Os 10 melhores filmes de Spike Lee
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De “Os Bons Amantes” a “BlacKkKlansman”, a carreira de Spike Lee é uma montanha-russa de experimentação cinematográfica e retórica política que tanto entretém como galvaniza os espetadores que têm o privilégio de experienciar tais maravilhas do grande ecrã.
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Spike Lee é um dos cineastas mais importantes do atual panorama americano, tendo esculpido sua posição de destaque na tradição fílmica do seu país com obras tão excecionais como “Não Dês Bronca” e “Malcolm X”. Devido ao teor altamente político e desbocado do seu cinema e discurso pessoal, este é um realizador que tende a ser relativamente menosprezado dentro e fora da sua nação, mas, de vez em quando, lá Hollywood se digna a honrá-lo devidamente.
Há uns anos, o cineasta foi homenageado com um Óscar Honorário e, este ano, finalmente foi nomeado na categoria de Melhor Realizador e ganhou um troféu competitivo pelo argumento adaptado de “BlacKkKlansman: O Infiltrado”. Esses prémios doirados não significariam nada, contudo, se Lee não tivesse para sempre mudado o cinema como fez, abrindo as portas a um renascimento da expressão afro-americana no grande ecrã. Muitos são os cineastas que lhe devem a inspiração para suas carreiras. A figurinista Ruth E. Carter e o diretor de fotografia Matthew Libatique, por exemplo, apontam para este cineasta como a razão pela qual começaram a trabalhar no cinema.
Por todas essas razões, e porque este mês se celebra o 62º aniversário deste mestre da sétima arte, decidimos explorar a filmografia de Spike Lee e selecionar quais são as suas melhores e mais importantes obras. Colocámos de parte seus trabalhos televisivos e formidáveis documentários para nos focarmos principalmente nas longas-metragens de ficção, mesmo aquelas que nunca chegaram aos cinemas portugueses.
Antes de indicarmos este nosso top 10 Spike Lee, convém fazer uma menção honrosa. Apesar do seu estatuto e importância, este é um cineasta cuja filmografia é marcada por uma extrema oscilação qualitativa de projeto para projeto. Tratando-se Lee de um realizador altamente ambicioso, mesmo a nível técnico, esta é uma condição facilmente explicável, mesmo que agravante para seus fãs. “Bamboozled” é o melhor exemplo de um filme que sofre pela ambição desmesurada do seu criador, sendo uma formidável documentação da relação entre o público e a herança cultural americana para com a caricatura humilhante de afro-americanos. Porém, trata-se também de um poço sem fundo de incoerências narrativas e escolhas formais arriscadas que nem sempre pagam seus dividendos. Merece respeito, mas não tanta aclamação como outras obras de Lee.
Com tudo isto dito, passemos à nossa lista final. Basta seguires as setas para passares os slides que estão ordenados por ordem crescente de qualidade. Por outras palavras, na última página encontrarás aquele que nós definimos como o melhor filme de Spike Lee.
10. SCHOOL DAZE (1988)
Antes de “Dear White People” satirizar dinâmicas raciais no mundo das universidades americanas, já Spike Lee tinha feito uma experiência cinematográfica bem semelhante. “School Daze” foi somente a segunda longa-metragem assinada por este cineasta e demonstra bem o tipo de experimentação indisciplinada que caracteriza o trabalho de muitos realizadores em início de carreira. Note-se, por exemplo, como este é o único musical descarado na filmografia de Lee, cujo amor por musicais clássicos sempre foi óbvio, mas nunca traduzido de modo tão literal como aqui.
Nosso enredo musicado passa-se numa universidade tradicionalmente frequentada por pessoas afro-americanas, onde fraternidades e ativistas políticos entram em acesos conflitos que começam na praça pública e tendem a contaminar a vida privada de todos os envolvidos. As tensões centram-se principalmente entre Dap, um ativista orgulhoso interpretado por Laurence Fishburne, e Dean Big Brother Almighty, o líder da fraternidade mais influente do campus que é interpretado por um formidável Giancarlo Esposito.
Superficialmente, o filme pode parecer uma comédia pateta cheia de dinâmicas paródicas, estereótipos e humor básico. Contudo, basta examinar com alguma atenção a narrativa para entendermos como Lee usa a comédia fácil como pretexto para explorar inúmeros problemas sociopolíticos dentro da comunidade afro-americana, como privilégios económicos e educativos, colorismo, o valor totémico de cabelo natural na comunidade, assimilação cultural e até misoginia e homofobia internalizada. Com elegância e muito divertimento, o realizador concebe uma tapeçaria ideologicamente complicada, tecida através de mecanismos híper artificiais sempre a piscar o olho ao mundo da música e à glória dos musicais dos grandes estúdios.
