Come Together| O Festival da Eurovisão de 1956 a 2016, passando por 1944.

Mais um Festival da Eurovisão, o 61º, desta vez no Globe Arena de Estocolmo, com a apresentação do vencedor do ano passado, Måns Zelmerlöw, e da pivô Petra Mede, a presença especial de Justin Timberlake (que interpretou um tema novo) e música para todos os gostos (ou quase todos!).


Top 5 Eurovisão 2016, by MHD>>>


 

Måns Zelmerlöw e Petra Mede

Ganhou a Ucrânia, graças à votação do público, uma vitória que pareceu mais política e anti-Rússia (leia-se anti-Putin) do que outra coisa, não obstante a Rússia ter ficado em 3º lugar no resultado final e ter tido a canção mais votada pelo público. Há já uma longa tradição de vitórias políticas, ou melhor, com fins políticos na Eurovisão, desde as vitórias sucessivas de Israel, no final dos anos 1970, à vitória esmagadora de Conchita Wurst, há dois anos atrás, como forma de sensibilizar o público para a existência e os direitos dos transgéneros (e transgéneras, já agora e para ser politicamente correto, mesmo que gramaticalmente pouco correto).

Algumas derrotas também parecem ter tido um significado político como aconteceu com Portugal quando se estreou no Festival, em 1964, com a “Oração” de António Calvário. Alguém invadiu o palco apelando ao boicote da canção portuguesa, por causa da guerra colonial e do regime ditatorial de Salazar, e aquela acabou em último lugar com zero pontos. Hoje dizem-nos que há uma norma que proíbe canções políticas no Eurofestival, o que conduz inevitavelmente à pergunta: mas o que é afina uma canção política? A resposta não é clara, mas, seja ela qual for, dificilmente negará que grande parte das canções, direta ou indiretamente, acabam por ter mensagens políticas ou ser suscetíveis de aproveitamentos políticos.

A vencedora

Jamala - 1944

A canção da Ucrânia, “1944”, a vencedora, interpretada por Jamala era indiscutivelmente uma boa canção, bem interpretada e com bons arranjos, mas que levanta algumas questões polémicas e importantes, pois de certo modo parece fazer um paralelo entre a Rússia e o contexto europeu de 1944, e a Rússia e o contexto europeu atuais, o que apresenta enormes riscos de desvio dos factos e de uma análise objetiva, o quanto possível, dos mesmos. A Europa está zangada com Putin, levanta sanções contra a Rússia e agora dá a vitória a uma música que é uma crítica direta à Rússia, embora remetendo para momentos históricos não comparáveis. Muito discutível.

As melhores

Pessoalmente, creio que, tal como no ano passado, o 1º lugar devia ter ido para a Suécia, que se fez representar pela canção “If I Were Sorry”, interpretada por um rapaz de 17 anos, Franz, que venceu e convenceu pela presença e a simplicidade, atributos sempre tão caros à ‘pop’.

Frans If I Were Sorry eurovision 2016

A Geórgia também teria sido uma justa vencedora desta 61ª edição do Eurofestival, tendo surpreendido tudo e todos com o tema “Midnight Gold”, dos Kocharov & Young Georgian Lolitaz, que tiveram uma atuação bastante psicadélica e até algo alternativa, a fazer lembrar bandas como Primal Scream, Blur ou Jaguar Ma, o que é pouco frequente nestas coisas do Eurofestival.

Kocharov and Young Georgian Lolitaz Midnight Goldeurovision 2016

A Letónia também teve uma boa presença, não tão boa quanto a do ano passado, ano em que a cantora e autora Aminata teve uma das melhores performances de toda a história do Festival da Eurovisão com a canção “Love Injected”. Este ano Animata ficou em casa, mas mandou uma canção sua, “Heartbeat” que foi interpretada eficazmente por Justs, mas sem a pontinha de mistério e de transgressão da própria Animata.

Justs eurovision 2016 latvia 2

A merecerem também algum destaque as canções belga e ucraniana, para já não falar da francesa, da austríaca e da australiana, que também tiveram uma boa presença. Assim, a Bélgica fez-se representar por Laura Tesoro, uma jovem cantora belga de origem italiana, que interpretou, e bem, “What's The Pressure?”, uma canção assinada pela cantora e compositora Selah Sue, produzida por Brit Peter Gordeno, que tem tocado teclas em tournées dos Depeche Mode, e com uma linha de baixo a lembrar “Another One Bites The Dust”, um clássico dos Queen, de 1980.

