Gaya de Medeiros e Ivo Canelas em Um Caroço de Abacate © take it easy films

Um Caroço de Abacate | Entrevista a Ary Zara e Gaya de Medeiros

Estivemos à conversa com Ary Zara e Gaya de Medeiros, a dupla responsável pela curta-metragem Um Caroço de Abacate.

O cinema português continua a conquistar destaque internacional, e o recente feito da curta-metragem “Um Caroço de Abacate” não nos passou despercebido. Sob a realização de Ary Zara e com a produção executiva de Elliot Page e da Page Boy Productions, a curta-metragem portuguesa figura entre as 15 finalistas na categoria de Melhor Curta-Metragem de Imagem Real para a 96ª edição dos Óscares da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Este feito notável sucede a “O Lobo Solitário”, que, embora não tenha sido nomeado, conquistou um lugar entre os filmes finalistas no ano passado.

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Numa lista que inclui nomes ilustres como Wes Anderson e Pedro Almodóvar, “Um Caroço de Abacate” destaca-se como uma obra poderosa que ultrapassa fronteiras, prometendo ser uma forma de ativismo através da linguagem cinematográfica. Estes dias serão cruciais, marcando o início das votações para os Óscares, com a revelação completa dos nomeados agendada para 23 de janeiro. Sentimos, por isso, que este é o momento ideal para desvendar os bastidores desta história tão inspiradora e tivemos a oportunidade de conversar com o realizador Ary Zara, naquela que é a sua primeira produção, e a talentosa atriz e artista Gaya de Medeiros.

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Segundo os artistas, “Um Caroço de Abacate” foi concebido com um propósito claro: oferecer uma narrativa livre de violência sobre o tema da transexualidade a um público mais amplo. Ary Zara acredita que o filme atingiu esse objetivo. Este artigo não apenas celebra o sucesso da obra, mas proporciona uma visão exclusiva dos desafios enfrentados pela equipa. A sinopse do filme e o trailer estão disponíveis abaixo.

UM CAROÇO DE ABACATE | TRAILER OFICIAL

Larissa, uma mulher trans, e Cláudio, um homem cis, encontram-se numa noite em Lisboa. São duas pessoas com realidades dispares que, até ao amanhecer, trocam seus mundos numa dança cativante e desafiadora. Uma história de empoderamento, livre de violência, destinada a despertar dias melhores.

Agora, compartilhamos a entrevista com Ary Zara e Gaya de Medeiros, onde discutem o árduo trabalho envolvido na criação desta curta-metragem.




MHD: Como nasceu o projeto Um Caroço de Abacate?

Ary Zara: A curta nasceu após a minha transição. Eu já estava há imenso tempo a tentar fazer cinema, já tinha desistido e creio que com a minha transição veio também uma nova coragem e uma grande necessidade de falar sobre os nossos processos e a nossa existência. Foi nesse sentido que começou a crescer este “Um Caroço de Abacate“.

MHD: Como é que te juntaste ao projeto Gaya de Medeiros?

Gaya de Medeiros: Nós fomo-nos conhecendo, porque trabalhávamos numa mesma discoteca, onde eu era drag queen. Começámos a conversar e acabou por haver uma enorme empatia. O Ary acabou por adaptar o argumento ao meu jeito de conversar, à minha forma de abordar. Ele, secretamente esteve a trabalhar no filme e depois atirou-o na minha cara. Eu fiquei muito assustada, porque ele quase que conseguiu entrar na minha cabeça.

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MHD: Como é que a Pageboy Productions e o Elliott Page acabaram por agarrar a produção executiva do filme?

Ary Zara: Curiosamente este momento acontece bastante mais tarde. Já dois anos depois de termos lançado o filme. O que aconteceu foi o Elliot Page cruzou-se com o nosso filme no Outfest de Los Angeles e prontamente enviou-me uma mensagem por Instagram, onde escreveu ponto a ponto aquilo que tinha gostado do filme. Ele estava mesmo muito impressionado! Eu demorei algum tempo a acreditar que aquilo estava a acontecer… Não sabia se era uma conta verdadeira ou uma conta falsa. Pareceu-me muito inusitado. Ficámos com essa ligação, com a ideia de um dia mais tarde podermos trabalhar juntos, que para mim é ainda surreal.

© Ilha Studios

Quando começámos esta campanha para os Óscares – porque existe todo um trabalho de marketing e de publicidade que tem de ser feito -, perguntaram-me na London Flair que são os publicistas, se conhecia alguém que pudesse dar visibilidade ao projeto e que estivesse nos Estados Unidos. Lembrei-me que conhecia alguém, mas que não era meu amigo. Atirei o Elliot Page para cima da mesa! A equipa prontamente ajudou-me a elaborar um email e ajudou-me a perceber como funciona esta parceria como produtor executivo e o Elliot disse logo que sim. Foi uma questão depois de acertar agulhas, mas foi algo que aceitou prontamente e com muita generosidade. É uma pessoa que acolhe e que está muito entregue ao projeto.




MHD: O que é o Queer Art Lab e quais os seus principais desafios?