09. BLACKKKLANSMAN: O INFILTRADO (2018)
Depois de lhe ter valido o Grande Prémio do Júri no Festival de Cannes, “BlacKkKlansman: O Infiltrado” foi o filme que finalmente fez com que Spike Lee fosse nomeado para o Óscar de Melhor Realizador. Com esta lista esperamos provar como essa honra já se devia ter manifestado muito antes e múltiplas vezes também. Enfim, por falar em prémios, foi também graças a este filme de época que Spike Lee ganhou o seu primeiro Óscar competitivo, sendo assim consagrado de um modo que nunca antes tinha sido pela indústria de cinema americana que, talvez pela causticidade política do seu cinema, tende a respeitar Lee mais do que o celebra.
Face à natureza épica e audácia tonal desta narrativa histórica, é fácil entender como Hollywood não foi capaz de resistir ao seu apelo. Apesar de não podermos dizer que todas as escolhas mais rebuscadas de Lee são totalmente eficazes, há algo de energético e estranhamente charmoso na sua impetuosidade, capaz de tanto entreter o espectador como de o galvanizar com indignação face à podridão racista do mundo. Somente a tempestade de comédia, suspense, ação e drama que arrebatam o espectador durante o clímax explosivo da narrativa são prova do triunfo de Lee.
Além de tudo isso, “BlacKkKlansman” representa uma das obras onde este realizador cinéfilo melhor demonstra o seu amor pela sétima arte e a importância que ela tem no modo como a cultura americana é definida e monumentalizada. Desde o uso desavergonhado de uma das cenas mais famosas de “E Tudo o Vento Levou” até uma homenagem subversiva ao legado asqueroso de “O Nascimento de Uma Nação”, Spike Lee mostra-nos aqui as possibilidades políticas do cinema assim como seu potencial para o mal.
08. CHI-RAQ (2015)
Anteriormente afirmamos que “School Daze” é o único musical em modelo clássico na filmografia de Spike Lee. Fora de uma conceção tradicional desse género cinematográfico, “Chi-Raq” quase reclama para si a definição de musical. Certamente existe um artifício teatral inerente a todo o projeto, assim como um punhado de passagens completamente orientadas em volta de canções. Quando não há música para dominar a cena, o diálogo estilizado confere a sua própria musicalidade aos procedimentos dramáticos, enquanto toda a linguagem visual do projeto parece existir no meio termo entre um videoclip de hip-hop e “West Side Story”.
Convém esclarecer que, longe de provir dos proscénios reluzentes da Broadway, a matéria-prima dramática de “Chi-Raq” teve o seu berço no anfiteatro grego. Para este projeto, Spike Lee foi buscar inspiração à “Lisistrata” de Aristófanes, tendo adaptado a premissa da comédia Clássica à sociedade contemporânea dos EUA, nomeadamente a crise de violência com armas de fogo que assola os bairros mais empobrecidos de Chicago. A solução para este cataclisma, segundo o enredo desta paródia satírica, é uma greve sexual por parte de todas as mulheres que estão cansadas de ver testosterona complementada por pólvora e fogo ceifar as vidas de seus filhos, seus maridos, irmãos, pais.
O resultado é um cocktail Molotov de indignação enraivecida que pega fogo ao ecrã e brilha com a convicção de um cineasta tão inspirado quanto desesperado. Um mapa dos EUA feito de armas, uma canção que pede que rezemos por uma cidade em crise, assim “Chi-Raq” nos tenta evangelizar e galvanizar. Pelo caminho, Samuel L. Jackson é um narrador cheio de estilo, Angela Bassett e Jennifer Hudson trazem dor genuína à folia, enquanto Teyonah Parris mostra que tem o que é preciso para ser uma estrela e John Cusack dá voz aos sermões que Lee claramente quer fazer explodir nos ouvidos do seu espectador. Não se trata de cinema subtil, mas é cinema que enerva e emociona.
