TIFF ’24 | Amy Adams perde o juízo em Nightbitch
Depois de anos à caça do Óscar que nunca vem, Amy Adams entrega-se às loucuras de “Nightbitch,” o novo filme de Marielle Heller com estreia mundial no TIFF.
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Entre estrelas de Hollywood e o melhor cinema do mundo, o Toronto International Film Festival tem sido palco para algumas controvérsias e situações aparatosas. Este ano, durante a mostra do novo filme de Ron Howard, alguém se sentiu mal e tiveram que chamar uma ambulância. Nas ruas em frente aos cinemas, protestos exigem o retorno dos reféns ainda em Gaza, enquanto ativistas em nome da Ucrânia gritam palavras de ordem contra o festival que está a passar um documentário russo sobre a perspetiva do soldado comum. A PETA veio boicotar a passagem de Pharrell Williams no festival, acusando-o de usar peles no seu trabalho enquanto estilista, e também a crise climática fez surgir manifestantes noutras sessões.
Em suma, o caos dos nossos dias reflete-se no pandemónio de um festival como nenhum outro. Mas a crítica social não fica de fora do grande ecrã. Muitos dos filmes do TIFF são obras de cinema político, com vários autores a usarem este momento sob o brilho dos holofotes para clamarem palavras de ordem. Isso verifica-se tanto em obras obscuras como no píncaro do mainstream. Pensemos, pois claro, no feminismo furioso que Marielle Heller traz consigo em “Nightbitch,” uma adaptação literária com Amy Adams no papel de uma mulher que, sob as pressões de ser mãe e mulher numa sociedade patriarcal, perde o juízo e assume estar a transformar-se em cão. É daqueles filmes que há que ver para crer.
Amy Adams e as loucuras de ser mãe
Baseado num livro de Rachel Yoder, “Nightbitch” é uma estranha negociação entre a comédia e o drama, o estudo de personagem e o body horror, o mais comum dos mainstreams e algo infinitamente mais estranho. Tonalmente, a coisa é complicada, mas Heller tende a resvalar para uma procura pelo riso e pela resolução. De facto, o maior problema da fita será mesmo o modo como tenta resolver uma narrativa que talvez ficasse melhor em aberto. Afinal, as transformações da personagem principal são uma alegoria da depressão pós-parto e tais condições não se curam com uma simples separação e mais tempo para dedicar à arte.
Enfim, trai-se a complexidade do original literário, mas não é por isso que se faz mau cinema. Heller é uma realizadora muito generosa e trespassa essa qualidade no seu trabalho enquanto argumentista. Ela concede dimensionalidade a todas as personagens que passam em frente à sua câmara, mesmo aquelas que, nas mãos de outro cineasta, seriam meras caricaturas. Tais escolhas afastam o filme do estilo sketch do “Saturday Night Live” que alguns críticos mais vitriólicos têm usado para descrever “Nightbitch.” Além do mais, raro seria o exercício em comédia fácil que se atreveria a apresentar os monólogos deste argumento, sua raiva contra injustiças sociais e a consignação da mulher ao papel absoluto de mãe.
No meio disto tudo, a forma é pouco interessante e só mesmo a montagem vinga com algum ímpeto criativo. Mas essas não são as razões que vão levar pessoas aos cinemas. Será a grande estrela no centro de “Nightbitch,” uma Amy Adams destemida que finalmente volta à ribalta depois de muitos anos em projetos menores. O seu desempenho é notável, negociando os registos e tons contraditórios da fita, perscrutando a sua negrura e leveza com igual habilidade. Mesmo que a proeza não resulte em prémios, Adams está de parabéns. As audiências do TIFF concordaram, dando-lhe uma grande salva de palmas, tão forte e longa que a atriz pareceu ficar comovida em palco. Ela merece toda essa aclamação.
