos aceitar as suas motivações. O próprio Ollie persiste como um mistério algo frágil.
  • Quanto ao final, e sem partilhar informação em demasia, não conseguimos aceitar as explicações que nos são dadas para a resolução. Meros fragmentos de realidade deverão ser aceites  como resposta para a progressão. Todavia, se os desmontássemos, não fariam sentido.
  • Será que, feitas as contas, o estilo cinematográfico dramático e as performances exuberantes escondem um argumento débil e algo plástico?
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