07. OS BONS AMANTES (1986)
Tal como muitos estudantes de cinema, Spike Lee passou os seus anos na faculdade a consumir cinema e a apaixonar-se todos os dias por novos cineastas e filmografias nacionais. Quando chegou a altura de rodar a sua primeira longa-metragem, o jovem realizador virou-se para esses mesmos filmes, desconstrui-os e empregou os seus estilos e soluções estéticas como ferramentas para a construção de um cinema de cariz bem pessoal. Por outras palavras, “Os Bons Amantes” é um projeto que mostra claramente o cunho pessoal de Spike Lee, mas também se destaca como uma espécie de artefacto da Nouvelle Vague transplantado para as ruas de Brooklyn.
Em preto-e-branco cristalino, esta é uma comédia sobre uma jovem independente e altiva que vai negociando o seu tempo com três amantes diferentes. Eles representam arquétipos, ou estereótipos se formos menos caridosos, sendo um delas um cromo mulherengo, outro um homem muscular, carismático e arrogante, enquanto o terceiro é amistoso e muito mais maturo que qualquer outra personagem em cena. A maior parte da obra é assim dedicada a testemunhar as interações deste quarteto improvável, testando seus limites emocionais e dominância uns sobre os outros.
Convém dizer que, em termos interpretativos e de políticas sexuais, a primeira longa-metragem de Spike Lee deixa um pouco a desejar, revelando muitas vezes as facetas menos felizes da juventude do seu autor. Contudo, essa mesma juventude insufla o filme com uma empolgante vitalidade que aqui se traduz em constante experimentação, quer seja com estilos de interpretação, tons cómicos ou mecanismos formais. A certa altura, existe uma explosão de cor e um momento de dança que parece uma alucinação derivada de uma fita de Fred Astaire, por exemplo. Ver “Os Bons Amantes” é perscrutar uma mente embriagada pelo amor ao cinema, saborear sua maravilha e deixarmo-nos nós mesmos ser inebriados pela paixão cinéfila.
06. VERÃO ESCALDANTE (1999)
Talvez mais do que qualquer cineasta americano dos nossos dias, Spike Lee é um artista intrinsecamente nova-iorquino. Os ritmos e vozes de bairros multiculturais a rebentar pelas costuras com famílias numerosas e idiomas diversos ecoam pelo seu trabalho. As suas histórias são as histórias desses bairros onde os marginalizados da sociedade vivem entre os círculos mais pobres da hierarquia económica, onde os verões são quentes e os invernos gélidos, onde o ar sufoca com poluição e os edifícios se vestem em grafitis. São locais em que a própria morfologia do espaço é definida por heranças ancestrais de descriminação sistemática em comunhão com o idealismo de quem procura uma vida melhor.
Esta faceta do cinema de Spike Lee raramente esteve em maior destaque que em “Verão Escaldante”, uma examinação pouco ortodoxa dos meses estivais de 1977, quando a cidade foi aterrorizada pelos homicídios do autobaptizado Filho de Sam. Por respeito às vítimas e fidelidade à sua visão autoral, Lee não encarou este conto de horror dos tabloides como uma narrativa de mistério e investigação. Pelo contrário, Lee usa os homicídios como agente galvanizante de toda uma comunidade e são as pessoas amedrontadas quem Lee coloca em frente à câmara e no centro do enredo.
Desde a banda-sonora estrondosa até aos pormenores de cenografia e figurino, o filme constitui uma recriação da Nova Iorque de 77 que é tão historicamente exata como emocionalmente sugestiva. Pelo meio de tudo isso, desenrola-se um conto de uma sociedade em implosão, onde irmão se vira contra irmão e a necessidade de encontrar um culpado põe a nu os preconceitos mais feios que orientam a identidade e valores de uma comunidade. Em papéis de peso, Mira Sorvino, Adrien Brody e John Leguizamo são excelentes, explodindo em improvisações grosseiras e dando vida a um guião que, como a execução técnica do filme, reflete uma incomensurável ambição estética e temática.
05. INFILTRADO (2006)
“Infiltrado” é um dos filmes mais atípicos de Spike Lee, assim como um dos seus mais saturados de energia. Referimo-nos à energia dramática que propulsiona um thriller criminal como este, mas também às dinâmicas visuais frenéticas que tornam esse drama num produto de entretenimento sensorial do mais alto calibre. A câmara nunca para de se mover, como que numa constante procura por novas composições interessantes, por exemplo, enquanto a montagem parece resultar de um exercício em como recortar diálogos tensos do modo mais ambíguo possível, tanto confundindo o espectador como lhe fornecendo toda a informação visual necessária para nunca se perder por entre a ação.