O epílogo de Godard e o humor seco de John Smith
O Festival de Toronto não se faz só de longas sacadas aos festivais europeus e uns quaisquer sonhos de Hollywood com ambições para os Óscares. A secção Wavelenghts, por exemplo, foca-se em cinema numa linha mais experimental e é também o programa com mais ênfase nas possibilidades da curta-metragem. Este ano, uma das sessões mais antecipadas era precisamente uma coleção de três filmes em dimensão miniatura, uma colagem, um retrato da colagem, e um confessionário com cheirinhos de comédia britânica. Foi a vez do fantasma de Godard subir ao palco e do realizador John Smith deliciar o público do TIFF.
Em Cannes e Toronto do ano passado, foi apresentado uma espécie de trailer-colagem, um bande annonce para um filme jamais feito. Pensava-se que seria o último trabalho completado por Jean-Luc Godard antes da sua morte por suicídio assistido, mas parece que não. “Scénarios” não é bem o filme prometido naquela découpage passada, fugindo à estrutura indicada no pseudo trailer apesar de, no seu âmago e mistério, considerar as mesmas ideias. Isto sim, é cinema experimental, puro e duro, tão depurado na forma que nos faz questionar as fundações da sétima arte. E assim, até depois do adeus, Godard continua a provocar o público.
Esse mesmo gesto de provocação críptica é depois desconstruído por “Exposé du film annonce du film Scénario,” uma colaboração entre o cineasta ancião e seu colega Fabrice Aragno. Nesta simples proposta, Godard aparece-nos de charuto na mão e em atitude explicativa, demonstrando as colagens físicas que fez para esse trailer do cinema imaginado e seus significados. O que torna o exercício tão interessante será mesmo o que nos revela do vanguardista nos últimos anos da vida e do trabalho. A ausência de mediação da montagem, a confusão e os percalços da apresentação conferem uma qualidade quase intimista à fita.
Por fim, este programa de curtas terminou em “Being John Smith,” a mais recente brincadeira de um realizador britânico famoso pela sua experimentação e humor seco. A obra em questão é meio solipsista, consistindo principalmente de uma narração por cima de montagens fotográficas e ocasionais vídeos de arquivo. Há um lado muito sardónico na escrita da peça, redobrado com o candor chocante de intertítulos que tanto complementam como se sobrepõem à palavra falada. O trabalho é ousado apesar do modelo modesto e tanto surpreende como faz rir. E assim, entre o pessoal e o político, John Smith conseguiu o impossível – ofuscou Godard.
Consagra-se uma nova mestra do cinema
Os festivais de cinema são tanto uma oportunidade para celebrar mestres consagrados como um local de descoberta. Afinal, até os nomes mais conhecidos da atualidade já foram gente comum e anónima, sem fama ou o furor da crítica. Este ano, Veneza e Toronto foram palco de uma grande revelação, com a cineasta georgiana Dea Kulumbegashvili a afirmar-se enquanto uma das próximas grandes vozes na sétima arte. Em 2020, a sua estreia na longa-metragem, “Beginning,” perdeu-se na pandemia, mas, este ano, não há nada a sobrepor-se à glória do seu cinema. “April” é uma obra-prima do mais alto gabarito e uma façanha impiedosa.
Com muitos poucos planos e movimentos limitados, um gosto pela atmosfera cerrada e imagética tenebrosa, Kulumbegashvili conta a história de uma médica que se vê envolvida em investigações depois de um bebé morrer durante o parto. Como ela também realiza abortos ilícitos, cuidando de pacientes empobrecidos e em vilas remotas, há todo um sistema pronto para castigá-la. Tais descrições podem sugerir ideias sensacionalistas, mas “April” é filme contido com uma construção de tremenda disciplina. Usa-se a metáfora visual de um clima tanto dado à destruição como ao florido primaveril, e articula-se uma exploração do controlo – sobre o corpo, a alma, a vida e a morte. Perante tudo isto, o júri de Isabelle Huppert deu um prémio de terceiro lugar ao filme durante a sua passagem por Veneza. Sem querer ofender os fãs de Pedro Almodóvar, a georgina merecia era o Leão de Ouro.
Cobertura TIFF:
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No próximo artigo, há que discutir umas ofertas mais mainstream do TIFF, inclusive um musical mexicano e a intriga papal do Vaticano. Haverá, no entanto, espaço para uma visita ao cinema emergente em África.