Canina, a Crítica | O regresso e redenção de Amy Adams
Amy Adams impressiona e explora as ansiedades de ser mãe em “Canina,” também conhecida como “Nightbitch,” uma adaptação literária com assinatura da realizadora Marielle Heller.
Não foram só os animais que a Humanidade domesticou. Também fizemos isso a nós mesmos, confinando um espírito selvagem às demandas da harmonia doméstica. No entanto, dentro de todos, há uma besta à espera de despertar e se fazer ouvir, de rugir. Ou, como no caso de “Canina,” ladrar. Na sua quarta longa-metragem narrativa, a realizadora Marielle Heller propõe-se a considerar questões de maternidade neste paradigma onde o paradigma da domesticidade é uma prisão autoimposta e reforçada por uma sociedade onde a mulher perde o seu individualismo no momento em que se torna mãe.
Tal como no livro homónimo de Rachel Yoder, a protagonista de “Canina” não tem nome em reflexo dessa mesma dinâmica social. Ela é simplesmente a Mãe. Ela é alguém que, em tempos, foi uma artista plástica, mas agora passa os seus dias a cuidar do filho de dois anos. O marido, simplesmente conhecido como Pai, está sempre fora, a trabalhar e em viagens, a ganhar dinheiro para suster este suposto idílio suburbano. Neste dever patriarcal, ele tem pouco tempo para ser pai, forçando ainda mais responsabilidade à esposa cuja identidade se deteriora perante esta subjugação ao papel materno.
Todos temos uma fera dentro de nós.
Há um forte teor de isolamento no dia-a-dia dela, como se a criança que ela tanto ama fosse uma corrente a prendê-la a uma existência insuficiente. As ambições artísticas foram forçadas a dissipar, o amor próprio foi apagado, a capacidade para se expressar amordaçada. De facto, em várias ocasiões, Heller deixa-nos ver a fantasia interior da Mãe, onde ela finalmente diz o que lhe vai na cabeça, sem medo de ofender ou quebrar o espírito das outras mães em seu redor. Há uma raiva latente, um rosnar implícito naquele descontentamento. Há uma ferocidade também. Há algo dentro dela que quer sair, explodir o normal e extravasar os bons costumes.
Dessa interioridade furiosa emerge algo além do real. Certo dia, a Mãe descobre mamilos a crescer-lhe ao longo do torso. Depois vêm pelos, uma fome carnívora, alucinações noturnas e uma estranha afinidade para com um grupo de cães sem dono que andam pelas ruas, livres. Apesar de inicialmente descartar estes fenómenos – ora como menopausa ou psicose – a Mãe depressa aceita que se está a transformar em cão. Bem, numa cadela, uma cadela da noite que corre sob a luz da lua e assim se libera do cárcere de ser pessoa. Em resumo, temos aqui um retrato simbólico da depressão pós-parto.
Estas descrições podem sugerir um drama psicológico, mas “Canina” assemelha-se mais a uma comédia negra com veia satírica. Também é uma oportunidade para Heller brincar com gestos próximos do terror, nomeadamente aquele subgénero que se costume descrever como “body horror.” Trata-se de um cocktail de tonalidades bastante distinto, onde a mistura impede cada elemento de se impor sobre os outros. Em certa medida, isso beneficia o filme, dando-lhe uma coerência impressionante. Ao mesmo tempo, revela uma falta de bravura e de risco. Sugerem-se grotescos, mas ninguém em cena leva essa possibilidade aos seus limites.
A “Canina” aparece-nos desdentada, sem capacidade para morder e se fincar nas loucuras que o texto basilar de Rachel Yoder apresenta. Mas nem todos são tão relutantes quanto Heller. De facto, Amy Adams é um verdadeiro assombro no papel principal. Em anos recentes, a atriz tem-se debatido com uma série de projetos e prestações menores, perdendo a aclamação crítica que havia caracterizado tanto a sua carreira. Nesse sentido, “Canina” é um regresso à ribalta, tendo até valido uma nomeação muito merecida para o Globo de Ouro de Melhor Atriz em Comédia ou Musical. Se também tivesse assegurado uma indicação ao Óscar não nos queixaríamos.
Amy Adams é um assombro no papel principal.
Cambaleando doida entre os extremos da personagem, Adams faz com que a insanidade pareça sana e assenta as questões satíricas da fita numa realidade tangível. Além do mais, ela sabe como extrair humor do material sem negar as suas facetas mais obscuras, a raiva ou o ressentimento da Mãe para com o Pai. Mesmo que o argumento de Heller force uma conclusão bonitinha à história, negando as arestas vivas do livro, Adams insiste na complexidade desta mulher, na forma como a catarse aqui exibida não é um ponto final definitivo à sua história. Como com todas as mães, a luta contínua e a fricção entre ser-se justa para consigo e para com as responsabilidades familiares não é tão facilmente resolvida.
Além disso, apesar de Heller vacilar na negociação tonal, ela continua a ser uma brilhante retratista de realidades humanas, demonstrando uma generosidade incomum até para com as personagens que facilmente cairiam na caricatura às mãos de cineastas menos exímios. Pensamos sobretudo nas outras mães, mas também numa amiga bibliotecária interpretada por Jessica Harper e no Pai de Scoot McNary. Todo o elenco está de parabéns e não há elo fraco, não há uma única figura neste conto mirabolante que não nos surja enquanto personagem tridimensional cujas vidas se estendem muito além dos limites narrativos. Assim se faz cinema humanista numa vertente sardónica e bem mainstream. É certo que queremos mais desta “Canina,” mas aplaudimos aquilo que alcança. Só desejávamos era que o filme se sentisse menos domesticado.
“Canina,” também conhecido como “Nightbitch,” está disponível no Disney+.
Canina, a Crítica
Movie title: Nightbitch
Date published: 10 de February de 2025
Duration: 99 min.
Director(s): Marielle Heller
Actor(s): Amy Adams, Scoot McNairy, Jessica Harper, Zoë Chao, Mary Holland, Archana Rajan, Ella Thomas, Stacey Swift, Arleigh Snowden, Emmett Snowden
Genre: Comédia, Terror, 2024
-
Cláudio Alves - 70
CONCLUSÃO:
“Canina” é uma comédia negra com traços surreais e uma análise feminista do papel da mãe na atualidade, sublimando questões de depressão pós-parto em jeito metafórico. Amy Adams é arrebatadora no papel e a melhor razão para se ver o filme. Dito isso, há graciosidade e elegância no trabalho da realizadora Marielle Heller, um toque de humanismo que redime algumas das suas falhas e a covardia de um projeto que deveria arriscar muito mais do que efetivamente arrisca.
O MELHOR: Amy Adams é a grande estrela que aqui redime os últimos anos de fracassos. Dito isso, todo o elenco está impecável.
O PIOR: A simplicidade forçada do final – muito diferente do livro – e o modo desajeitado como Heller negoceia os tons contraditórios desta obra “Canina.”
CA
Filme necessário! Discordo que trate de depressão pós parto. Não. O pós parto sem depressão é exatamente assim. E, se menos domesticado , não retrataria a realidade da maioria das mães. A tendência é a domesticação mesmo. E a fase fica no passado. Um trauma solitário. Esse filme descreveu tudo o que eu senti e não soube falar claramente. Só latia. Eu adorei sua crítica.