Corre!, em análise

Depois de “Pesquisa Obsessiva”, o realizador Aneesh Chaganty volta a explorar as possibilidades dramáticas das relações entre pais e filhos. “Corre!” é um exercício horrorífico com Sarah Paulson no papel principal.

Há séculos que artistas e contadores de histórias têm achado sinistras conexões entre a maternidade e o terror. De facto, no paradigma do cinema, tais laços têm sido explorados até à exaustão. Por um lado, existe a angústia da mulher grávida que vê seu corpo à mercê de uma presença parasítica, como em “A Semente do Mal” de Roman Polanski. Existem outras obras que posicionam a mãe no lugar da vítima, como o clássico “The Bad Seed” ou o drama moderno de “Temos de Falar Sobre Kevin”. Por outro lado, também há cinema em que a dinâmica se inverte e é a mãe que se afigura o papão.

Pensemos, por exemplo, na caricatura que Faye Dunway fez de Joan Crawford em “Mommie Dearest – Querida Mãezinha”. O recente “Corre!” insere-se nesse último quadrante do terror sobre maternidade. No centro desse pesadelo, encontramos Sarah Paulson no papel de Diane Sherman, mãe solteira que, no início da fita, sofre as agonias de um parto difícil. A filha prematura depressa provoca problemas aos médicos, tentativas desesperadas de a ressuscitar e uma lista enorme de maladias físicas. Longe de refletir sobre os terrores realistas de uma mulher confrontando as dificuldades que sua progénie vai enfrentar, o filme depressa salta 18 anos.

run corre critica
© Pris Audiovisuais

Reencontramos Diane num grupo de apoio para pais que, por diferentes razões, ensinam os próprios filhos em casa. Entre seus pares, fala-se das ansiedades parentais, do receio sobre a adaptação dos jovens à nova vida na faculdade. Contudo, Diane não demonstra nenhuma dessa ansiedade. De facto, ela está segura que a filha, Chloe, nunca irá para a faculdade, jamais deixando a casa materna. Paulson interpreta o momento com aterradora intensidade, um rasgo de confiança maníaca que nos delineia facetas de loucura neste amor de mãe. A solidão da figura transparece, é certo, só que há muito se transformou na opressão de uma ditadora doméstica.

Depois de anos a dar vida às mil e uma divas tresloucadas de Ryan Murphy na TV, Paulson sabe como projetar insanidade perigosa. Um olhar sagaz, um tremer da voz, insinuam quanto Diane não se sente deprimida pelo fado filial. Na verdade, o contrário acontece. Ela parece desfrutar da oportunidade de cuidar da adolescente incapaz, deixando-se inebriar pelo controlo absoluto que tem sobre a vida alheia. Se havia alguma dúvida que Diane é uma vilã, esta primeira cena erradica-a. O problema é que o argumento trata as revelações tardias da sua maldade como uma surpresa.

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Tais mecanismos necessitam de uma certa ambiguidade para funcionarem, mas Paulson não está interessada em ambiguidades. Sua abordagem é destrutiva e destruidora, como um comboio desenfreado que atropela e aniquila tudo o que se põe no caminho. É um esforço notável, mas ficaria melhor numa história mais abertamente camp que esta. Por muito ridículo que possa ser, “Corre!” tenta sempre seguir a via da seriedade. Até as cores acinzentadas da fotografia refletem essa vontade, essa ideia de um conto de terror construído sobre uma fundação de realismo psicológico. Há solidez dramática na história de co-dependência entre mãe e filha, mas isso só não sustenta todo um thriller.

Não que o resultado final esteja a milhas de qualquer credulidade. Paulson é uma força demasiado poderosa para contrariar e o argumento só puxa o resto do edifício cinematográfico para um buraco negro de sordidez. Dito isso, Kiera Allen faz o que pode como a coprotagonista de Sarah Paulson. Enquanto Chloe, ela revela camadas de ressentimentos acumulados, uma figura em fúria com o corpo, com o destino, com a mãe que diz estar a fazer o melhor por ela, mas a aprisiona. Há tanta sinceridade no modo como ela ilustra o entusiasmo da jovem que sonha em ir para a faculdade, tanto sentimento que nos deixamos arrebatar.

corre run critica
© Pris Audiovisuais

O arco narrativo destas duas mulheres é imensamente previsível, tão maquinizado que parece quase automático. À medida que Chloe questiona os tratamentos supervisionados pela mãe, mais as ações de Diane se revelam malignas. Numa reviravolta que não surpreenderá ninguém, até a realidade do prólogo hospitalar é posta em causa. Nesse momento, qualquer nuance que a fita pudesse ter some-se, e somos deixados com um Grand Guignol cinematográfico sem vergonha nem sofisticação. Allen tenta, mas é incapaz de fazer com que os desenvolvimentos emocionais de Chloe façam sentido.

Felizmente, Aneesh Chaganty sabe como estruturar um filme e há virtuosismo no seu estilo atrás das câmaras. A sua colaboração com a equipa de montagem formada por Nicholas D. Johnson e Will Merrick é especialmente meritosa. Se Paulson mostra as cartas que tem na mão demasiado cedo, a montagem ilude o espetador através de movimentos reticentes, de cenas que acabam demasiado cedo e fins sem momentos para respirar. O suspense é aqui um elemento puramente formal e, nesse contexto, é o maior triunfo de “Corre!”. Esses temores rítmicos são a melhor razão para ver o filme, mesmo que fãs renhidos de Sarah Paulson possam discordar.

Corre!, em análise
corre

Movie title: Run

Date published: 10 de November de 2021

Director(s): Aneesh Chaganty

Actor(s): Sarah Paulson, Kiera Allen, Sarah Sohn, Pat Healy, Erik Athavale, BJ Harrison, Sharon Bajer, Onalee Ames

Genre: Thriller, Terror, Mistério, 2020, 90 min

  • Cláudio Alves - 45
  • Manuel São Bento - 75
60

CONCLUSÃO:

Perpetuando uma tradição antiga de terror sobre figuras maternais, “Corre!” peca pela previsibilidade da sua narrativa e por quão superficial a construção das personagens se revela. Desperdiçando bons atores, o realizador Aneesh Chaganty consegue, pelo menos, vingar numa vertente mais formal. Não que as imagens acinzentadas, tão banais que são quase anónimas, mereçam qualquer elogio

O MELHOR: A montagem angustiante e os extremos de desespero a que Kiera Allen leva a personagem de Chloe. Uma sequência entrecortada entre um cinema escuro e uma farmácia representa a suprassuma interseção destas duas qualidades.

O PIOR: A personagem de Diane e sua falta de nuance é o maior desapontamento do filme. Sarah Paulson é uma grande atriz, sem dúvida. Contudo, nem ela consegue redimir o papel e nele encontrar uma personalidade capaz de vingar no grande ecrã.

CA

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