©Leopardo Filmes

Chile, 1976, em análise

A Leopardo Filmes dá a conhecer “Chile, 1976”, a nova obra da cineasta Manuela Martelli!

1976…! Nem mais, assim se intitula a primeira obra como realizadora da actriz chilena Manuela Martelli. Situa-se no Chile, poucos anos passados sobre o golpe militar fascista que colocou no poder uma pérfida junta militar e um general ao serviço da plutocracia e das classes dominantes, chamado Augusto Pinochet. Foi a 11 de Setembro de 1973, como o outro 11 de Setembro de Nova Iorque e Washington em 2001, igualmente marcado pela brutalidade, pelo sangue e pelas lágrimas, e estabeleceu um antes e um depois, neste caso na História do Chile, da América Latina, e não só. Mas com uma diferença substancial: no Chile, a extrema-direita acabou com uma experiência democrática e não hesitou em assassinar um presidente democraticamente eleito, chamado Salvador Allende. Nos anos que se seguiram, os militares impuseram uma repressão feroz sobre o povo chileno, prevalecendo no combate aos que apelidavam de agentes subversivos as mais diversas arbitrariedades, investidas sistemáticas contra muitos que em alguns casos nem sequer eram militantes ou meros simpatizantes de grupos radicais de esquerda. Na verdade, o clima instaurado de perseguição e medo atingiu diferentes classes sociais, incluindo alguns sectores da classe média que se haviam manifestado durante o regime anterior a favor de uma mudança, umas vezes nem sempre com a consciência dos valores que realmente importava defender, outras com a clara intenção de subverter e derrubar a democracia.

Lê Também:   IndieLisboa ’23 | Crónicas Curtas #5

Chile 1976
©Leopardo Filmes

Em Portugal, a LEOPARDO FILMES decidiu estrear o filme com o título CHILE, 1976 (2022) e fê-lo em boa hora, porque vale a pena olhar para esta ficção baseada em muitas histórias contadas ou por contar que fazem parte da memória assombrada dos que viveram sob o manto negro e pestilento de uma ditadura.

QUANDO MENOS SE ESPERA, HÁ SEMPRE ALGUÉM QUE RESISTE…!

Para os devidos efeitos, o filme começa com uma sequência aparentemente banal e quotidiana. Uma mulher, Carmen (desempenhada com rigor e a necessária dose de ambiguidade dramática por Aline Küppenheim), escolhe a cor que deseja para pintar e decorar as paredes da casa de férias da família. De repente, no exterior da loja onde se encontra, ouvem-se gritos e alguma confusão. Parece que alguém está a ser perseguido. Todavia, apenas sobressai o som porque não vemos nada, nem a maioria dos clientes parece muito incomodado com o incidente. No exterior, pouco depois e debaixo do carro de Carmen, um sapato de mulher denuncia que algo de violento ocorreu. Estão dados os sinais que precisamos para definir a atmosfera pesada que se vivia por aqueles dias e por aquele ano numa grande cidade como Santiago, mas igualmente no resto do país. Teremos de seguida mais dados para juntar a esta primeira abordagem. Sem grandes sobressaltos, acompanhamos Carmen até uma zona costeira onde se encontra a dita casa de veraneio, luxuosa e nitidamente assumida como local privilegiado de uma classe, cujo sistema instalado pelo novo poder defendia e beneficiava. Desde que fechassem os olhos ao clima vigente de limitação das mais básicas liberdades. Pouco a pouco chegam os familiares que se instalam naquilo que parece ser um ritual antigo de convívio entre iguais. Nada de grandes preocupações. Mas na cabeça de Carmen fervilham pensamentos soltos sobre um estranho e inesperado encontro com um rapaz, Elías (Nicolás Sepúlveda), ferido na perna por uma bala. O padre Sanchez (Hugo Medina), personagem conhecida do círculo íntimo de Carmen, recolhera-o em sua casa. Face ao perigo que corria de sucumbir a uma infecção grave, o religioso pedira auxílio a Carmen para cuidar dele. Sabia que ela possuía alguma prática de primeiros-socorros que aprendera na Cruz Vermelha. Primeiro, o padre disse que o rapaz seria um delinquente. Mas logo depois, mesmo sem ninguém o verbalizar, iremos confirmar aquilo que já suspeitávamos. Elías era um resistente, membro de uma organização clandestina, e estava a ser perseguido pela polícia política. É a partir desse encontro fortuito, improvável num quadro normal de convivência burguesa, que se dá uma reviravolta na vida de Carmen. De facto, ela vai a partir daí percorrer uma série de caminhos sinuosos, encontros dissimulados, em suma, correr perigos similares a muitos outros que na sombra combatiam o regime ditatorial. Pelo meio, vai adquirir a consciência política que até então provavelmente não sentia necessidade de assumir ou partilhar com quem quer que fosse, mergulhada que estava nas rotinas de uma existência marcada por uma ideologia fútil, conservadora e reacionária, como a dos amigos que com ela conviviam.

