Céus e Infernos – Análise
Estreou na passada sexta-feira 5 de setembro em exclusivo na plataforma de streaming Apple TV+ o novo filme de Spike Lee, “Céus e Infernos” (2025).
O filme foi exibido fora de competição no Festival de Cannes deste ano. Marca o regresso da colaboração entre Denzel Washington e Spike Lee, 19 anos depois de “Infiltrado” (2006). Depois de Cannes, a obra apenas teve exibição em sala de cinema nos E.U.A.. No resto do mundo, o filme estreou diretamente no streaming.
“Céus e Infernos” é um filme onde David King (interpretado por Denzel Washington) se vê perante uma difícil escolha moral. A obra de Spike Lee inspira-se em “Céu e o Inferno” (1963, Akira Kurosawa), bem como no livro “King’s Ransom” de Ed McBain (1959).
Céus e Infernos, quando Spike Lee reencontra Denzel Washington
Spike Lee está de regresso com mais um filme, “Céus e Infernos”. Trata-se da sua quinta colaboração com o ator Denzel Washington e a primeira em 19 anos depois de “Infiltrado”, um dos seus filmes mais comerciais.
Desde 2018 com “BlacKkKlansman: O Infiltrado” que Spike Lee não estreia os seus filmes em sala de cinema. “Céus e Infernos” não é exceção e volta a ser uma obra feita para o streaming. Apesar de não ser uma obra-prima e ficar um pouco aquém das espectativas, face a filmes anteriores do realizador, gostaria de ter visto uma exibição em sala pois (ainda) merece isso.
“Céus e Infernos” tem duas obras que contribuíram para a sua feitura. São elas o livro “King’s Ransom”, no qual a longa-metragem se baseia, e o filme “Céu e o Inferno” no qual Spike Lee considera apenas uma inspiração.
Assim, estamos perante a história de David King, um produtor musical que anda com a sua carreira um pouco em baixo. Certo dia, desaparecem o seu filho Trey (Aubrey Joseph) e o seu afilhado Kyle (Elijah Wright). Trey, entretanto, reaparece e David tem conhecimento que Kyle foi raptado em vez do filho. O raptor pede-lhe um resgate em francos suíços.
Spike Lee, apesar de tudo
Em geral, os filmes de Spike Lee que são mais interventivos e com caráter de resistência, acabam por sair melhor obras do que aquelas que têm narrativas mais “banais”, se assim se puder dizer. Lembro-me, por isso, de filmes como “Não dês bronca” (1989), “Malcolm X” (1992) ou “BlacKkKlansman: O Infiltrado” que são autênticas obras-primas, poderosas nas suas mensagens.
Nesse sentido, “Céus e Infernos” foge, portanto, a esta lógica quando as mensagens de caráter social são praticamente inexistentes. Não quero com isto dizer que isso é um problema. De todo. Contudo, a verdade, é que este novo filme de Spike Lee não vai ficar marcado como um dos seus grandes filmes. Ainda assim, há um cuidado visível do realizador nesta narrativa e até na homenagem que faz ao mestre Akira Kurosawa.
Apesar de tudo isto, este (ainda) é um filme com a clara assinatura de Spike Lee.
Ou seja, Nova Iorque é o centro da ação e é retratada pelo realizador com toda a importância que merece; é uma cidade já conhecida para Spike Lee, claro. Já a cultura negra está presente de várias formas. Desde as referências musicais que o protagonista refere e idolatra a pequenas mensagens de ordem implícitas nas paredes. Depois, como gostos pessoais do realizador está, claro, a presença da música no filme (que, aliás, é o centro do mesmo) e a presença do desporto (já que o filho e o afilhado do protagonista jogam basquetebol).
Um filme com altos e baixos
“Céus e Infernos” é um filme que tem vários altos e baixos. Pessoalmente, senti que até à cena em que David se prepara para entregar a mala com o dinheiro do resgate – por volta de 1h de filme – a construção da obra está muito frágil e não entusiasma de todo.
É verdade que se nota um cuidado cinematográfico claro por parte de Spike Lee logo no início do filme. À primeira vista, é um pouco estranha toda a sequência com o genérico inicial com vários minutos de prédios ao som da música “Oh, What a Beautiful Mornin’”. Contudo, há dois fatores fundamentais para que tal aconteça: 1) introduz a cidade de Nova Iorque e a riqueza da nossa personagem principal; 2) introduz a relação do protagonista com a música. Se quisermos ainda pensar na letra da música, ela também traz um clima claro de relação com esta cidade onde se inicia uma “manhã bonita”.