Tais engenhos formais são perfeitos para a história de um genial assalto a um banco nova-iorquino que, pelo meio, acaba por incluir misteriosas ligações ao passado nazi e uma atmosfera de constante dúvida, onde é difícil distinguir quem é criminosos e quem é vítima. A narrativa vai saltando entre um monólogo do mestre do esquema na sua cela, o assalto em si, visto de dentro e fora do banco e as interrogações enervadas de uma equipa de detetives a lidar com o caso mais difícil das suas carreiras. Pela sua parte, os atores estão em perfeita sintonia com o seu realizador, cuspindo as suas falas com a mesma intensidade com que a câmara voa pelo espaço e nunca deixando que a tensão se dissipe.
Como consequência desta abordagem, o filme acaba por ter pouco do realismo cru, transpirado e feio de “Dia de Cão”, o filme de Sidney Lumet em que Lee se inspirou, apostando, em contraste, numa espetacularidade jocosa de cortar a respiração. Sendo assim, “Infiltrado” está longe de ser um dos projetos mais sérios de Spike Lee, ao mesmo tempo que se assume como uma das maiores provas em como o seu talento cinematográfico em nada se resume à capacidade para materializar retórica política em forma de filme. Spike Lee é, na verdade, um dos mais arrojados cineastas da Hollywood dos nossos dias.
04. A ÚLTIMA HORA (2002)
Sendo Spike Lee o mais nova-iorquino de todos os realizadores americanos da atualidade, não é de admirar que o horror do 11 de Setembro tenha marcado o seu cinema de modo direto e intenso. É certo que o atentado terrorista nunca marca presença nas suas narrativas, mas as cicatrizes que essa calamidade deixou na cidade e na psique americana fazem-se sentir de modo invariável. “A Última Hora” é o filme onde o realizador sintetizou todas as suas ansiedades e ideias sobre o evento, abordando-as de modo oblíquo através da história do último dia de liberdade de um homem condenado a cumprir uma pena de sete anos atrás das grades.
O dia desenrola-se como uma espécie de elegia prolongada a uma vida sem futuro, passando por bares onde se fazem libações intoxicantes e por ruas escuras onde as sombras são mais reconfortantes que a acusação da luz. Ao mesmo tempo que isto decorre e o protagonista se vai apercebendo do modo como seus amigos e amada se começam a fechar para com ele, como se já estivesse distante das suas vidas, a câmara de Lee e do diretor de fotografia Rodrigo Prieto vai pintando um retrato de Nova Iorque com grande profundidade focal. O que vemos é uma cidade perdida num oceano de incerteza existencial, onde as ruínas das Torres Gémeas são como uma ferida pulsante de onde todo um desespero jorra, infetando tudo e todos.
“A Última Hora” é assim um filme sobre ausência e sobre perda, encarando o vazio que as Torres Gémeas deixaram na silhueta de Nova Iorque como uma espécie de imagem espelhada do vazio com que o condenado encara o seu futuro. Acima de tudo, este é um formidável estudo de personagem que também funciona como um estudo de uma cidade embriagada pela sua própria desorientação no rescaldo da tragédia. O elenco é perfeito, especialmente Norton no papel principal e mesmo os interlúdios mais estética e narrativamente abrasivos acabam por ser integrados de modo orgânico na tapeçaria concetual que Lee aqui conjura. No final, este é um dos grandes triunfos do cineasta e porventura um dos seus filmes mais sintéticos e tecnicamente perfeitos.
03. MALCOLM X (1992)
Ao longo das décadas de 80 e 90, o épico biográfico tornou-se num dos subgéneros mais prestigiados de Hollywood. Apesar do sucesso de tais projetos, tanto nas bilheteiras como nos Óscares, foi rara a biografia de uma personalidade afro-americana a chegar ao grande ecrã. Quase como resposta direta a esta lacuna, Spike Lee edificou em “Malcolm X” um épico histórico para ofuscar todos os épicos históricos, um projeto tão tematicamente grandioso como formalmente espetacular que veio provocar audiências e galvanizá-las também.
O melhor de tudo é que, ao contrário de muitos outros cineastas, Lee não sacrificou a complexidade histórica ou política em nome da simplicidade narrativa, mantendo as contradições na retórica do seu protagonista, as facetas mais abrasivas da sua personalidade e traços mais radicais da sua ideologia. No papel principal, Denzel Washington muito faz para refletir essa mesma multidimensionalidade no retrato do célebre figurão da luta pelos Direitos Civis. Ele é carismático e cruel, eletrizante quando discursa, mas abrasivo em privado, ele irradia a inteligência de um mestre do jogo político e a fogosidade indignada de um ativista heroico.
