A escolha de Andrew Scott para o papel de Ripley não poderia ser o mais apropriado. ©Netflix Divulgação

Ripley, a Crítica | Um ensaio sobre a natureza do mal

O enorme talento do argumentista e realizador Steven Zaillian está finalmente de volta, com “Ripley”, a maravilhosa série de televisão da Netflix, a obra-prima do momento, que é uma notável adaptação do romance e do personagem, saídos da mente perversa da escritora de policiais norte-americana Patricia Highsmith.

“Ripley” de Steven Zaillian é sem dúvida a série de televisão do ano e a obra do momento já no vasto menu dos streaming. Creio mesmo que será bastante difícil retirá-la desse lugar privilegiado — tanto em termos de qualidade como do gosto uma audiência exigente — do restante ano televisivo e cinematográfico de 2024. Originalmente foi criada para a Showtime, mas a Netflix comprou-a chave na mão, lançando na sua plataforma, com este título que é o nome da personagem da adaptação de “O Talentoso Mr. Ripley” (“The Talented Mr. Ripley”), um romance policial publicado em 1955, que dá inicio a uma saga criada pela prolífica escritora de policiais Patricia Highsmith (1921-1995).

Ripley
O personagem de Tom Ripley (Andrew Scott) é um pequeno delinquente de Nova Iorque. ©Netflix

O TALENTOSO MR. ZAILLIAN

Porém, por detrás desta obra notável, que se pode considerar mesmo um verdadeiro monumento do audiovisual do século XXI, há um nome e um talento fundamental: o do realizador californiano Steven Zaillian, (n. 1953) que escreveu e realizou todos os oito episódios da série — uma primeira temporada, já que pode ter continuidade nos 4 volumes seguinte sobre o personagem — um cineasta que há uns 30 anos parecia que iria tornar-se um dos melhores do mundo e da indústria de Hollywood.

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Começámos a ouvir falar de Zaillian, já lá vai tempo, a propósito do seu primeiro filme, o belíssimo “Jogada Inocente” (no original “Searching for Bobby Fischer”, [1993]), a história de um menino-prodígio do xadrez, de 7 anos de idade, a quem incentivavam a tornar-se um campeão como o famoso Bobby Fischer, num filme protagonizado por Joe Mantegna, Ben Kingsley e Max Pomeranc — há pouco tempo estava disponível na Netflix e na Prime Video — que nunca chegou às salas portuguesas, mas foi lançado em DVD.

Alguns meses depois, Steve Zaillian ganhou o Óscar de Melhor Argumento Adaptado por “A Lista de Schindler”, de Steven Spielberg, um dos melhores filmes de sempre sobre o Holocausto, que tal como “Ripley” foi rodado, num maravilhoso preto e branco. Porém como realizador a sua carreira subsequente não correspondeu às expectativas levantadas na época, pelo menos quase até agora. 

VÊ TRAILER DE “RIPLEY”

UM FASCINIO POR ITÁLIA

Assim, Zaillian voltou à escrita e juntamente com David Mamet foi responsável pelo argumento do extraordinário “Hannibal” (2001), de Ridley Scott — onde a finura e a elegância da herança artística italiana já estavam bem presentes, como em “Ripley”. Mais tarde e finalmente, Zaillian aparece ligado a um projeto de grande envergadura: “The Night Of” (2016), uma das mais fascinantes obras para televisão que se fizeram neste século, transmitida então pela HBO.

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“The Night Of” é uma minissérie de televisão norte-americana do género crime e drama — baseada na série britânica “Criminal Justice” (2008-2009) — escrita por Richard Price e Steven Zaillian e realizada pelo próprio Zaillian e James Marsh, com John Turturro, Riz Ahmed, Bill Camp. Vale a pena recordar a sua base dramática, já que volta a ter algumas nuances de mistério, semelhantes  a “Ripley” e que se podem enfim, relacionar: Após ter passado a noite com uma mulher desconhecida, um homem acorda e encontra-a ao seu lado esfaqueada até a morte e é acusado de a ter assassinado.

A minuciosa investigação policial, acaba por denunciar as complexas relações entre os vários casos analisados pela polícia de Nova Iorque, procedimentos legais, sistema criminal e também faz um retrato do “feroz purgatório” da prisão da ilha de Rikers Island, no Bronx, onde os acusados são mantidos preventivamente, enquanto aguardam julgamento. Contudo, não podemos esquecer que Steven Zaillian foi também o argumentista de uma das obras fulcrais da história do cinema americano contemporâneo, que originou aliás a dinâmica de produção da Netflix: “O Irlandês” (2019), de Martin Scorsese.