What's The Pressure - Laura Tesoro

As piores

Independentemente das classificações, na nossa opinião, as duas piores canções foram as de Espanha e de Malta, com as quais nem sequer vale a pena perder muito tempo. Contudo, valerá a pena refletir como é que um país como a Espanha, com a(s) identidade(s), a(s) cultura(s) e (as) língua(s) que tem, se apresenta de uma forma tão descaracterizada e quase patética num certame deste género – fazendo lembrar algumas das participações portuguesas menos felizes, em particular as últimas. O que nos remete para o que foi o grande senão deste 61º Festival da Eurovisão, a crescente descaracterização musical e cultural, ligada diretamente ao facto de a maior parte dos países ter optado por cantar em inglês em vez de o fazer na sua língua nacional. Não que haja mal algum na opção de os músicos cantarem em inglês, até porque fazê-lo, desde que a canção o justifique, pode ser uma forma de chegar a mais pessoas, mais a mais em tempos de inevitável globalização. Só que no Eurofestival o que tem graça e interesse é, exatamente, este poder ser uma montra da diversidade musical, cultural e linguística da Europa. Ora, é isto que se tem vindo a perder de ano para ano.

 

A crescente descaracterização

A Europa como um bloco cultural homogéneo é um mito, que não tem existência real, não obstante poder haver ou se poder vir a construir uma identidade europeia, o que não implica nem implicará, forçosamente, pôr em causa essa mesma diversidade. O próprio projeto da União Europeia, com origens no pós-guerra, visava manter essa diversidade, ao contrário daquilo em que parece se querer tornar nos dias que correm: um bloco monolítico, a uma só voz, controlado por burocratas que ignoram a diversidade e história europeias. O projeto europeu visava manter a Europa como ela era e sempre foi, diversa e heterogénea, porém unindo-a contra as ameaças da guerra e do totalitarismo. O projeto europeu não é nem nunca foi criar uma Europa una e culturalmente descaracterizada, mas pelo contrário unir os países em torno de valores comuns, como a paz e a cooperação, para que cada um (pessoa ou nação) possa afirmar a sua diferença e identidade. O espírito do Festival da Eurovisão, cuja primeira edição ocorreu em 1956, dez meses antes do Tratado de Roma que consagrou a criação da CEE, seguia praticamente os mesmos princípios: unir vários países, num concurso de canções, de modo a cada um mostrar a sua identidade e especificidade cultural e musical. Era uma celebração da diversidade e não o contrário.

Nesta 61ª edição, o que vimos foi que mais de metade dos países apresentaram canções em inglês, o que, tirando um caso ou dois, era completamente desnecessário, traindo o que devia ser o espírito do Festival, mas, acima de tudo, descaracterizando as participações ao ponto da maior parte das canções tanto poderem ser do país que as apresentava como de um qualquer outro país: a canção da Alemanha poderia ser do Reino Unido, esta podia ser a da Espanha, que, por sua vez, poderia ser a da Macedónia e por aí fora. O caso da Espanha este ano é bem representativo de como um país se pode descaracterizar totalmente num concurso deste género, o que ainda choca mais tratando-se de um país fortíssimo em termos identitários, culturais e linguísticos. O mesmo se poderia dizer da Alemanha e da Rússia, por exemplo, que também optaram pelo inglês e apresentaram canções banais e descaracterizadas.

Justiça seja feita à RTP, pois Portugal, apesar das más participações dos últimos anos, que lhe custaram não poder estar presente este ano, tem, no entanto, concorrido sempre com canções em português, o que, num festival deste género, me parece ser uma mais-valia. Resta agora melhorar o nível das canções, pelo que aproveitamos a oportunidade para fazer um apelo à RTP para que no próximo ano, em que Portugal deverá voltar a participar no Festival da Eurovisão, faça um concurso público, aberto a todas as pessoas, em vez de fazer convites diretos, a um escasso e não representativo número de músicos e autores, cujos critérios de escolha nem sequer se compreendem. Não só será mais democrático como permitirá que surjam novos nomes no panorama musical português, o que deveria ser sempre uma das prioridades de qualquer festival da canção a nível nacional.

João Peste


Top 5 Eurovisão 2016, by MHD>>>


 


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