Lê Também:   IndieLisboa ’23 | Crónicas Curtas #2

Na realização, Manuela Martelli dá-nos com singular precisão o sentimento de se viver num mundo fechado, mesmo quando ele parece aberto para práticas ociosas e descontraídas como passeios de barco ao largo da costa, acessíveis a quem frequenta os exclusivistas clubes privados, como o yacht club que serve para alguns ostentarem exuberantes sinais exteriores de riqueza. Nas suas deslocações aos locais previamente combinados por razões de combate político, o modo como é posicionada a câmara no interior do carro que Carmen conduz, assim como o olhar desta no retrovisor, sempre preocupada com quem a possa estar a seguir, revelam que os autores deste filme sabem do que estão a falar. Pelo menos, sabem o que se sente quando se vive num país onde cada palavra dita necessita de ser descodificada e pensada, para se evitarem erros que podem comprometer muita coisa e muitas pessoas. Sabem como a cada passo, a cada metro percorrido, se pode vencer ou perder uma batalha. Sabem como por detrás de um rosto sereno pode estar uma alma sobressaltada, acossada, mesmo pela própria sombra, ou então um provocador. Pouco a pouco, Carmen revela maior inquietação, e a planificação concentra na escala próxima do seu olhar, dos seus gestos, dos seus movimentos, das suas dúvidas e hesitações, o principal motor da acção. Na verdade, aquilo que faz alimentar de sentido a sua peregrinação rumo aos pontos de encontro que comportam riscos, que serão por ela assumidos com cautelosa determinação, conseguindo aqui e além superá-los, mas nem sempre com a salvaguarda de segurança que a situação impunha.

Chile 1976
©Leopardo Filmes

Thriller cinematográfico de contornos sociais, CHILE, 1976, apresenta-nos uma ficção que nos remete para uma realidade nua e crua de um passado que ainda está muito presente nas cicatrizes que não sararam por completo, um passado que infelizmente pode sempre voltar. Fá-lo através dos olhos de uma mulher que parte de uma certa alienação de classe, aquela que evita intencionalmente ou não os assuntos que possam incomodar quem vive na sua redoma de cristal, para atingir uma consciência aguda e acutilante do país a ferro e fogo, um país feio dominado por gente pior do que feia, e onde a liberdade se confrontava diariamente com o despotismo que condicionava o destino dos cidadãos, de que o recolher obrigatório era apenas uma das consequências perversas, medida autoritária que ainda perdurava naquele ano de 1976.




Chile, 1976, em análise
Chile 1976

Movie title: 1976

Director(s): Manuela Martelli

Actor(s): Aline Küppenheim, Nicolás Sepúlveda, Hugo Medina

Genre: Drama, 2022, 95min

  • João Garção Borges - 75
75

Conclusão:

PRÓS: Destaque maior para a protagonista, Aline Küppenheim, no papel de Carmen. Mulher burguesa arrastada quase sem querer para a luta política e clandestina no Chile de 1976, país que sofria ainda os efeitos da ditadura instaurada após o golpe militar fascista de 11 de Setembro de 1973.

Bela Direcção de Fotografia de Yarará Rodríguez, não apenas pela sua qualidade plástica, mas pelo modo como nos dá o ponto certo, as escalas mais adequadas, para percebermos a atmosfera concentracionária onde as personagens se movimentam, a realidade quotidiana de um regime ditatorial.

Muito competente primeira-obra de Manuela Martelli, que assinou o argumento em parceria com Alejandra Moffat.

CONTRA: Não compromete o resultado final, mas preferia outra banda sonora musical. Na verdade, as composições assinadas pela brasileira Mariá Portugal apresentam muitas vezes sonoridades redundantes face ao que vemos e, onde por vezes se exigia silêncio, a combinação de música e sonoplastias bombásticas (repito, sem comprometer a muita agradável visão de CHILE, 1976) parece desgarrada do ritmo ficcional geral e dos valores seguros do argumento. Trata-se de um pequeno e muito subjectivo reparo, mais nada.

Sending
User Review
0 (0 votes)

Leave a Reply