Ripley
“Ripley’ é sem dúvida a série de televisão do ano e a obra do momento. ©Netflix

O MALÉFICO MR. RIPLEY

Voltando à série de televisão do momento, “Ripley”, para quem não conhece a história, nem nunca leu os livros de Patricia Highsmith, o personagem de Tom Ripley (Andrew Scott) é um pequeno delinquente, vigarista e falsificador de Nova Iorque que, por lapso do contratante, recebe uma estranha missão de um milionário (interpretado curiosamente nesta série pelo realizador Kenneth Lonergan) da indústria naval americana: viajar para a Itália com as generosas despesas todas pagas para convencer, o filho do magnata, o bon vivant Richard “Dickie” Greenleaf (John Flynn), a abandonar a boémia e indolência da vida numa pequena vila à beira-mar no sul da Europa e voltar para casa dos pais, para tomar conta dos negócios.

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Tom vai encontrar o homem que vai procurar, conquistar a sua amizade e “tornar-se nele”; só que infelizmente para os seus interesses e maus instintos, Dickie tem uma namorada americana chamada Marge (Dakota Fanning), que vive por perto, tão inteligente quanto bonita e um amigo chamado Freddie Milles (Eliot Summer), que viaja pela Europa e que logo que o conhece, olha-o com um certa desconfiança.

Ripley
Dickie de John Flynn e Marge de Dakotta Fenning são mais insuportáveis e arrogantes que os anteriores. ©Netflix

POTENCIAL DE ADAPTAÇÃO

Perfeita para uma adaptação ao cinema ou à televisão, a história do personagem Tom Ripley foi abordada logo em 1960, poucos anos depois da publicação do romance “O Talentoso Mr. Ripley”(1955), no filme “À Luz do Sol” (“Plein Soleil”), do cineasta francês René Clément, com Alain Delon no papel de Ripley e com Marie Laforêt e Maurice Ronet nas personagens de Marge e Richard “Dickie” Greenleaf, em escassas quase duas horas, de uma história carregada de sensualidade e suspense.

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Em 1999, o malogrado realizador britânico Anthony Minghella, regressou à história em “O Talentoso Mr. Ripley”, com Matt Damon no papel principal, com Jude Law e Gwyneth Paltrow, a completarem o triângulo, com conotações homoeróticas entre os três e uma excelente banda sonora, que vai de Charlie Parker a Miles Davies. Se este filme durava apenas 2 horas e 19 minutos, a série Netflix abrange cerca de oito episódios totalizando 7 horas e 24 minutos que, e tal como as 3 horas e 15 minutos de “A Lista de Schindler”, realizada igualmente, num perto e branco polido e suave, que não nos cansam, mas também não nos descansam.

Além de facto de “Ripley” ser uma obra de uma enorme beleza estética para os nossos olhos: leva-nos através da melhor arquitetura modernista primeiro de Nova Iorque e depois da monumentalidade clássica da bela Itália de Roma a Veneza, passando por Nápoles e Palermo, embora o drama comece na encosta da pequena vila de Positano, na costa Amalfitana, vila essa chamada na série de Atrani, localizada no sul de Nápoles. 

Andrew Scott
Acompanhamos com fascínio os crimes e ascensão social de Tom Ripley. ©Netflix

O “TENEBRISMO” DE CARAVAGIO

A composição de cada plano de “Ripley” é quase uma pintura ou uma fotografia de arte, já que raramente são utilizados movimentos de câmara: os planos são essencialmente fixos e muito bem enquadrados; tudo isto associado ou em parte da história ao “tenebrismo” das emblemáticas obras de Caravaggio que tornam ainda mais sinistro os ambientes e a relação com o estado de espírito e as intenções perversas do personagem principal, face à paleta televisiva em preto e branco neo noir.

“Luz é sempre luz”, diz a dada altura Tom Ripley — embora ele próprio esteja longe de ser uma personagem luminosa, muito longe disso — e as palavras deste diálogo não poderiam estar mais de acordo com o trabalho de Robert Elswit, o diretor de fotografia, um verdadeiro mestre que tem colaborado regularmente com Paul Thomas Anderson (de “Magnólia” a “Haverá Sangue”). Foi também nomeado aos Óscares, entre outros pelo seu trabalho em “Boa Noite e Boa Sorte’, de George Clonney, mais uma obra filmada num primoroso preto e branco.

O visual e o guarda roupa, dos anos 60, — quase sem fundo musical — combinam maravilhosamente com as personagens e sobretudo com os monólogos interiores e as cartas de Tom Ripley, um psicopata, sombrio e enganador, com muito mais sombras do que luzes e que apesar de tudo damos por nós a torcer para que não seja apanhado, porque isso significaria o fim do seu malabarismo vital e perverso e dos seus esquemas audaciosos.

Ripley
A série e a história de Tom Ripley passa-se sobretudo em Roma e Veneza. ©Netflix

O ROSTO DE RIPLEY

A escolha do irlandês Andrew Scott para o papel de Ripley também não poderia ser o mais apropriado, já que o premiado ator, além de um certo carisma para fazer de vilão, é conhecido pelas suas interpretações de maníacos e sociopatas, nas séries de televisão: o hot priest (o padre) de “Fleebag” ou o Professor Moriarty de “Sherlock”, com Benedict Cumberbatch. Scott dos três protagonistas conhecidos das adaptações da obra de Patricia Highshmit é talvez o Ripley mais próximo do original e portanto bastante mais hostil e expressivo do que os de Delon ou Damon. Dickie de John Flynn, consegue ser bastante mais insuportável e arrogante que os anteriores enquanto a Marge de Dakotta Fenning, parece mais inteligente e desafiadora que nas outras versões.