Ary Zara: São vários! Primeiro porque trabalhamos com artistas emergentes. Segundo porque os nossos artistas encontram-se no nicho LGBTQ+. O que significa que muitas destas pessoas têm experiências de vida que acrescentam vulnerabilidades que temos de ter em conta nos processos de trabalho. Trabalhamos muito o acolhimento e o afeto. Sinto que é feito uma espécie de babysitting ao nível da introdução do mercado de trabalho, um cuidado especial porque queremos mostrar às pessoas que trabalhamos num sítio seguro, um lugar onde expomos muito da nossa fragilidade. É um projeto que tem crescido bastante. Começou em 2021 e temos apoiado uma série de artistas. Este ano procuramos continuar dessa forma, com mais parcerias e mais pontes.

MHD: Gaya, como tem sido o teu envolvimento com a arte?

Gaya de Medeiros: É a minha forma de ganhar a vida há muito tempo, com muita sorte. Tenho criado espectáculos que têm conseguido visibilidade fora de Portugal. Eu e o Ary temos um espectáculo que é o “Atlas da Boca” que tem viajado pela Europa inteira, e já estivemos em 14 países para fazer tour. Temos tido um suporte muito generoso da comunidade artística portuguesa, para um trabalho que é meu, mas é também das pessoas que coloco juntas.

Um Caroço de Abacate
Um Caroço de Abacate © Ilha Studios

MHD: Contam trabalhar juntos no futuro?

Gaya de Medeiros: O Ary tem trabalhado nisso. Existe uma cumplicidade muito grande em termos de pensamento que, por vezes é difícil encontrar, mesmo na comunidade e mesmo a nível pessoal. A nossa ideia é termos outros projetos juntos porque é uma química que dá certo.

Ary Zara: Temos uma nova curta-metragem para filmar ainda no primeiro semestre deste ano e que a Gaya vai protagonizar. Mais para o final do ano vamos começar a criar um novo espectáculo.




MHD: Que caminho precisa ser feito em Portugal e no Brasil para combater o preconceito em relação à identidade de género e à transexualidade?

Gaya de Medeiros: Acho que aos poucos, os temas têm mais visibilidade do que há muitos anos atrás. Só que ao mesmo tempo nunca sabemos se a visibilidade é a correta. Muitas vezes os meios de comunicação colocam-nos para falar sobre a identidade de género e não sobre outras coisas sobre as quais somos especialistas e que estudámos para fazer… Por exemplo no caso do Ary o cinema, no meu caso a dança. Ou uma pessoa que seja da música, outra que seja da política… Uma pessoa que seja médica. Muitas vezes poderíamos desfocar um pouco o tema da identidade de género e abrir para especificidades que cada pessoa tem. Assim, publica outras esferas nos media que não seja apenas a identidade. Os comentários que leio nos posts de reportagens sobre pessoas transgénero são “Nossa! Só falam sobre isso!” ou “Não quero saber qual o sexo dessa pessoa”… Como se a nossa vida girasse ao redor de falar sobre genitais, sobre cirurgias plásticas ou sobre os tratamentos hormonais. Não é exatamente sobre isso. A nossa afirmação de género se dá numa conexão com a vida, de um jeito de estar na vida que é mais eufórico, mais positivo e potente, do que para falar sobre sexo e sobre sexualidade. Acho que é necessária uma mudança de foco nessa questão da visibilidade.

MHD: Que mensagem gostariam de deixar aos espectadores que assistirem ao filme “Um Caroço de Abacate”?

Gaya de Medeiros: O realizador terá sempre outra perspetiva. Gostava que os espectadores se deixassem afetar por pessoas, se deixassem envolver porque as pessoas têm esta capacidade de se afetar e de serem afetadas. Estas afetações podem-nos levar para lugares muito bonitos de encontro.

Ary Zara: A premissa deste filme era ser possível contar uma história onde não existisse violência para com uma pessoa trans. Isto só por sim, se fosse conseguido, seria algo enorme. Nós conseguimos isso, de uma maneira que continua a acrescentar algo. “Um Caroço de Abacate” não é só uma história livre de violência, é também uma espécie de fantasia, daquela noite em que duas pessoas ponderam um futuro juntas. Eu creio que aqui entramos numa esfera diferente, porque conseguimos descolar um pouco da identidade de género e trazer uma humanização daquelas duas pessoas. Era isto que queria imprimir. Que pudéssemos conectar de forma humana e torcer por elas, neste amor que parece impossível. Temos uma série de camadas, porque não deixa de ser uma história de amor entre um homem e uma mulher em que rompemos uma série de conceitos e, ao mesmo tempo, relaxamos o público na cadeira. O ativismo aqui é trabalhado com gentileza, para que as pessoas possam ouvir e não exista tanto desconforto. Atualmente experienciamos formas de ativismo diferentes, algumas mais espontâneas e outras mais subtis. As duas são necessárias. Com o cinema parece-me que aquela que explorámos é aquela que melhor cabe numa sala. Se quisermos realmente que as pessoas nos ouçam e estejam connosco.

Gaya de Medeiros: “Um Caroço de Abacate” humaniza também a personagem do Carlos/Cláudio. Temos um homem que se apaixona por travestis, é um ser noturno, é um ser fetichista, mas ali não. Temos um homem com as suas fragilidades que se interessa por aquela pessoa que vai além das suas limitações culturais. Ele também se humaniza. Não é só ela…

Um Caroço de Abacate ainda não tem data de estreia prevista em Portugal. A Filmin Portugal dispõe do documentário “Ary”, sobre Ary Zara, realizado por Daniela Guerra em 2021. 

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