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IndieLisboa ’23 | Crónicas Curtas #5

Conhece a dupla final de projectos presentes na mais recente Competição Internacional de Curtas do IndieLisboa!

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BLACK MOUSE, 2022, de Ahmad Naboulsi (Líbano). Nos anos sessenta, as autoridades libanesas encomendaram ao visionário arquitecto brasileiro Oscar Niemeyer o desenho de um projecto que, uma vez concretizado, seria uma imensa estrutura modernista, segundo as palavras do próprio, inspirada no corpo feminino e integrada no contexto da cultura árabe do Médio Oriente. Este complexo de proporções arrojadas, uma vez concluído, serviria de base e sede ao que então se desejava organizar, ou seja, a “Tripoli International Fair”. Só que, em 1975, rebentou no Líbano uma guerra civil devastadora, o projecto foi abandonado e a sua construção foi suspensa. Não obstante, alguma coisa restou e as ruínas, abandonadas e encerradas no interior de um perímetro delimitado nos nossos dias por uma cerca militar, são a imagem fantasmática de um sonho sonhado pelo poder de então e a memória assombrada da extraordinária arte e competência de um homem que, entre outros exemplos maiores da arquitectura mundial, foi uma das forças motrizes que ergueram de raiz uma cidade capital como Brasília, verdadeira cidade projectada para o futuro. Mas, na capital libanesa, não foi isso que aconteceu, e este curioso documentário diz-nos isso mesmo. Muitos olham para a vasta obra meio arruinada como um “elefante branco”, um acto falhado que levanta questões de natureza civilizacional, com mais ou menos ambiguidade. No filme, seguimos um ciclista que sai de casa e atravessa o labirinto de ruas e ruelas, estradas e vias que o leva até aos limites cercados do recinto onde se vislumbram os pedaços de cimento armado e as formas do que ficou exposto a um controlado abandono. Nessa jornada, a realização usa um drone. Podemos dizer que aqui o expediente muitas vezes utilizado de forma superficial e até abusiva faz muito sentido porque gera a sensação de estarmos a percorrer um mapa real de uma cidade com verdadeira vida lá dentro, Tripoli. Algo que irá provocar um vibrante contraste com a segunda grande sequência de BLACK MOUSE, quando finalmente penetramos de forma normal, quase subversiva e ao nível do olhar humano, por oposição ao olhar de Deus, no vagaroso e silencioso passeio pelas estruturas que restam de pé. Desta dialéctica de perspectivas imagéticas sobressai ainda uma banda sonora onde, numa primeira parte, ouvimos depoimentos fora de campo de pessoas que exprimem as suas opiniões sobre o modo como encaram a permanência do projecto num local pouco ou nada acessível ao cidadão comum e, numa segunda parte, declarações ficcionadas de Oscar Niemeyer, que de certo modo procuram enquadrar a sua filosofia sobre a arquitectura e a relação com a natureza humana, incluindo a percepção do que pensamos ser uma coisa e afinal pode ser outra. Bom equilíbrio ente a linguagem documental e a do verdadeiro cinema experimental.

CLASSIFICAÇÃO: 60/100




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RUNAWAY, 2022, de Salome Kintsurashvili (Geórgia, Rússia). Este é um daqueles filmes onde se encontram os ingredientes necessários e suficientes para da sua planificação e estrutura fílmica resultar uma grande obra de cinema. Na verdade, a realização (onde incluo obviamente a Direcção de Actores), e ainda a Direcção de Fotografia e o Design de Som, são do melhor que se viu até esta altura na COMPETIÇÃO INTERNACIONAL CURTAS, na minha opinião só comparável com a excelente proposta áudio e visual de HOWLING, 2022, do japonês Aya Kawazoe. São ambos, aliás, dignos representantes das propostas académicas, mas não redutoras da criatividade, que se perfilam em duas escolas de cinema seguramente muito diversas: no caso russo-georgiano, a MOSCOW SCHOOL OF NEW CINEMA e, no caso nipónico, a TOKYO UNIVERSITY OF THE ART ( Graduate School of Film and New Media). Dito isto, é pena que a promessa inicial de rigor e perfeita articulação entre o que vemos no interior dos planos e a sua impecável articulação com a acção conduzida pela interpretação das personagens em presença não consiga manter a força inicial e se desvie a certa altura, e sem grande razão de peso, do conflito principal, a presença de um estranho nas instalações de um café que serve igualmente de moradia a uma vulgaríssima família de empresários da restauração. Esse homem vagamente misterioso, que vemos logo ao início chegar de carro, carrega algo de suspeito, qualquer coisa que nitidamente condiciona a sua liberdade. Pergunta a mulher do amigo que aceitou albergar esta personagem por uns dias: “O que se passa para o quererem esconder daquela maneira?” E o marido riposta: “Um homem foi morto”. Ficamos pois a saber que há um crime a pairar, cujos contornos reais nunca se saberão ao certo. Não obstante, numa sequência absolutamente fulcral, plano fixo sobre o dono do restaurante, rodeado de outros homens vestidos de negro, ficamos conscientes de que apesar da circunspecta simpatia do cidadão clandestino e foragido, ele não deve ser flor que se cheire. Ficamos com esse sentimento só de ouvir as meias palavras que os seus cúmplices lançam para o ar, grupo que mais parece um gangue mafioso do que outra coisa qualquer. Encontrar por aqui, por exemplo, motivações políticas, lá porque eles são georgianos e o restaurante fica algures numa zona afastada do centro de Moscovo, só com muito boa vontade, ou então, com uma generosa dose de má-fé. Na verdade, nem sequer era esse o propósito do filme no plano ficcional. No fundo, o que vemos até ao fim constitui um muito seguro exercício de cinema sobre as consequências no seio de uma família comum, pai e mãe, do impacto que uma situação anormal provoca nos seus dois filhos, um rapaz e uma rapariga, que acabam por razões diferentes a orbitar como satélites em redor do planeta que os atrai e que os acolhe no seu reduzido espaço de manobra. Não fica no entanto claro o que realmente os atrai naquela figura. Será o fascínio pelo lado selvagem que ajuda a subverter as rotinas do dia-a-dia, sem grandes perspectivas de futuro? Talvez. Mas, confesso, esperava mais. Mesmo assim, um filme a reter, uma realizadora a seguir e uma curta que merece ser destacada pelos seus inegáveis valores de produção.

CLASSIFICAÇÃO: 60/100

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