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Enquanto isso é dado mais realce e importância para o personagem de Freddie Milles, interpretado pelo ator/músico Elliot Summer, que desconfia de imediato da dupla personalidade de Tom. Ripley é um usurpador frustrado que vê aqui na reunião com estes personagens uma oportunidade de subir na vida e vingar-se dessa gente rica, ociosa, arrogante, supérflua e também de certo modo falhada nas suas pretensões artísticas: ele com o pintor sem talento, ela como escritora e fotografa de viagens e Milles como poeta diletante. Talvez por isso inconscientemente estejamos sempre a torcer por Tom Ripley e acompanhemos com fascínio os seus crimes e sua ascensão social, aliás bem representada e simbolicamente num anel.

Os atores italianos, embora secundários interpretam também personagens-chave na intrincada trama: o pequeno papel da porteira de Ripley em Roma, a signora Buffi, é maravilhosamente interpretado pela conhecida Margherita Buy (a atriz-fetiche de Nanni Moretti), ao passo que o finíssimo Maurizio Lombardi — ator e encenador teatral florentino — interpreta o Inspector Ravini; são os seus personagens, que acrescentam legitimidade à complexa trama e ao surpreendente resultado final. Não existem muitas cenas entre Ripley e Dickie — mas a crucial é incrivelmente bem encenada, filmada e sobretudo muito perturbadora — e em outras vimos Ripley sozinho, em frente a um espelho a ensaiar os seus álibis ou a escrever à maquina — aliás apetrecho que o segue sempre — as sua longas e falsas cartas. 

O Talentoso M. Ripley
O livro ou melhor os livros da saga de Patricia Highsmith que deu origem às adaptações de Tom Ripley. ©Amazon

IMPUNIDADE TOTAL

Notáveis nos jogos de palavras são os interrogatórios com o Inspector Ravini a vários dos personagens, como já disse o policia encarregado da investigação, que apesar da sua determinação se torna na espinha dorsal da trama e na impunidade de Ripley. Há também — desculpem-me o spoiler — uma pequena homenagem a um Ripley protagonizado uma vez por John Malkovich em “O Jogo de Mr. Ripley” (“Ripley’s Game”), baseado no terceiro livro da saga, num filme realizado por Lialiana Cavani, de 2002.

A presença do ator americano neste filme além de especial é também crucial, até para dar continuidade a outras possíveis temporadas da série. Recorde-se também que este terceiro livro da saga já havia sido adaptado anteriormente pelo cinema alemão como “O Amigo Americano” (1977) por Wim Wenders e protagonizado por Dennis Hopper e Bruno Ganz. Quanto a esta “Ripley” é uma obra de arte notável, que não é cinema, mas é muito mais do que uma mera série de televisão. Neste caso, que venham as próximas temporadas!

“Ripley”, a crítica | Um ensaio sobre a natureza do mal
Ripley

Name: Ripley

Description: Tom Ripley é um pequeno vigarista que se adentra no mundo da riqueza e do privilégio ao aceitar um trabalho na Itália. Mas, para aproveitar a vida boa, ele precisa criar uma teia de mentiras e crimes.

  • José Vieira Mendes - 95
95

CONCLUSÃO:

O grande apelo da história de “Ripley” não está apenas no que acontece ou no seu carisma amoral, perverso, e maléfico, mas em saber se o personagem consegue escapar impune a cada delito que realiza e continuar cometendo crimes, sem que a polícia o apanhe. É justamente aí que ‘Ripley’ (e o actor Andrew Scott) mostra(m) o seu talento, sendo capaz de gerar muita tensão especialmente em dois momentos cruciais: no perturbador terceiro episódio ou ao longo do quinto, que nos deixa profundamente inquietos. A direcção de fotografia (a preto e branco) de Robert Elswit é absolutamente espetacular e notável, além de esplendorosa realização observadora de Steven Zillian, carregada de metáforas visuais (escadas, o elevador…o olhar arrogante testemunho do gato da porteira) e sobretudo o ritmo de ‘cozimento’ lento, que fazem todo o sentido à medida que a série avança e as suas peças se vão encaixando, até ao desenlace e impunidade total que vai acabar por ter continuidade nos próximos episódios da saga escrita por Patricia Highsmith.

JVM

Pros

Além das notáveis interpretações do elenco, com destaque para Andrew Scott, esta série é dedicada a todos os amantes da Itália e da boa vida, que possuam uma certa e inconsciente imoralidade e uma certa atração pelo magnetismo de certos criminosos.

Cons

Toda a trama é ‘cozinhada’ em lume brando ao longo dos oito episódios com destaque para o terceiro e quinto, mas por favor tenham um pouco de paciência, porque todos os momentos, não nos cansam, nem nos descansam de forma nenhuma.

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