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Saltburn, onde os ricos e famosos não têm onde cair mortos…

“Saltburn” o mais recente filme da realizadora, argumentista, produtora e actriz Emerald Fennell protagonizado por Barry Keoghan e Jacob Elordi, com cenas bastante ousadas, é o projeto trendy e a obra sensação da temporada de prémios da indústria cinema, apesar da sua estreia em meados de dezembro em streaming da Amazon Prime Video. Vai longe…

Nos poucos dias depois da sua estreia a 22 de dezembro passado em streaming na Amazon Prime Video, “Saltburn”, da britânica Emerald Fennell (“Uma Miúda com Potencial”), tornou-se no filme mais quente e surpreendente da temporada. É de facto um sucesso inesperado do qual ninguém esperava tanto falatório e tanto impacto ao ponto de se tornar num fenómeno de audiência geracional e de moda que vai para além do cinema.

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O filme já foi aqui devidamente analisado na MHD, é uma desequilibrada combinação de comédia negra, thriller psicológico e ao mesmo tempo retrato de costumes, parece ter tomado conta da imaginação dos espectadores, sobretudo dos jovens em idade universitária, mesmo em relação ao guarda-roupa primorosamente ‘casual chique’ dos seus protagonistas, que se tem destacado em várias revistas de moda e lifestyle. Além disso o filme, ressuscitou ainda, o belíssimo e esquecido tema musical de 2001, intitulado “Murder on the Dance Floor” da cantora Sophie Ellis-Bextor, que é a música de uma extraordinária cena final protagonizada pelo jovem actor irlandês Barry Keoghan.

Saltburn Amazon Prime Video
Mais uma espantosa interpretação de Barry Keoghan © Amazon Content Services LLC

A sua espantosa interpretação já lhe valeu aliás, uma nomeação para Melhor Actor nos Golden Globes 2024 e não vai ficar por aí. Por outro lado, “Saltburn”, trata-se de uma história notavelmente amoral, sem personagens positivos, que goza com as classes altas e privilegiadas, e com um protagonista da classe média que não é propriamente um bom exemplo a seguir.

Na verdade, o filme mostra-nos que para os ricos e famosos, a vida real não é propriamente um conto de fadas. Aliás as fadas não existem e antes vemo-los como personagens grotescas e fantasiados, como anjos, demónios ou veados, numa estranha festa de aniversário, transformada num sinistro baile de máscaras shakespeariano, com música after hours. Aliás é também uma das melhores cenas do filme ao nível da direcção artística. E depois, uma das referências de “Saltburn” é sem duvida a peça “Otelo, o Mouro de Veneza”, de Shakespeare, onde Kheoghan, o protagonista do filme, se torna numa espécie de Iago.

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VÊ TRAILER DE ‘SALTBURN’




O REGRESSO DA LUTA DE CLASSES

O imaginário do século XXI parece ter recuperado assim com uma certa energia e ousadia, esse arquétipo dos ricos, bonitos e famosos, vistos como pessoas desprezíveis, ridículas e perversas, que vem dos dramas clássicos, só que agora fazem sessões de psicanálise, tentado resolver os seus problemas de ócio e aborrecimento. E tudo isto reflete-se igualmente num mundo onde o ideal democrático vigente, está assente numa minoria, a elite e numa vasta classe média (outrora pequena-burguesia), esta claramente a viver num colapso económico e moral; parece mesmo que a luta de classes regressou aos filmes de vanguarda, aos romances e às séries de televisão e curiosamente são as que têm mais sucesso. Exemplos são muitos!

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Esta ideia, tornou-se aliás também um modelo recorrente de construir uma ficção compensatória, ancorada numa determinada realidade, que premeia e valoriza a cultura popular e a vulgaridade, em detrimento da intelectualidade. Contudo, o que torna o filme de Emerald Fennell especialmente ousado e diferente de muitos outros é que os “pobres”, os proletários da actualidade, não são realmente bonzinhos e ficam bem na fotografia, pois realmente também têm as suas manias e perversões.

Saltburn na Prime Video
Barry Keoghan dá vida a Oliver, um protagonista enigmático, sibilino e erótico. © Amazon Content Services LLC.