Ao longo dos primeiros 20 minutos, todas as personagens principais são introduzidas nos seus trabalhos e hobbies e sabemos que David vendeu uma parte da sua editora que agora quer recuperar.
Mas… tudo se complica quando lhe dizem que raptaram o seu filho. David vai ter de escolher entre perder o dinheiro que iria investir na sua editora ou perder o filho. Contudo, quando Trey reaparece, sabemos que o seu filho foi confundido com o afilhado Kyle. Paul (Jeffrey Wright), o seu pai e motorista de David, quer o seu filho de volta e implora a David que pague o resgate. Face a um dilema moral, David hesita, porque não se trata do seu filho. Trey acaba por mudar a opinião do seu pai que leva uma mala cheia de dinheiro ao raptor.
Montagem ao serviço da ação
É nesta sequência que “Céus e Infernos” sobe de tensão e Spike Lee volta a mostrar a sua mestria, quer do ponto de vista musical, quer do ponto de vista da montagem.
Por falar em música, até esta sequência, sentimos uma certa incapacidade do realizador em controlar a “música ambiente” que constantemente só estar a fazer de fogo de artifício sem facilitar o desenrolar da narrativa.
Assim, durante umas comemorações do Dia Nacional de Porto Rico, Spike Lee demonstra a sua linguagem e mestria cinematográfica. Ao juntar três acontecimentos em simultâneo em montagem alternada – David no metro, polícias na estrada e porto-riquenhos em festa – o realizador traz-nos uma montagem recheada de simbolismos ao qual junta (desta vez, de forma acertada) ainda música.
David perde o seu dinheiro mas o seu “bom ouvido musical” vai fazê-lo encontrar o culpado pelo rapto de Kyle e recuperar o seu dinheiro. No meio disto, David conseguiu que a sua editora voltasse a ter músicas no topo, depois de ele ser visto como um herói. Já o raptor: é um rapper, Yung Felon (interpretado pelo rapper na vida real A$AP Rocky), que também queria ser representado pela editora de David.
No estúdio de Yung, o confronto entre ele e David é mais uma cena de mestria por parte de Spike Lee que utiliza rimas de uma forma bastante original. Por fim, o novo “confronto” entre os dois, já com Yung preso, é outro puro momento cinematográfico. Quer o início com Yung a cantar, quer a conversa na prisão; cenas que, aliás, se complementam e relacionam entre si e que ainda utilizam o split screen para acrescentar alguns significados implícitos…
Algumas conclusões sobre Céus e Infernos
Com “Céus e Infernos”, Spike Lee perde-se um pouco em certos momentos do filme tornando-o um pouco telenovelesco ou televisivo. Contudo, há vários momentos bem conseguidos em certas partes do filme.
Além das cenas que referi anteriormente do ponto de vista da montagem, também o uso simulado de “arquivos” está muito bem enquadrado neste filme. Quer esta simulação quer, por exemplo, a cena em que David vai pagar o resgate são muito reminiscentes de cenas semelhantes em “BlacKkKlansman: O Infiltrado”, por exemplo.
No início do filme, parece haver um certo desleixe do realizador. Desde planos muito gerais e com as personagens de costas a uma música ambiente invasiva, sentimos algum desapego com o filme. Contudo, vamos ganhando (lentamente) interesse na narrativa.
Já sobre os materiais originais no qual este filme se baseia… Se não soubéssemos destes materiais, nem adivinharíamos que Spike Lee tinha adaptado outras duas obras, já que lhe dá um cunho bastante pessoal.
“Céus e Infernos” é um filme simultaneamente intemporal – por ter um rapto no centro da narrativa – e contemporâneo – por se passar em 2025 e haver referências visíveis a smartphones ou à IA. A grande diferença – e que resulta – é que David é um produtor musical e não um empresário do calçado.
Céus e Infernos
Conclusão
- “Céus e Infernos” é o novo filme de Spike Lee. Lançado diretamente no streaming, na Apple TV+, a obra merecia ter passado em sala de cinema.
- Não vai ser lembrado como um dos melhores filmes do realizador que não soube aproveitar melhor o potencial da narrativa, sobretudo na primeira metade do filme. Contudo, há cenas que compensam e equilibram o filme ao trazer um cuidado muito notório na música e montagem.