Num mundo justo, Washington teria levado para casa um Óscar por este trabalho, de longe a melhor performance da sua carreira. Poderíamos dizer o mesmo de muitos dos outros criativos envolvidos com a criação desta obra, onde cada elemento revela virtuosismo clássico de mãos dadas à impetuosidade controversa de um cinema político que rejeita a passividade intelectual.
02. CROOKLYN (1994)
Na filmografia de grandes autores com filmografias relativamente extensas, não é incomum encontrar algures um projeto que, acima de tudo, representa um gesto autobiográfico pela parte do artista. Fellini teve “8 ½”, Tarkovsky assinou “O Espelho”, Cuarón tem “Roma”, metade dos filmes de Bergman são assim, Fosse chegou a prever a sua própria morte em “All That Jazz – O Espectáculo Vai Começar”, Gerwig e Truufault fizeram logo isso com seus primeiros filmes, Allen basicamente dramatizou as suas crises matrimoniais numa série de tragicomédias, Varda adora virar a câmara para si mesma e por aí a fora. No caso de Spike Lee, temos “Crooklyn”, uma crónica familiar que parece ser a resposta dos anos 90 a clássicos tão inestimáveis como “Não Há Como a Nossa Casa” e “Laços Humanos”.
Partindo de um argumento escrito em colaboração com dois dos seus irmãos, Lee conta a história de uma menina a viver em Brooklyn nos anos 70, sua relação com os vários membros da família, sua perceção do mundo a que pertence e a aceitação de novas responsabilidades à medida que cresce e é confrontada com a perda. Trata-se de um belíssimo retrato humanista de dinâmicas familiares e comunitárias que tem tanto espaço para franqueza cáustica como para sentimentalismo nostálgico.
Em termos de trabalho de ator, este é provavelmente um dos projetos mais virtuosos de Spike Lee, mas é o modo como o cineasta captura o bairro que o viu crescer e a época histórica e cultural da sua infância que realmente eleva o filme acima de tantas outras obras do mesmo realizador. As cores são intensas, os detalhes do quotidiano trespassam toda uma vivência hiper-real, os gestos e padrões de discurso sugerem especificidades individualistas e comunitárias e a banda-sonora é uma joia de nostalgia cristalizada. Por outras palavras, esta é uma obra-prima que, acima de tudo, constitui um triunfo de cinema enquanto máquina da memória e da autorreflexão.
01. NÃO DÊS BRONCA (1989)
Apesar do relativo sucesso crítico das primeiras longas-metragens de Spike Lee assim como a popularidade de algum do seu trabalho publicitário, nada podia preparar o realizador para o impacto sísmico que “Não Dês Bronca” viria a ter na cultura popular e no panorama cinematográfico americano. O filme retrata um dia de verão numa rua de Brooklyn, onde as temperaturas são insuportavelmente altas e as tensões raciais entre os vários membros da comunidade chegam a um píncaro com a morte injustificável de um jovem afro-americano por um polícia. O que daí resulta é um motim e a destruição da pizaria local durante uma noite de fogo e ódio.
Antes de “Não Dês Bronca” era raro o filme que tinha a coragem de representar com tanta claridade os conflitos raciais que são endémicos à sociedade americana. Aliás, ainda hoje em dia, quando “Green Book” é consagrado como o Melhor Filme do ano pela Academia de Hollywood, é incomum vermos a problemática do racismo, sua natureza institucional e comunitária, serem explorados através da perspetiva daqueles que são oprimidos por estas mesmas doenças sociais. Talvez por isso, este filme ainda hoje é alvo de debate, especialmente no que diz respeito ao seu clímax, havendo muitas pessoas que não conseguem ver propósito ou justificação na violência indignada que explode pelo bairro como resposta a mais uma tragédia.
Toda esta descrição pode dar a ideia que “Não Dês Bronca” é um projeto intragavelmente pesado e portentoso. Isso não podia estar mais longe da realidade. Concetualmente e a nível político, esta é uma obra densa, mas Lee nunca deixa que o filme se torne num sermão aborrecido, usando todos os truques cinematográficos no seu arsenal para construir uma experiência energética e revigorante que tanto espanta pelo seu discurso ativista como pela sua experimentação formal. Desde a estrondosa abertura do filme com Rosie Perez vestida como uma lutadora de vermelho até à melancolia fumarenta da manhã seguinte, esta é uma obra-prima destinada a ter sempre um lugar de destaque nos livros de História do Cinema.
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