Circuit des Yeux é uma força da natureza

O concerto de Circuit des Yeux ontem, na Galeria Zé dos Bois, mostrou-nos, mais uma vez, onde está a arte moderna a acontecer. E não é nos museus.

Em 2018, toda a mística do circuito de música alternativa – com os seus grandes (mas ilustres desconhecidos) artistas, a tocar para dez ou vinte afeiçoados, em pequenos bares e armazéns escusos, promovidos por editoras cheias de convicção, mas sempre à beira da falência – já não passa disso mesmo: de mística, daquela que vem de agora ser só mito o que antes fora real. No entanto, nestes tempos em que se diluíram muito as fronteiras entre alternativo e comercial (o que não é necessariamente mau), onde a internet torna muito difícil a obscuridade (o que não é necessariamente verdadeiro), ainda há quem acredite naquela experiência única, criada e vivida durante a década de 80. Uma realidade subterrânea feita de liberdade e risco artísticos, afeição visceral e pequenas comunidades a reclamar para si – o povo – o que mais uma vez se tornara o privilégio inchado e estéril de uns quantos.

Haley Fohr (© Margarida Ribeiro)

Haley Fohr ainda acredita no coração desta experiência e, ao ouvi-la ontem no pequeno e labiríntico espaço da Galeria Zé dos Bois, acompanhada de outros cento e cinquenta silenciosos fãs, não pude não acreditar de novo eu também. Circuit des Yeux fez-nos reviver a todos, no presente, sem nada de nostálgico, mas de modo único e original, todo seu, a música enquanto a íntima comunicação de um sentido que transcenderá sempre as palavras, mesmo quando usadas. E feita de forma pessoal, desde a pequena comunidade da banda de onde saía (de que desconhecidas profundezas?) a voz sobrenatural de Haley Fohr, encarnada num corpo todo tenso a tornar visível, nos seus gestos, o mesmo sentido que ressoava por toda a sala, até à comunidade, só um bocadinho maior, dos que se tinham movido até ali por uma estima. Estima pelo projecto Circuit des Yeux, estima por música que tenha significado, estima pela ZDB enquanto lugar que estima a arte, não interessa. Bastava ter-se movido por estima para se comover com o que se ouviu ontem à noite.

Whitney Johnson e Haley Fohr (© Margarida Ribeiro)

O concerto consistiu na performance integral do disco Reaching For Indigo, como esperado. A cantora já fizera saber que iria tocar o álbum todo, por ela concebido como um filme, a ser visto do princípio ao fim. A exactidão do alinhamento não impediu Haley Fohr, no entanto, de readaptar as canções, arranjando-as para um ensemble de guitarra, viola, contrabaixo e bateria e dando espaço à improvisação jazzística. Esta nascia da dinâmica entre a compositora e os instrumentistas, que revelava um Circuit des Yeux a tornar-se um projecto cada vez mais comum. Quando no final falei com Tyler Damon, amigo de longa data de Haley e baterista que a acompanha nesta digressão, ele contava-me o gosto que tinha em participar na arte criada por alguém cujo talento tanto admirava. Gosto que se podia ouvir na força e precisão com que fazia soar alguns dos ritmos mais tribais que compunham uma das camadas da sonoridade experimental que sustentava e dialogava com o drama da voz de Haley.

Tyler Damon (© Margarida Ribeiro)

A textura era adensada pelas melodias minimalistas e insistentes da viola de arco de Whitney Johnson. Andrew Scott Young alternava entre o correr frenético do arco sobre as cordas do contrabaixo e o seu violento pizzicato. Mas nada superava a voz visceral de Haley, a soar grave, gravíssima, no centro, ao redor e em toda a sala. Grave no registo, mas grave, acima de tudo, no peso das coisas que cantava, que narrava por meio das letras e materializava por meio da pura vocalização. Como quem retira das entranhas físicas as entranhas da própria vida e da vida dos que observa. Só aparentemente primordiais, os sons resultavam de uma controlada e deliberada construção do sublime, reconduzindo a vida da cidade às forças elementares de que tudo brota e mostrando como nada é tão majestoso quanto a complexa expressão da simplicidade.

Whitney Johnson (© Margarida Ribeiro)

Desde o dadaísmo do princípio do século XX que a arte procura tornar-se vida e a vida arte, numa eliminação das fronteiras entre os dois universos. Das suas exposições nasceu o conceito de instalação, cujas inúmeras realizações atravessamos enquanto deambulamos por esses museus fora. Mas onde verdadeiramente vivi uma instalação foi ontem, no acontecimento teatral (no filme?) gerado por Circuit des Yeux. Haley afirma que só no palco é totalmente ela própria, que nunca sente o seu projecto como uma performance e sim como si mesma. Posso afiançar que é verdade. Por mais grandiosa que seja a experiência de ouvir as versões gravadas das suas canções, por mais exímia produtora que Haley seja (quem diria que Reaching For Indigo foi gravado em casa!), não há nada de semelhante a ouvi-la em presença. Não por acaso o The Quietus advogou que Circuit des Yeux é, neste momento, um dos melhores actos ao vivo do mundo.

Haley Fohr e Tyler Damon (© Margarida Ribeiro)

Nesta instalação sonora em que a ZDB se converteu ontem à noite, por entre o evocar encantatório das forças elementares da criação, em gestos de braços ascendentes que lembravam Patti Smith e formulações mais melódicas das trevas de Sunn O))), soava de repente, solitária, uma guitarra acústica. Os primeiros acordes de “Black Fly” interromperam a atmosfera terrífica com uma melodia nostálgica, mostrando que o espectáculo era todo ele uma encenação da existência. Como esse, muitos outros lampejos de ternura se seguiram, a culminar no cover de “Fruits of My Labour”, de Lucinda Williams, com que Haley, já no segundo encore e sem a banda, fechou o concerto: “It’s just about working hard, let what you love and get to a point in that road where you enjoy what you’ve got. So, yeah, look at what we’ve got!”

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Ao cantar, tornando-as tão suas, as palavras da cantora country, Haley acabou por descrever da melhor maneira o que acabara de fazer naquela noite, por ela e para nós: “Truth is my savior […] Take the glory any day over the fame”. A seguir ao concerto, quando a vi no bar da ZDB a tomar uma cerveja, não consegui não ir ter com ela, só para lhe agradecer o momento de beleza sumptuosa que nos proporcionara a todos e dizer-lhe que a sua voz devia surpreendê-la a ela também, tão inexplicável era. Ela riu-se e, depois de conversarmos um pouco mais, quando lhe perguntei porque gostava tanto de Lisboa (já cá veio quatro ou cinco vezes), respondeu-me: É como a minha voz. Inexplicável.” Assim são as coisas mais significativas da vida: quanto mais cheias de sentido, mais cheias de mistério.

Haley Fohr (© Margarida Ribeiro)

Circuit des Yeux na Galeria Zé dos Bois, 29 de Abril de 2018 (alinhamento)

  1. Brainshift
  2. Black Fly
  3. Philo
  4. Paper Bag
  5. A Story of This World, Part II
  6. Call Sign E8
  7. Geyser
  8. Falling Blonde
  9. Do The Dishes (primeiro encore)
  10. Desconhecida (primeiro encore)
  11. Fruits of My Labour, de Lucinda Williams (segundo encore)
Circuit des Yeux é uma força da natureza
  • Maria Pacheco de Amorim - 95
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