O ARQUÉTIPO DO SACANA

Imerso como em muitas outras personagens da literatura, do cinema e da cultura popular, obcecadas pela riqueza e ambição, Oliver Quick (Keoghan), o protagonista de “Saltburn”, é um grande sacana, que esconde sob a sua pele de “cordeirinho proletário” — atenção há aqui um bocadinho de spoiler, mas no filme e de início, é logo evidente, a estranheza do rapaz, muito graças à notável interpretação de Keoghan, que antes de ser actor teve uma vida difícil — um monstro agressivo, sádico, manipulador, mentiroso, mitómano e sociopata. Faz lembrar aliás Patrick Bateman, o personagem de “American Psycho”, do escritor Bret Easton Ellis, adaptado ao cinema e realizado por Mary Harron (2000). Porém, Fennell parece lidar também com uma certa facilidade com muitas outras obras da tradição literária e cinematográfica anglo-saxónica, num registo entre a sátira e o romance gótico, com múltiplas referências, além de Shakespeare ou Ellis.

melhores posters saltburn
Jacob Elordi interpreta um estudante rico de Oxford. | © Amazon Prime Video

Essas referências vão desde “Reviver o Passado em Brideshead” de Evelyn Waugh, que deu origem à famosa série de televisão da ITV de 1981, protagonizada por Jeremy Irons e Anthony Andrews, ao clássico “Drácula” de Bram Stoker, que tem dado muito ao cinema; o romance “Talentoso Mr. Ripley”, de Patricia Highsmith, adaptado pelo menos duas vezes aos ecrãs: “À Luz do Sol” (1960), de René Clement, com Alan Delon e ao filme como mesmo título da obra literária, realizado em 1999, por Anthony Minghella.

Aparentemente “Saltburn” tem também a influência de dois romances do escritor inglês L. P. Hartley, adaptados ao cinema pelo grande Joseph Losey [“O Mensageiro” (1971) e “O Criado” (1963)]; e por último para o clássico “As Oito Vítimas”, (1949), de Robert Hamer, com Dennis Price, a partir do romance original “Israel Rank: The Autobiography of a Criminal” (1907), de Roy Horniman. Neste último, o personagem principal é um judeu desprezado que por vingança torna-se num assassino, para chegar ao topo da herança da sua família e recuperar o seu título de nobreza.

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Em “Saltburn”, Olivier, o jovem de classe média, desprezado pelos colegas da Universidade de Oxford, onde é bolseiro e que ainda não teve coragem para “sair do armário”, nem sexualmente nem do ponto de vista de classe. Olivier tem um pouco de todas estas referências e personagens más, mas ao mesmo tempo bastante carismáticas. 

VÊ VIDEOCLIP DE ‘MURDER ON THE DANCE FLOOR’




O FASCÍNIO PELO DÚBIO

Num extraordinário diálogo do filme com Venetia (Alison Olivier), a irmã do carismático e belo Felix (Jacob Elordi), diz a Olivier Quick (Keoghan), que ele é uma espécie de traça, que aos poucos vai fazendo buraquinhos, na vida das pessoas com que se cruza, até atingir os seus objectivos. Oliver surge-nos como uma figura dúbia e ao mesmo tempo fascinante, representando um desejo de ascensão social, que pode ser descrito, numa frase de Sir Robert Chiltern, personagem da peça “Um Marido Ideal”, de Oscar Wilde (1854-1900), diálogo esse que servia para o então século XIX, mas que encaixa perfeitamente na actualidade: “Todo o homem ambicioso tem de conquistar o seu século com as armas do século. Este século adora riqueza. O deus deste século é a riqueza”.

Porém as referências não se ficam por aqui, se recordarmos o que disse também Scott Fitzgerald (1896-1940), o autor de “O Grande Gatsby”, um romance sobre ricos e um retrato amargo sobre o sonho americano: “os ricos são diferentes de nós, mas não só choram, como também podem morrer, para o nosso consolo e diversão”, aliás como na segunda versão do filme realizado por Baz Luhrmann em 2013, com Leonardo DiCaprio, Tobey Maguire, Carey Mulligan, esta com uma breve aparição em “Saltburn”.

Saltburn
O trio de protagonistas (Olivier, Elordi, Keoghan) que joga um perigoso jogo de erotismo. © Amazon Prime Video

A primeira versão cinematográfica de “O Grande Gatsby”, foi realizada por Jack Clayton — curiosamente com argumento adaptado por Francis Ford Coppola —, em 1973, com Robert Redford, Mia Farrow e Bruce Dern. Enfim, serão todas estas referências de culto, a razão do surpreendente sucesso de uma filme britânico produzido pela Amazon Studios/MGM para a plataforma Prime Video e que passou — que eu saiba — em sala apenas nos Festivais de Telluride (EUA) e no BFILondon? Sim e não, já que apesar de algumas incongruências “Saltburn”, é um filme jovem, provocador, cheio de energia, cor, estética, humor, erotismo, uma excelente banda sonora e sobretudo um extraordinário elenco jovem já referido anteriormente a que se junta Archie Madekwe (o piloto de “Gran Turismo”), e os magníficos veteranos Rosemund Pike e Richard E. Grant, além de uns figurinos e uma direcção artística extremamente atraentes, que nos despertam um sentimento dúbio e uma inveja quase insana de tanta juventude e beleza.

JVM

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